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5.1 A PSICANÁLISE, OS ENSINOS DE LACAN E A PSICOSE: ELABORAÇÕES PARA NÃO RETROCEDER

Lacan(129:p.11) afirma: “A psicose é aquilo frente a qual um analista não deve retroceder em nenhum caso.” E Lacan assim o fez. Em seu ensino, desenvolvido ao longo de trinta anos(130), podem-se localizar dois momentos distintos e complementares, dois pontos de partida distintos para pensar a psicose, duas clínicas(131,132).

Para Lacan(129:p.02-03), falar em clínica é falar de algo em um sentido específico. Ele sentencia aos analistas:

Portanto, há que clinicar. Isto é, deitar-se. A clínica está sempre ligada ao leito, vai-se ver alguém deitado. (...) Na posição deitada o homem tem a ilusão de dizer algo que seja do dizer, isto é, que importa no real. A clínica psicanalítica consiste no discernimento de coisas que importam e que serão densas quando se toma consciência delas.

Ao estabelecer um conceito de clínica, situando-o a partir do deitar-se, Lacan retoma, em outras palavras, o método clínico freudiano. Falar de uma clínica ligada ao leito é falar de um saber que se constrói ali, a partir do homem deitado. Homem deitado, longe de ser alguém acomodado, passivo, que, mesmo não sabendo, mesmo sem escolher as palavras, diz. E isso é o que importa. Esse saber não sabido, esse saber que só se apreende junto ao leito, esse saber que se sustenta na ilusão de tudo dizer, esse é o saber da clínica. Clínica da qual se ocupa a psicanálise. É desse saber, construído ao pé do leito, de que o ensino de Lacan se ocupa.

Em outras palavras, essa clínica ao pé do leito pode ser traduzida, tal como propõe Quinet(133), por uma clínica que toma por ponto de partida o sujeito. Um sujeito que não se resume a um significante oferecido por um diagnóstico: deprimido, hiperativo, crônico, bipolar, dentre outros(132). Um sujeito marcado pelo inédito e singular de seu desejo. Assim, Mattos(132:p.02) afirma: “A psicanálise ... está do lado do sujeito e vale como meio de emergência de um desejo inédito: não como todo mundo. A causa do desejo não é genérica, o gozo não é programado na espécie humana, é contingente”.

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Marcado pelo que não tem essência, pelo que é eventual e incerto, o sujeito da psicanálise, sujeito do inconsciente, se apresenta de uma forma bastante peculiar. Não se trata de um sujeito em essência, uma pessoa. Não se trata do eu imaginário (aquele pelo qual eu me defino dizendo ‘eu sou...’). Trata-se do sujeito evanescente, capturado na fala. Exatamente por seus lapsos que comprovam a existência de um inconsciente estruturado como linguagem, na forma de metáforas e metonímias, um sujeito que surge no intersignificantes para, logo em seguida, desaparecer(40,41). A Psicanálise é uma clínica, uma teoria, um método que se subordina ao que há de mais singular no sujeito, em cada sujeito.

Há que se considerar que o termo sujeito apresenta diferentes acepções. Pode-se, por vezes, referir-se ao sujeito de direitos e deveres, o cidadão. Pode-se referir ao sujeito ao qual se pode empoderar (empowerment), um sujeito que busca alcançar sua autonomia. Ou seja, esse sujeito de direitos, autônomo, livre e poderoso não coincide com a concepção de sujeito proposta pela psicanálise.

Em psicanálise, a concepção de sujeito refere-se ao sujeito dividido, estruturado a partir da linguagem, que sabe sobre si, mas esse saber nem sempre é sabido e sempre é furado. É sempre um meio-dizer uma meia verdade. Um sujeito que deseja e busca o prazer, mas vê-se, nesse percurso, às voltas com o gozo23(40).

Pode-se, ainda assim, pensar o sujeito de direito e em que momento essa acepção de sujeito dialoga com a noção proposta pela psicanálise. Miller(134) busca situar – e também diferenciar- o sujeito e o sujeito de direito. Para ele, o direito de que se trata, em sua acepção de sujeito de direito, refere-se ao direito do sujeito de responder pelo que faz e pelo que diz. E, nesse sentido, tomado pela vertente da resposta, trata-se do mesmo sujeito da psicanálise, o sujeito da enunciação. Entretanto, fica a advertência de que esse é “O sujeito que responde por seu enunciado, para o qual é necessário não se confundir com ele”(134:p.17).

23 O termo Gozo, proposto por Lacan, articula-se como o que produz efeitos, sem, no entanto, produzir

significação. Trata-se de uma forma encontrada por Lacan denominar o que Freud chamou de pulsão(130). Refere-se ao que leva o sujeito à repetição sintomática de algo, sem que ele consiga estabelecer ali alguma elaboração possível de ser dita. O gozo comporta um excesso, um transbordamento, um modo de sofrer, uma repetição, um ato que se opõe à palavra, mas que pode encontrar nela seu limite. O gozo, opondo-se ao desejo nunca satisfeito, proporciona, por sua vez, momentos de satisfação (Cf. Lacan J. O paradoxo do gozo. In: Lacan J. O seminário 7- a ética em psicanálise. p.205-265. 1959-1960/1988).

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Nessa acepção, a de um sujeito que tem o direito de responder sobre o que diz, como pensar esse sujeito numa psicose, na qual o que ele diz é algo que foge a uma lógica convencional? Haveria sujeito na psicose? Se sim, então como pensar uma Clínica do Sujeito na psicose?

Para melhor situar essa questão, torna-se necessário discorrer sobre a teorização feita por Lacan acerca da psicose. Uma teorização que, tal como ele aponta, constitui um retorno(148), significa compreender o que fez Freud(6),ou seja, uma releitura da obra freudiana.

Uma análise de toda a obra lacaniana permite temporizá-la, dividindo-a em duas clínicas ou dois ensinos relativos à psicose: a clínica estrutural e a clínica borromeana(128, 131,133,136,148). Dois tempos de um mesmo ensino que, a despeito de um suceder o outro do ponto de vista temporal, um não invalida, tampouco substitui o outro(130,132,136,137).

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