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7.1.1 SABER E ANTECIPAÇÃO: POSSIBILIDADES E IMPOSSIBILIDADES DUAS CENAS.

Cena 02 -

“U

ma paciente, a G., que ficava aqui na permanência-dia, numa angústia, numa coisa! E ela ficava rodando, rodando, rodando e chorando. E se jogava no chão... De repente, ela se jogava no chão... Eu falei: ‘ Gente, mais que coisa esquisita, essa moça!’. E eu fui perguntar pra enfermagem: ‘Mas quem é aquela moça?’ Aí, os técnicos de enfermagem, unânimes, assim, falaram pra mim: ‘Ah, essa é a G. Ela não tem jeito mais, não. É um caso muito difícil, ela só vem pra cá chorar, ou então ela vem pra cá para se jogar no chão... Ela é histérica! Não quer tomar remédio...’

Então, assim, a ideia é de que essa pessoa estava fadada a ser aquilo, do jeito que ela estava e não tinha outra solução. Choro e chão! Uma vez ela chega... Ela atuou. Ela se jogou no chão. Os profissionais ficaram muito irritados... Levaram ela pro leito e amarraram e o psiquiatra mandou fazer Haldol® com Fenergan®. Eu nova aqui. ‘Vamos ver! Vamos tentar perceber melhor essa situação!’ E ai, por coincidência, a referência do caso, ia sair de licença. Ia ficar um tempo fora. E a gerente pediu pra eu ficar na referência da G.! ‘Então eu fico.’ Eu fui ler o prontuário e vi que ela era uma paciente que já tinha um tempo que estava aqui. E que essa tentativa de melhora dela não andava. A proposta da permanência-dia era fazer com que ela tomasse a medicação. Eu me apresentei como referência para G.. E eu falei: ‘Vamos conversar, né’. Aí, eu comecei a conversar e vi que ela tinha um discurso muito desagregado, muito delirante, uma coisa misturada, meio místico-religioso com persecutório, um discurso bem, bem desagregado mesmo. Aí eu fui à casa dela, conheci a família. Uma mãe mais idosa com toda a dificuldade de cuidar, uma mãe analfabeta. Então o CAPS mandava remédio pra administrar. Eu vi que não adiantava nada agir do jeito que estava. O contrato terapêutico dela, o que a colega pensou, não ia funcionar. E eu me fiz a pergunta seguinte: ‘ Qual é o objetivo da permanência-dia pra G.? Em que essa pemanência-dia está beneficiando essa paciente?’ Se ela chega aqui tão angustiada, se ela chega aqui tão... e ela é tão maltratada (faz o gesto de aspas)! Aí eu falei: ‘Eu vou tirá-la da permanência-dia.’ Ousei! Vou tirar! Vou tirar da permanência-dia e vou lá na casa dela atendê-la! E fiz isso! .... Conversei com o psiquiatra. Discuti a medicação dela com ele. Então, ela começou a ficar muito mais tranquila. Comecei a ir a casa dela. O discurso ficou menos desagregado, ficou mais clara a psicose. Porque o

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discurso se organizou de uma maneira mais persecutória mesmo. Ela começou a falar mais também! A falar que ela não gostava de ficar aqui porque tinha um paciente que estuprava ela. Que ela sentia esse paciente estuprando ela... Ela cheia de fenômenos mesmo! O perseguidor estava aqui!

Mas assim, eu estou dizendo desse caso porque eu acho que é um caso, assim, que... na lógica, no discurso dos trabalhadores, tinha uma impotência no caso. Assim: ‘Não tem jeito, não toma remédio, não aceita tomar banho, não aceita nenhuma intervenção. Então não tem jeito! Não posso fazer mais nada por ela’. Que... os recursos tradicionais não podiam fazer muito por ela. Não podiam fazer muito e se você ficasse presa nisso não ia fazer muito, não. Então eu acho que fazer uma aposta nela pra entender porque que ela, estando aqui, ela fica tão mal! (N4)”

Cena 03-

“E

ntão, tinha o W. Ele era assim (faz gesto mostrando uma pessoa alta), uns dois metros de altura! Que falava muito assim (gesticula) e entrava numa agitação! Numa dessas agitações, os profissionais todos nas salas dos técnicos... só os auxiliares vendo. E eu lembro que ele pegou um filtro. Um filtro de barro. E eu assim, sem pensar ou pensando, com cálculo ou sem cálculo... Eu acho que você não faz nada sem cálculo, na verdade. Você pode calcular mal, mas eu acho que você não faz nada sem cálculo! Você não está insano, né! E seu cálculo é balizado em que? Naquela convivência do dia a dia! Numa pequena coisa. Numa conversa que você teve algum dia. Não é naquele momento. De uma certa forma, naquele momento você resgata um pedacinho de cada momento, ou seja, de cada cuidado. Porque o que que é cuidado? Não é a oferta? Não é só o curativo, não é só ... É essa construção. Não é um procedimento! Eu entendo assim. Você tem os procedimentos! Mas na saúde mental esse cuidado tem que ser construído, ele tem que ter a permissão do outro (todos têm, mas esse mais do que nunca!). E, nesse dia... eu falei mais alto. E ele colocou esse filtro no lugar. Falei: ‘Não é assim!’ Eu não lembro exatamente o que eu falei. Mas eu disse alguma coisa no sentido (eu lembro o sentido), de que não era daquele jeito que ele ia conseguir as coisas! Porque assim, era um paciente que já tinha essa trajetória dessa coisa da ameaça! E ele fazia isso

muito bem. E ele esbravejou, xingou e tudo, mas não jogou o filtro no chão. (N9)”

Benner(45), ao discutir a sabedoria clínica que ela identificou na prática dos enfermeiros, listou, dentre pensamentos e ações adotados por esses enfermeiros, a importância de uma Antecipação Clínica, ou seja, uma capacidade de, com base nos conhecimentos prévios e nas situações vividas, prever a organização do ambiente, preparar o paciente para o que virá, antecipar possíveis riscos, crises, vulnerabilidades, considerar o inesperado. Tudo isso dá aos enfermeiros a capacidade de se antecipar às situações. Tudo isso, segundo Benner, é parte integrante e fundamental do fazer em enfermagem.

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Loyola(220) afirma que o cuidado de enfermagem em saúde mental/psiquiatria comporta uma grande diferença do cuidado de enfermagem em outros cenários. Em geral, nesses outros cenários, quanto mais a enfermagem consegue se antecipar aos problemas, numa atitude preventiva, maior é a qualidade de seu cuidado. Segundo a autora, na saúde mental/psiquiatria, não há antecipação. O cuidado “(...) só pode ser construído a posteriori, a partir da demanda e do significado que cada sujeito lhe atribui”(70: p.09).

As cenas 01 e 02 trazem situações distintas em que a questão da antecipação se coloca. Duas cenas, duas formas de antecipação, desfechos favoráveis. Afinal, a antecipação é, tal como propõe Benner, inerente ao cuidar? Seria apenas algo importante em outras áreas e não na saúde mental/psiquiatria? A ideia do sempre a posteriori afina-se mais com um cuidado que se volta à Clínica do Sujeito? É possível antecipar riscos e vulnerabilidades no cuidado de enfermagem em saúde mental/psiquiatria balizado pela Clínica do Sujeito? Na busca por respostas, passo a analisar o saber que identifico em ambas as cenas.

O saber que determina ‘Não tem jeito, não toma remédio, não aceita tomar banho, não

aceita nenhuma intervenção. Então não tem jeito! (N4)” é um saber nascido da prática, da

observação, da lida diária com G. E, nesse sentido, saber que contém uma legitimidade. Mas é também um saber imbuído de uma certeza, posto que, depois de um tempo cuidando de G., já se sabia de seu ‘funcionamento’, portanto, já não cabiam mais perguntas.

Não cabiam mais tentativas de lidar com uma pessoa que traz estampado em seu comportamento algo (quase) inconcebível: ela se angustia em um espaço de tratamento e se recusa a tomar a medicação em casa. O (quase) inconcebível reside no fato de que esse acontecimento aponta para falências desse modo de lidar com G. Um modo de lidar que parte de uma suposição universal, quase uma certeza, de que aquele espaço de tratamento é o melhor lugar para qualquer portador de sofrimento mental. Mas não se pode desconsiderar que à condição de sujeito há uma singularidade inerente. E, assim, não interessa quantos se beneficiem desse serviço. Importa que G., ali, fica muito mal. O que corrobora a situação de falência. Em última análise, a falência (buraco) de cada um que já tentou fazer algo no sentido de atuar terapeuticamente junto a G.

Há diferentes formas de lidar com esse buraco. Uma delas consiste em, no lugar desse buraco, construir-se um saber que o obtura e que também funciona como o único possível ali

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nessa cena de impossibilidades. Futuramente, sempre que necessário, esse saber prévio, antecipado, é convocado.

A antecipação, por vezes, como nessa cena, pode ser lida como um efeito do discurso do mestre. O desfecho dessa narrativa inicia-se com perguntas a esse Saber-mestre. São as perguntas, verdadeiros e novos buracos feitos nesse saber de certeza, que abrem possibilidades de ver de novo ou o novo. Um saber assim esburacado distancia-se do discurso do mestre e abre possibilidades de novas construções. Assim, na direção do avesso do discurso do mestre, convidar G. para conversar abre espaço para a palavra, para o sujeito. Nesse sentido, o cuidado é como propõe Loyola e Rocha(9), a posteriori.

Possivelmente, uma baliza teórica, uma outra forma de antecipação, por assim dizer, sustenta esse novo olhar: a ideia de que a verdade está do lado de quem fala, ou seja, a aposta em um sujeito do inconsciente e em um saber inconsciente. Ambos, sujeito e saber, nunca totalmente apreendidos, uma vez que trazem consigo a condição de ser efêmero e singular. Nesse sentido, uma antecipação teórica pode ter efeitos interessantes para o cuidado.

A cena 03, tomada pelo recorte da antecipação, mostra uma concepção de cuidado que sustenta o ato do enfermeiro. Um cuidado pensado como um processo e que, no momento da urgência, da emergência de algo daquele sujeito, é convocado na qualidade de uma aposta. Naquele momento, em que a atuação se precipitava, há uma aposta na palavra, a palavra que faz uma barra, um limite. Uma palavra que abre a possibilidade de, naquele momento, funcionando como um suposto saber, permita ao enfermeiro, ao dizer que não é assim, facultar ao sujeito a possibilidade de entender, de alguma forma, que alguém sabendo que ‘assim não é’ pode também saber ‘como é’62. Diante disso, o ato se esvazia, o filtro não vai para o chão.

Há que se deter um pouco nessa leitura feita da cena, em especial, no que diz respeito a suposição de saber na psicose. Zenoni(148: p.20) afirma que o psicótico é “...um sujeito que sabe o que acontece com ele, que é ele mesmo a significação do lhe é endereçado enigmaticamente.” Embora, essa ideia seja bastante adequada para pensar a realidade do

62 Zenoni(135: p.20) afirma que o psicótico é “...um sujeito que sabe o que acontece com ele, que é ele

mesmo a significação do lhe é endereçado enigmaticamente.” Embora, essa ideia seja bastante adequada para pensar a realidade do psicótico, não se pode perder de vista, de acordo com Silvestre(221:p.128) que o psicótico não é aquele que sempre sabe. Por vezes, “a confrontação com o fenômeno elementar, (...) é o enfrentamento com o real, precisamente sem mediação, e em particular, sem a mediação de um saber”. E, nesse sentido, alguém que faça as vezes de um sujeito suposto saber, nesse momento de hesitação pode ser aquilo que o psicótico demanda.

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psicótico, não se pode perder de vista, de acordo com Silvestre(221:p.128) que o psicótico não é aquele que sempre sabe. Por vezes, “a confrontação com o fenômeno elementar, (...) é o enfrentamento com o real, precisamente sem mediação, e em particular, sem a mediação de um saber”. E, nesse sentido, alguém que faça as vezes de um sujeito suposto saber, nesse momento de hesitação pode ser aquilo que o psicótico demanda.

Retomando, cabe a questão, qual é a antecipação que o enfermeiro faz? Saber que W. tinha na ameaça uma forma de se dirigir ou enlaçar o outro, ou seja, ‘ler’ esse ato como sintoma, como apelo a lei para entrar no laço social, no sentido do que propõe Quinet(133). Para o enfermeiro, esse saber sobre W. é que permite, naquele instante, uma aposta. Palavras ‘calculadas’ que fizeram uma função de contenção. Tudo isso numa situação que exigia uma saída imediata. Mas em que esse saber difere daquele deduzido da cena 01?

A resposta situa-se em torno de outra noção lacaniana: a de sujeito-suposto-saber. Um saber suposto, diferente desse saber-mestre, do qual o mestre está imbuído de sua certeza. Um saber suposto: alguém supõe que outro alguém detenha o saber que responde a todas as perguntas. Se, em diferentes momentos, falou-se dessa impossibilidade de tudo saber, agora, acrescenta-se que, temporariamente, é necessário que o sujeito acredite que isso seja possível. É necessário também que o outro (no caso o profissional) sustente esse lugar, sem no entanto, encarná-lo, ou como propõe Zenonni(128), funcione como um sujeito suposto não-saber. É necessário que esse que o sustenta saiba que, em algum momento, será destituído desse lugar(148). Ocupar, sem encarnar, esse lugar de suposto saber pode significar um acolhimento desse sujeito.

Os conceitos e noções de saber, sujeito, discurso do mestre, posição de objeto e sujeito suposto saber são alguns dos que foram tramados para discutir questões epistemológicas relativas ao cuidado de enfermagem a partir da clínica do sujeito nessas narrativas. Tais noções e conceitos foram aqui convocados a partir de cenas, ou seja, de uma prática clínica que possibilita sua discussão.

A lógica científica que pode sustentar um cuidado de enfermagem em direção a uma prática que considere o sujeito toma por pressupostos a realidade de um sujeito dividido, de um saber articulado à verdade por um meio dizer, de uma verdade sobre esse sujeito que nunca será dita em sua totalidade. Nessa direção, caberia ao profissional um lugar de representante do objeto(135,188), uma posição de aprendiz(128). Tudo isso constituindo uma condição de Cuidado

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Esvaziado. Ao discutir essas concepções, que compõem a lógica científica desse cuidado de enfermagem, busquei também apontar algumas considerações acerca da transmissão dessa forma de saber, bem como situar uma prática cuja referência foi fortemente mencionada nas entrevistas: a prática do acolhimento.

Além desses, é importante considerar com N10 que a investigação científica deve ser algo presente no cotidiano da clínica. Os questionamentos dos fazeres já estabelecidos, ou seja, as perguntas que abrem buracos no saber já consolidado na forma de rituais, também podem ganhar a possibilidade de serem ditos por outros Significantes se os profissionais se detiverem sobre suas práticas e abrirem espaço para que se entendam seus fundamentos. N17 propõe a seus alunos:

“E

m relação ao cuidado de enfermagem, o que vocês nunca podem perder é esse

olhar de estranhamento! Porque algumas coisas, algumas situações ... algumas coisas, são banalizadas, vamos dizer assim. As pessoas fazem de forma tão ritualizada, que não causa estranhamento. Não tem estranhamento nenhum!”

O estranhamento, por sua lógica, funciona como as perguntas, como a linguagem que faz furo no real. Para além do estranhamento, a busca pela interlocução como forma de construção de saber é outro elemento considerado fundamental pelos narradores (N4,

N5, N10, N12, N14, N15, N16 e N19). É na interlocução com outros profissionais que o saber encontra mais uma possibilidade de esvaziar-se, que o profissional encontra, a partir do olhar do outro, aquilo que ele mesmo não consegue enxergar. Assim, a interlocução funciona também como mais uma forma de fazer furo no real, por funcionar, como espaço de construção de saber em que a palavra circula.

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7.2- O CUIDADO DE ENFERMAGEM NA PSICOSE: O ANTEPARO DA

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