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Ao longo da vida fui instigada a pensar o mundo – e por que não a ciência – de uma forma diferente. Sempre fui influenciada por pensamentos humanitários e o lado

gauche das coisas, como diz Drummond em “O anjo torto”, sempre me encantou.

Entenda-se que o que chamo de ‘lado gauche’ é aquele lado que não configura ‘o normal’, ‘o comum’. Com este espírito de compreender contextos incomuns e conhecer pessoas e realidades que buscam viver o lado avesso das condições habituais, parti para o México.

Saímos do Brasil para o México no dia 11 de julho de 2015 (descrevo este relato na terceira pessoa do plural pois comigo estava meu companheiro de pesquisa e de vida, meu esposo Vinícius). Chegamos em busca de uma história contada por uma de minhas professoras do doutorado em Administração. O que eu sabia do projeto, até então, resumia-se a uma descrição da minha professora, entusiasmada com um projeto social desenvolvido por jovens mexicanos, de alguma forma relacionados com os princípios jesuítas (os mesmos princípios da Unisinos, universidade onde cursei meu doutorado).

Para estabelecer o contato inicial com o projeto, a professora Yeda colocou- me em contato por e-mail com Belinda, diretora de uma das empresas do grupo. Começamos a troca de e-mails com certa formalidade, em língua inglesa, e com todos os cuidados que uma relação inicial exige. Após uma série de correios, trocamos para a língua espanhola e, aos poucos, fomos criando um elo mais forte e planejando o roteiro de pesquisa.

Ao chegar à Cidade do México, no dia 12 de julho de 2015, iniciei uma nova experiência de vida. A cidade é enorme, vibrante e com abismos sociais impressionantes. Na ida para a IBERO – Universidade Iberoamericana, local onde está situada uma das cafeterias do projeto, atravessamos uma avenida que divide dois mundos. O mundo que ficou ‘para trás’ é um México pobre, com pessoas que nitidamente sofrem as consequências de um abandono institucional muito grande. O mundo que encontramos do outro lado da avenida, no distrito de Santa Fé, é uma expressão do mundo moderno, com edifícios que, literalmente, arranham o céu ensolarado e espelham o capital e a forma de viver baseada no hiperconsumo.

Caminhando pelos corredores e jardins da bela Universidade Iberoamericana, chegamos ao nosso primeiro destino de pesquisa, a cafeteria Capeltic de Santa Fé. As primeiras impressões foram de uma cafeteria normal, situada em uma universidade particular, nitidamente frequentada por estudantes de classe média alta. Até então, nada nos chamou muita atenção, empregados atenciosos, café de qualidade, porém não estávamos enxergando o ‘projeto social’. Internamente, nos questionamos, por vários momentos: onde está o grande diferencial desta cafeteria? Nós nos deslocamos do Brasil ao México para pesquisar algo que encontramos nos corredores da minha universidade ou em uma ‘Starbucks’ em uma esquina qualquer?

Pesquisar não nos leva apenas a confirmações, mas a evidenciar equívocos sobre nossas pré-compreensões. No primeiro encontro, verificamos, porém, que estávamos errados sobre as impressões iniciais, sobretudo quando conhecemos dois jovens: Belinda, diretora das cafeterias Capeltic, e Matias, gerente da cafeteria Capeltic de Santa Fé. Logo nas primeiras palavras da entrevista com Belinda, percebi que estava diante de um projeto que iria me instigar muito e que, certamente, despertaria um grande interesse de pesquisa.

O projeto é denominado Yomol A’tel e é composto por seis empresas sociais, que juntas procuram coordenar a cadeia de valor do café e do mel. O projeto possui sua sede em Chilón, um município rural de aproximadamente 100 mil habitantes, situado no estado de Chiapas, uma região de selva no sul do México, quase fronteira com a Guatemala. Quando fui convidada a conhecer o projeto e fazer a coleta de dados nas comunidades, minha resposta foi imediata: “é lógico, nada melhor que conhecer a realidade sobre a qual vamos escrever”. Então partimos da Cidade do México em direção à Chilón, em uma viagem longa, que incluiu avião, táxi, ‘van’ coletiva e caminhada.

Chiapas é um dos estados mexicanos com maior taxa de pobreza, tendo cerca de 75% de sua população em pobreza extrema. Um dos eventos históricos que mais marcou Chiapas foi a insurreição do Exército Zapatista de Libertação Nacional, em 1994, que objetivava a luta pela democratização do país e a ampliação da autonomia e das oportunidades para os grupos indígenas. Apesar das conquistas zapatistas, a política partidária tradicional ainda domina os jogos de poder na região.

No domingo 19 de julho de 2015, foram realizadas eleições municipais no estado de Chiapas. Chegamos a Chilón na segunda-feira, dia 20, logo após um confronto armado entre os partidos PRI (Partido Revolucionário Institucional) e Verde

(partido expulso pela Associação Internacional de Partidos Verdes, justamente por não representar a agenda política e ideológica dos Partidos Verdes), após supostas fraudes na apuração de votos, pois foram encontradas, nas ruas do pequeno município, duas mochilas contendo cédulas eleitorais.

Quando chegamos ao pequeno ‘pueblo’, o clima de hostilidade e instabilidade era evidente. Fomos informados da instabilidade da situação política e da possibilidade de haver mais confrontos armados. A população toda estava dentro de suas casas e apenas um pequeno grupo de homens concentrava-se na frente do prédio da prefeitura municipal. Nosso dia de pesquisa começou no turno da tarde, quando fomos até a planta industrial da segunda empresa do grupo, denominada “Batsil Maya”, onde tivemos contato com algumas pessoas que ainda persistiam em trabalhar, já que a fábrica estava fechada por questão de segurança. Fizemos algumas entrevistas e, ao final do dia, nos dirigimos para a pousada onde ficamos hospedados. Nesse mesmo momento, a mesa diretiva da cooperativa estava reunida para discutir sobre a situação e buscar alternativas de segurança para seus empregados e para nós, pesquisadores brasileiros. Naquele momento, éramos estranhos para a maioria das pessoas e a população da cidade não tinha a compreensão de que dois brasileiros estavam lá apenas para pesquisar e que nossos equipamentos e nossas caras de ‘gringos’ não representavam nenhum perigo. Estávamos apenas no dia errado, em uma situação não planejada e nunca imaginada.

Por volta das 21h, uma das diretoras do projeto nos contatou e pediu que rapidamente arrumássemos nossos pertences, pois teríamos que deixar o local. A situação estava se agravando e, para nossa segurança, teríamos de sair da pousada e nos manter em grupo em local mais seguro. Nossa retirada da pousada foi ‘cinematográfica’, um a um nos dirigimos para a caçamba de um pequeno caminhão de carga, ficando agachados sob a lona, sem saber ao certo para onde estávamos sendo levados. Chegamos na Casa dos Voluntários da Missão Jesuíta em Chilón, local onde ficaríamos mais seguros e mais afastados do centro dos conflitos.

Fomos recebidos por três jovens espanhóis, Javier, Alex e Diana, que estavam em Chilón por seis meses, realizando estágio de graduação (Business School da Universidade de Deusto – País Basco, Espanha) e atuando como missionários. Ao nosso lado estavam gerentes e diretores da Yomol A’tel, que tinham ido a Chilón para a reunião anual do projeto: Belinda, Laura, Matias, Alma, Dulce, Keila e Cristina. Ao todo éramos 12 pessoas em uma casa que não estava plenamente preparada para

receber todos estes ‘foragidos’.

O dia havia sido longo e o nervosismo e o medo se faziam presentes. Os espanhóis foram para a cozinha preparar um jantar com o que havia na despensa: ovos, arroz e molho de tomate. Nesse instante, começamos a entender que estávamos com pessoas iluminadas e que enfrentaríamos juntos, os 12, aquela noite. Nada diferente foi dito durante a janta, houve apenas conversas normais de pessoas interessadas em se conhecer e compreender as trajetórias que haviam nos colocado juntos naquela noite, naquela situação. Como é bom ser brasileiro em uma situação dessas! Todos se interessam por saber mais sobre nosso país: como é o carnaval na família de vocês? Como foi o ‘7 x 1’? etc. Assim, passamos horas nos conhecendo e esperando que chegassem, pelo telefone, informações transmitidas uma das diretoras.

Com certeza, não sairíamos dali tão cedo... precisávamos avisar nossa família no Brasil, pois, seguramente, no dia seguinte sentiriam falta de uma foto no grupo privado da família no Facebook, com a clássica frase, “estamos bem, amamos vocês”. Conseguimos um celular emprestado com Belinda e avisamos a família: “Família, tudo bem? Estamos bem, precisamos sair do hotel e estamos na casa dos jesuítas. Está tudo bem, não sei se conseguiremos mandar mensagem amanhã. Amamos vocês, bjos, Manu e Vini”.

Foi um pouco exagerado da nossa parte, mas estávamos com medo e resolvemos mandar uma mensagem apenas para nossos cunhados Larissa e Igor, pois não queríamos preocupar a todos, porque não sabíamos ao certo o que estava acontecendo: “Lari e Igor, a situação não está legal. Estamos na casa da Missão Jesuíta e nosso contato é a Belinda. Se não fizermos contato, nos achem. Bjos”. Pronto, estávamos a salvo! Se fosse necessário, a família “Fortes Agostini” nos tiraria de lá e nossas avós estariam rezando e reforçando o número de velas habitualmente acesas para pedir proteção. Tudo seria resolvido.

Durante a madrugada de segunda-feira, não dormimos. Na companhia de um galo, que cocoricou a noite inteira, e dos barulhos do conflito que acontecia no centro do vilarejo, passamos a noite em claro. Confesso que sentimos medo. Eu me perguntava: “vou conseguir concluir a pesquisa?”. É um pouco estranho, deveria estar me perguntando, “por que estou aqui, por que comigo?”. Mas todo o pesquisador passa por isso: medo de não conseguir concluir o que começou e de não ter chance de contar tudo aquilo que vivenciou.

luz do dia sempre traz consigo mais tranquilidade. O dia começou bem, nos dividimos em grupos para ocupar nosso tempo ocioso, pois não poderíamos sair da casa. Um grupo se encarregou da faxina pesada, outro, da carpintaria (construir mesas com restos de madeira que estavam no pátio). O terceiro grupo iniciou a elaboração do almoço, o que logo transformou-se em atividade de todos. Aprendemos o que é conviver em espírito fraterno de comunidade.

Neste dia, aprendi também que, em momentos de dificuldade, podemos superar muitos medos e fobias. Há cinco anos, sofro com a aracnofobia, um medo paralisante de ‘senhoras aranhas’ que insistem em me perseguir. Agora, estava em uma casa na qual a população de aranhas superava o pior dos filmes “Aracnofobia”. Eram aranhas de todos os tipos, tamanhos e cores. Confesso que foi difícil, mas sobrevivi e, no final, eu não as matava mais (por mais difícil que isso tenha sido). Meu medo tornou-se evidente para todos que conosco compartilhavam aquele espaço e aí descobri mais uma coisa: a generosidade e o preocupar-se com os demais ainda é muito presente. Todos me ‘protegeram’. Certa noite, uma aranha de uns 15cm entrou pela porta da casa, estávamos todos reunidos e eu não a vi. Javier, observando que a aranha vinha em minha direção, virou meu rosto e me retirou da sala, antes que eu a visse e entrasse em pânico. No dia seguinte, meu marido me contou que eles não mataram a aranha, apenas a conduziram para o pátio, seu habitat natural, sob o argumento: “não matamos porque nós é que invadimos o espaço dela”.

Parece estranho fazer esta analogia, mas comecei a me questionar sobre os processos de invasão e inversão da lógica histórica daquele lugar. As terras, historicamente, eram dos indígenas tseltales de origem Maya, que a usufruíam de acordo com suas crenças e cultura. No entanto, com todos os processos de invasão, de inversão e de obtenção de lucro, essas terras transformaram-se em sítio de inúmeras disputas por territórios e poder. Hoje, as terras voltaram a ser dos tseltales, porém com uma carga absurda de abandono e desvalorização. A pobreza e o descaso são tão latentes que a população mostrava-se alheia a tudo o que passava. Ao questionar uma senhora indígena que vendia artesanato na rua sobre o que estava ocorrendo no estado de Chiapas, ela me respondeu que era uma briga entre os homens, mas que não era nada, que logo se resolveria. Perguntei sobre as eleições e, pasmem, ela não sabia de nenhum processo eleitoral no estado. A questão é muito simples: houve uma invasão do habitat alheio, uma alteração do processo natural das coisas, “as aranhas precisam ser mortas...”, será?.

Lá ficamos por quatro dias, acompanhados de 10 amigos mexicanos e espanhóis, aguardando que a paz se restabelecesse, bem como findassem os bloqueios nas estradas, para que pudéssemos voltar à Cidade do México. Durante estes dias, permanecemos no interior da casa, com saídas rápidas para buscar mantimentos e ir ao banheiro na planta industrial. A água potável fora cortada na cidade e o comércio estava fechado.

Na quinta-feira pela manhã, dia 23 de julho, a situação estava mais controlada. Fomos informados que este seria o melhor dia para nos locomovermos para San Cristóbal de Las Casas, a cidade mais turística do estado de Chiapas, onde poderíamos permanecer até sábado, quando pegaríamos o voo para retornar ao Brasil. Nossa saída de Chilón foi em um táxi coletivo, que nos conduziu até o primeiro bloqueio na estrada. Daquele trecho em diante nenhum carro poderia atravessar, apenas as pessoas. Pegamos nossas coisas e atravessamos o primeiro bloqueio, cabeça baixa e respiração acelerada. Aparentemente, acontecia um tumulto, mas seguimos nosso caminho, pois “estávamos indo de volta pra casa”. Atravessamos o primeiro bloqueio e caminhamos pela estrada até encontrar um outro táxi coletivo, que nos conduziu até o bloqueio seguinte e assim por diante. Depois de um longo dia, chegamos a San Cristóbal, ligamos para a família, choramos, nos beijamos e dormimos praticamente por dois dias. Recuperamos as energias e voltamos para nosso lar.

Alguns dos nossos amigos partiram no dia seguinte e fizeram o mesmo trajeto que nós. Nós nos encontramos no aeroporto de Tuxtla Gutierres, capital de Chiapas, para a despedida. Outros, permaneceram em Chilón e lá estão enfrentando as adversidades de um mundo injusto e criando alternativas para mudar o que está posto, mas não findado.

Naquela Chilón também há caminhos ‘tortos, gauches’, para uma alternativa sustentável de desenvolvimento das comunidades indígenas produtoras de café orgânico. O projeto da cooperativa Yomol A’tel (que em tseltal Maya quer dizer ‘trabalhar juntos, caminhar juntos, sonhar juntos’), demonstra que a construção de alternativas econômica e ambientalmente sustentáveis é possível, sobretudo quando asseguram autonomia às comunidades, livres da dominação e do poder político e econômico dos ‘coiotes’ do café. Hoje, a Yomol A’tel reúne um grupo de empresas sociais que plantam, produzem, processam, tostam o café e o vendem para EUA, Europa e Japão ou em cafeterias próprias no México, o que possibilita o controle do

preço do café independentemente do mercado e da Bolsa de Nova York.

A fraternidade pulsa em Chilón, porque, inspirados pelo padre jesuíta Oscar, jovens sonhadores, descobertos nas universidades, abraçaram o projeto e hoje transformam a vida de diversas famílias que, geração a geração, vem dependendo do cultivo de café para a sobrevivência em um território de veias abertas.