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3.2 NARRATIVAS, CONHECIMENTO TÁCITO E CUIDADO DE ENFERMAGEM: INTERFACES.

Ao buscar saber acerca das práticas cotidianas de enfermeiros que atuam em Saúde Mental no cuidado a psicóticos, constatou-se que narrar, contar histórias acerca desse dia a dia, era a melhor forma de perscrutar as nuances e sutilezas desse cuidado de enfermagem. De acordo com a classificação de Perroni(43), foram utilizadas narrativas do tipo relato.

Para White(44), narrar é algo inevitável, pois é uma forma de tradução de conhecimento. Sabe-se que uma narrativa “captura conceitos, contextos, sequência e consequência para a evolução da doença e intervenções terapêuticas ao longo do tempo”(45: p.14).

Há que se ressaltar, entretanto, que, ainda que se use a narrativa para falar de uma realidade vivida, nunca será possível narrar tudo. Sempre ficará algo de fora(44), algo interditado ao sujeito, um dizer impossível para as palavras do narrador.

Isso posto, sabe-se que uma narrativa é capaz de revelar percepções e concepções subjacentes, uma vez que, ao narrar, imprime-se o que há de dramático na cena e revela-se o raciocínio empregado ao longo dos acontecimentos(45).

Mas, mais que isso, na qualidade de uma prática, a enfermagem é uma profissão que se guia por um conhecimento tácito e um pensamento-na-ação, tal como identificou Benner(45).

Para Polanyi(46), filósofo vienense, que cunhou o termo conhecimento tácito, há um saber que remete tanto ao conhecimento teórico, quanto ao prático. Trata-se de um saber, muitas das vezes, resistente a uma descrição em todos os seus detalhes, mas, ainda que rebelde ao controle da razão, direciona e sustenta uma prática, um saber ou uma descoberta científica.

Shön(47), educador americano, no qual Benner(45) se embasa (dentre outros), compreende que, em determinadas situações práticas, que são ‘únicas, incertas e conflituosas’, os profissionais lançam mão do que ele denomina um talento artístico profissional. Tal talento independe da capacidade do profissional de descrever o que sabe, ou mesmo de identificar o conhecimento revelado pelas ações. O referido autor marca com isso uma dicotomia entre o

saber como e o saber que, cujo valor do primeiro (saber como) não pode ser definido pelo

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Shön(47) constata que há uma forma de saber/conhecer, que ele denomina conhecer-na-

ação, revelado pela execução de tarefas ou ações, mas o qual somos incapazes de verbalizar.

Trata-se de um conhecimento tácito.

Figueiredo(48) compreende o conhecimento tácito como o saber incorporado - tomando essa palavra por seu sentido literal -, ‘saber do ofício’, no qual sujeito e objeto não se constituem entidades distintas. Um conhecimento que só se adquire na experiência profissional cotidiana.

Para Schön(47), durante uma ação, o profissional pode - concomitante a ela ou interrompendo-a - pensar no que se está fazendo. A isso, Shön denomina reflexão-na-ação. Tal reflexão pode questionar pressupostos, subsidiar novas hipóteses que configurarão novas ações, ou seja, “a reflexão gera um experimento imediato”(47:p.34). Assim, abrem-se possibilidades de construir e avançar no conhecimento. Nisto reside, para Schön(47), o talento artístico profissional.

Para Figueiredo(48), a teoria encontra lugar enquanto capaz de abrir, no curso da prática, o espaço da indecisão, do adiamento da ação para possibilitar novas compreensões, novas formas de agir e saber.

Pensar a teoria como aquela que produz o adiamento da ação remete, a meu ver, à reflexão-na-ação de Schön(47), na qualidade também de uma parada que propicia a construção de conhecimento. Benner(45), analisando a prática de enfermeiros, consegue identificar um fenômeno semelhante, mas não idêntico: o thinking-in-action.

Diante de um conhecimento incorporado, um ‘saber do ofício’, como então apreender ou representar esse conhecimento que resiste ao saber lógico, formalizado? Como representar algo que se dá numa prática? Por que formalizá-lo, se esse saber, que se constrói na e para uma prática, produz os efeitos necessários?

Figueiredo(48) propõe que uma teoria ou qualquer outro dispositivo que represente um conhecimento nunca será capaz de explicitar todos os detalhes e elementos de uma prática, sob pena de, ao privilegiar uma teoria, o profissional acabar por se afastar de sua prática. Mas, nem por isso a teorização ou a representação de um saber tornam-se desnecessárias.

Schön(47) define que a observação das ações ou a reflexão sobre elas possibilita uma descrição do conhecimento tácito nelas implícito. Figueiredo(48) propõe que, nas narrativas, nas

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histórias de casos e nos relatos dos profissionais, encontra-se um estado ótimo de tensão entre o conhecimento tácito e o explícito.

Benner(45), ao analisar narrativas de enfermeiros que relatavam cenas do cotidiano de trabalho, pôde identificar elementos da compreensão clínica, que ela denomina sabedoria, que constituía o conhecimento construído por esses profissionais. Mais que isso, as narrativas permitiram a Benner identificar o pensamento-na-ação, variante da reflexão-na-ação de Schön, específico do trabalho do enfermeiro que, por apresentar impedimentos às paradas para reflexão, acaba por exigir desse profissional expert a capacidade de refletir enquanto atua e modificar suas ações a partir dessa reflexão.

Na área da psiquiatria/saúde mental, desde Freud, aprendeu-se que o atendimento clínico, seu relato posterior seguido de um registro escrito configuraram a base metodológica de seu trabalho clínico/científico. Os estudos de caso figuram como narrativas que contribuíram sobremaneira para a construção de toda a teoria psicanalítica(17,18,49,50).

Nesse sentido, utilizar de narrativas para pensar o saber/fazer dos enfermeiros que atuam em saúde mental com uma inspiração na teoria psicanalítica torna-se um caminho viável, marcado pela coerência, para se alcançar os objetivos desta pesquisa.

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