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O cuidado de enfermagem e seus saberes: aproximações epistemológicas

5.3 CUIDADO DE ENFERMAGEM E INSTITUIÇÃO: O ‘JÁ DITO’ E ALGUMAS INTERROGAÇÕES

6. O cuidado de enfermagem e seus saberes: aproximações epistemológicas

Pesquisadores, acredito eu, precisam estar bem embasados por fundamentos acadêmicos (doutrinários) e filosóficos para empreender uma pesquisa, mas não para conformar-se, o que poderia sacrificar a criatividade(165:p.76).40

Esta tese dedica-se a aprofundar41 a busca de interlocuções possíveis entre o cuidado de enfermagem a psicóticos e a proposta de uma Clínica do Sujeito embasada pela teoria psicanalítica a fim de identificar e analisar alguns princípios que norteiam essa prática de enfermagem. Nesse sentido, busca-se aclarar e situar os fundamentos epistêmicos que norteiam esse cuidado que se propõe dirigido ao sujeito: um sujeito que se afasta da concepção cartesiana do ‘Penso, logo sou’. Concepção de sujeito esta que também demarca limites com outras concepções que o compreendem senhor da razão, de sua consciência, a quem se pode, consequentemente, educar, de quem se pode saber, aprioristicamente, a quem se permite conscientizar.

Na introdução desta tese, identificou-se, a partir de diversos autores, uma necessidade de construção, inovação e o arejamento das práticas de enfermagem em psiquiatria/saúde mental, quer seja em função do cenário nacional e das mudanças ocorridas desde a década de 80, quer seja em função dos obstáculos enfrentados por enfermeiros quando, diante das questões clínicas cotidianas, não encontravam respaldo nas teorias por eles aprendidas para cuidar dos portadores de sofrimento mental. A partir da Reforma Psiquiátrica, observa-se uma transição para um fazer em equipe interdisciplinar, fazendo com que o conhecimento/saber consolidado pela enfermagem psiquiátrica fosse desalojado e, para pelo menos alguns enfermeiros psiquiátricos, isso significou lacunas em relação ao tipo de saber requerido para sustentar essa outra clínica, diferente daquela estruturada por Peplau(91), inspirada na psicologia do ego e na teoria da comunicação. Diante dessa realidade, passaram a buscar contribuições de outros arcabouços teóricos, dentre eles, a teoria psicanalítica.

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Tradução livre de: “Researchers, I believe, need to be well grounded in the pedentic and philosophical underpinnings of the research enterprise but not for conformity, wich can sacrifice creativity” (165:p.76).

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Pesquisadores brasileiros e de outros países vêm tecendo paulatinamente essa interlocução, apontando possibilidades(2,8,163,166- 169) e também lacunas, vazios que requerem a construção de algo(9,67).

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Alguns enfermeiros e pesquisadores empreenderam estudos e pesquisas, tomando a teoria psicanalítica por arcabouço, com o objetivo de, com olhares diferentes voltados para os impasses clínicos, propor estilos diferentes de cuidado, que conseguissem reconhecer e alcançar a singularidade de cada sujeito e suas formas únicas de sofrimento psíquico. Nessa direção, está a contribuição de Kirschbaum(2), de Garcia(8) e de Silveira(170). Compreendo essas iniciativas como formas de construir bordas nas lacunas existentes, propor respostas possíveis aos desafios que a clínica da psicose impõe cotidianamente aos profissionais. Seguindo essa direção, identificar os princípios que norteiam as práticas de cuidado de enfermeiros que se reconhecem influenciados pela teoria psicanalítica, é uma forma de continuar essa construção de bordas, com uma discussão que, partindo das práticas de cuidado, propõe pensar os princípios que as sustentam. Propor identificar e analisar esses princípios norteadores desse cuidado é, em última análise, tentar compreender como esses profissionais se apropriam da teoria psicanalítica e, a partir dela, constroem saberes que norteiam suas práticas, ainda que tais saberes, por vezes, se apresentem sob a forma de um conhecimento tácito.

Um estudo epistemológico acerca do cuidado de enfermagem empreendido por Barbara Carper(171) identificou, no conhecimento de enfermagem, padrões, formas e estruturas similares e, por isso, passíveis de serem sistematizadas em quatro Padrões Fundamentais de Saber: Padrão Empírico, Ético, Estético e Pessoal. Baseada nesse trabalho, posteriormente, a pesquisadora Patricia Munhall42(165,172), rediscutindo os Padrões de Saber, propôs um quinto Padrão que ela denominou Unknowing, aqui traduzido por Não-saber.

Mas por que pensar o cuidado a partir de Padrões de Saber exatamente nesta tese em que se propõe contribuir para o arejamento de práticas a partir de uma concepção de sujeito? Algumas respostas podem ser assim apresentadas.

Primeiramente, ao buscar o saber que sustenta as práticas de enfermagem, Carper(171), embasada por propósitos cartesianos, esquadrinha o cuidado, definindo Padrões. Mas sua empreitada encontra seu limite na ousadia da própria proposta, a saber, chegar-se a uma teorização que alcançasse a totalidade do fazer em enfermagem, ou seja, do cuidado de enfermagem. Carper(171) encontra o limite de sua própria epistemologia quando depara-se com a complexidade e dificuldade impostas pelas questões voltadas aos elementos Estético e

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Pessoal do saber em enfermagem. Mas nem por isso recua e, assim, ao deixar e apontar lacunas, possibilita a outros pesquisadores os avanços no sentido de situar bases epistemológicas do cuidado.

Dentre esses pesquisadores, encontra-se Munhall que, com seu novo padrão, cria um quase antipadrão43. Se Carper toma o empírico como padrão primeiro e pensa os demais por meio dele, Munhall o esvazia, ao propor a existência de uma nova forma de cuidar: aquela que se baseia no Não-saber. E, nesse sentido, torna-se possível uma interlocução com um cuidado de enfermagem que se articula a partir da Clínica do Sujeito.

Enfim, uma terceira resposta se apresenta. Essa se refere ao meu olhar, ou seja, à forma como tais Padrões foram lidos por mim. O campo do cuidado vem sendo demarcado ou nomeado a partir de diferentes ângulos: partindo das práticas para definir domínios(45), pelas funções que o profissional pode exercer(91), pelas necessidades humanas (Horta), pelos problemas de saúde, seus diagnósticos e todas as possíveis ações deles decorrentes, dentre outros. Assim dito, o cuidado vai sendo falado por um deslizar incessante de significantes que, por fim, aponta para um infinito, na medida em que se desliza no infinito das práticas, no incontável das funções, no inumerável dos problemas. Desta forma, ao ler os Padrões, vejo neles palavras que encerram lógicas que não conseguem alcançar a totalidade do que é ou possa ser o cuidado, mas que, ao introduzirem uma nomeação, introduziram também uma barra a esse sem fim de significação. Passaram assim a funcionar como significantes-mestre (S1) que barram uma produção infinita de significação na cadeia. Mas há que se cuidar, e isso vem sendo feito, para não tomá-los por caixas, para não se colar a esses significantes, uma vez que são mestres. Acredita-se, antes, ao contrário, na possibilidade de produzir, a partir deles, deslocamentos, ressignificações.

Ao apresentar o saber de enfermagem, e, por conseguinte, o cuidado por meio de aspectos ético, estético, científico e pessoal, Carper o faz a partir de elementos comuns a outras áreas do conhecimento, e assim, abre, a meu ver, possibilidades de interlocuções. O que torna a proposta de Carper interessante é o fato de incluir nos padrões o Estético e o Pessoal, os quais ela, embora tente defini-los em termos de padrões, acaba por identificá-los como complexos e difíceis, admitindo as limitações de seu empreendimento. Assim, diante dessas

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duas ponderações, compreendo que Carper, com seus padrões, abre possibilidades de interlocução. Interlocução esta que se torna ainda mais viável, a partir da proposta de Munhall e de seu “Unknowing”(165,172).

Este capítulo dedica-se a apresentar cada um dos cinco Padrões de acordo com os textos originais das referidas autoras, comentá-los, considerando outros estudos, explicitar possíveis noções ou conceitos a partir das influências teóricas de cada uma das autoras. Por fim, analisá-los a partir dos objetivos desta tese.

Barbara Carper(171), à época, compreendia que, para contribuir para o estabelecimento de uma ciência da Enfermagem, era necessário, num esforço científico, determinar o tipo de conhecimento específico desse campo, tornando-se assim possível organizar, testar e aplicar os conhecimentos produzidos por meio das pesquisas científicas.

Apoiada pelas concepções de Kuhn(173,174)44, Barbara Carper constata que a enfermagem não havia alcançado um nível de integração das ciências mais maduras. Pondera que, embora houvesse uma significativa produção de conhecimentos sistematizados, bem como teorizações, não se poderia afirmar que a enfermagem teria instituído seu paradigma(171).

O estudo de Carper(171) surgiu como um marco para a epistemologia da enfermagem por mudar a forma como enfermeiros passaram a conhecer seu mundo, seu fazer, valorizando-o e recuperando a importância da criatividade(175,176). Por sua importância, os Padrões Fundamentais de Saber de Carper passaram a ser considerados como um arcabouço teórico da enfermagem(165). Um de seus méritos reside no fato de contribuir para o avanço do conhecimento de enfermagem, seja por uma inquestionada aceitação ou pelas críticas que suscitou(177).

Carper(171), em suas discussões epistemológicas, apoia-se nas ideias do físico, professor de Filosofia e Educação, Phillip Phenix(177). Phenix sistematizou o conhecimento e seu significado em seis áreas básicas derivadas da experiência humana, os Campos de Significado

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Kuhn compreende que o progresso de uma ciência, em particular, e da ciência, em geral, se dá por meio de períodos de ciência normal no qual os cientistas, apoiados por um paradigma, constroem o conhecimento. Entretanto, problemas que colocam o paradigma anterior em questão passam a ser vistos como anomalias que geram crises, provocando o aparecimento de novas pesquisas que culminam com a proposição de um novo paradigma(173,174). Kuhn propõe uma perspectiva mais fluida para a compreensão da ciência e de seus avanços(180).

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(Realms of Meaning) a saber: Ética, Estética, Empírica, Sinoética ou Pessoal, o Simbólico e, por fim, o Sinóptico(177-179).

O estudo empreendido por Carper(171) identificou, no conhecimento de enfermagem, quatro dos seis padrões apresentados por Phillip Phenix. Tais padrões são distintos entre si, entretanto recomenda que não se pode aprender ou ensinar apenas um Padrão, sequer isolá- los ou negligenciar quaisquer um(171). A despeito dessa afirmação, a forma como Carper(171) apresenta os Padrões permite inferir uma supremacia do Padrão Empírico, sendo os demais vistos a partir dele(175).

À guisa de melhor compreender os quatro Padrões, tal como propõe Carper(171), faz-se relevante uma breve discussão acerca dos termos por ela utilizados em sua teoria na versão original. Carper utiliza-se dos termos “Knowledge” e “Knowing” quando apresenta os padrões fundamentais. Numa acepção mais geral, ambos remetem ao saber e ao conhecimento. Entretanto, “Knowledge” remete à ideia de conhecimento científico, aquele que passou pelos cânones do método científico, sendo assim validado, reconhecido. Por sua vez, “Knowing”, sendo saber, carrega, por seu sufixo ING, a conotação de processo(177).

Dessa forma, os “Patterns of Knowing”, ditos Padrões de Saber, têm no termo ‘Padrões’ a conotação de algo rígido, previamente definido, mas que pode também se alianhar, como saber, não um saber pronto, mas um saber em processo. Nesse sentido, observa-se, no trabalho de Carper(171), uma forte influência cartesiana(181), quando precisa todos os componentes ou aspectos que se fazem presentes no saber de enfermagem em relação ao cuidado. Mas, não se pode negar também que há um movimento da autora de não recuar, ao se deparar com elementos do saber de enfermagem que escapam ao modelo científico tradicional. Haja vista a inclusão, ainda que na forma de Padrões, dos elementos desse saber que são por ela compreendidos complexos e difíceis, ou seja, o Estético e o Pessoal.

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