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A necessidade de segurança do médico o leva a se refugiar nas classificações diagnósticas

3 CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS – B: A PSIQUIATRIA E O ENSINO EM SAÚDE MENTAL

3.5 A necessidade de segurança do médico o leva a se refugiar nas classificações diagnósticas

Retornando ao tema do “viés semiológico” desenvolvido por Ferreira (2000): .”.. o processo de formação médica prioriza os conteúdos programáticos, além de centrar a compreensão do processo saúde-doença no indivíduo biológico. ... O objetivo da semiologia é afirmar ou afastar a doença no indivíduo. A semiologia não se interessa pelo que é subjetivo, não tem por objeto conhecer o sujeito psíquico. À semiologia interessa o contexto social e familiar, em geral, como fatores de risco para a doença. Também não estuda a doença como fenômeno social: a doença existe no indivíduo, mas também na sociedade.”

Continuando:

“Abordar o paciente que está ou pensa que está doente e afirmar ou afastar a doença orgânica é tarefa fundamental do médico e indissociável da atuação da medicina. Por outro lado, limitar a tarefa do médico à investigação da doença orgânica reduz a prática médica. A História da Moléstia Atual só pode ser entendida pelo aluno como tomar a história da doença e não da pessoa. ... Assim, a desejada “relação médico-paciente” e a chamada “medicina integral”, ocorrem sob o “viés semiológico”, subordinadas à perspectiva da doença.” (FERREIRA, 2000, p. 119)

Ou seja, o método determina o que se pesquisa.

“A observação de alunos do 9º. Período permite verificar como estes muitas vezes ficam perplexos quando são levados a fazer a história de vida e a compreender o contexto familiar do paciente. “Mas, professor, isto é medicina?”, interrogava uma aluno...”

“Inicialmente, ao aluno parece inadequado interessar-se pelas questões subjetivas do paciente, pelo contexto da família sob o ângulo das relações emocionais, inteirando-se da dinâmica familiar. A tendência é abordar mesmo os problemas de saúde mental apenas pelos sintomas, entendidos como sinais de doenças. O paciente fica reduzido às manifestações sintomáticas, utilizadas para a constituição de diagnósticos sindrômicos, entendidos e classificados como “doenças.” Para o médico, o diagnóstico de uma doença mental ou de um conjunto de sintomas, classificados como “transtornos” na CID-10, oferece a segurança que ele precisa para excluir a doença orgânica e afirmar a doença psiquiátrica.” (FERREIRA, 2000, p. 120)

Ainda em Ferreira (2000):

“A subjetividade do paciente deve ser apreendida usando apenas a intuição e a sensibilidade pessoal, pois para estes aspectos o curso médico oferece, em geral, preparo teórico e técnico insuficientes.” ... “Os livros de clínica e de semiologia procuram estimular a melhor relação médico-paciente e a humanização do ato médico, baseando-se em princípios de solidariedade e na compreensão do ser humano doente. Esta abordagem de importância indiscutível é perfeitamente compatível com o modelo biológico. No entanto, mostra a inconformidade com o modelo, sem ultrapassá-lo.”

“As críticas à medicina biológica e tecnológica e as propostas de mudar a qualidade da relação médico-paciente muitas vezes não questionam a maneira de ensinar semiologia: como método clínico centrado apenas na investigação da doença, sem aprofundar outros aspectos do atendimento à criança. Aliás espera- se que a semiologia restaure a relação médico-paciente, contrapondo-se ao modelo tecnológico. O apuramento da técnica semiológica é afirmado como o antídoto contra o esvaziamento do método clínico e a garantia da relação médico- paciente.” (FERREIRA, 2000, p. 124)

Nesse sentido, alguns proclamam uma nostalgia das técnicas propedêuticas e manobras do Exame Físico do passado, que por serem da ordem do tato, aproximariam mais o médico do paciente do ponto-de-vista físico-espacial e, presume-se, assim também do emocional. O que pode até ocorrer, sob a égide da Transferência, mas sem nenhum critério norteador da postura do médico em relação a esses possíveis efeitos.

Mais à frente, do mesmo autor: “A semiologia no seu objetivo específico de diagnosticar as doenças orgânicas tem se mostrado bem eficaz. Não se pode pedir a ela o que ela não pode dar.” (FERREIRA, 2000, p. 124)

E finaliza:

“A crítica e a superação da medicina biológica e tecnológica não se dará, certamente, pelo retorno ao passado, restaurando a medicina liberal e outras práticas artesanais. O valor que está em causa é a integralidade do ato médico e a dimensão de cuidado da prática da medicina. Parece indiscutível que o ensino médico deve ter conteúdos humanísticos. Entretanto, estes conteúdos quando oferecidos permanecem à margem do curso e são vistos pelos alunos e mesmo por parte dos professores, não por todos, como atividade complementar, não centrais à formação médica. ... Para abalar o paradigma dominante talvez seja necessário construir novos modelos de prática médica. Modelos que levem a colocar sob tensão o núcleo do paradigma. As experiências interdisciplinares apontam para algo de novo, mas são ainda incipientes. As escolas de medicina não podem é se acomodar apenas ao discurso “humanístico” e manter a mesma prática e o mesmo modelo de produção do saber.” (FERREIRA, 2000, p. 125) 3.6 A dicotomia psicofarmacoterapia e psicoterapia

No bojo de toda essa transformação positiva no estatuto do paciente em Saúde Mental e da prática médica em relação a ele, continuaram a ocorrer várias confusões, relacionadas à dicotomia estabelecida entre, por um lado, a medicalização do doente e as abordagens consideradas psicoterápicas. Estudaremos cada uma destas vertentes separadamente e depois analisaremos os paradoxos e contradições de cada uma e do uso conjugado de ambas, no exercício da prática médica.

Inicialmente podemos observar que a Medicina contemporânea, sob o paradigma da concepção de Ciência moderna, tem trabalhado com conceitos forjados à luz das necessidades das pesquisas. Estas pesquisas em geral são fomentadas por instituições não-governamentais, patrocinadas por entidades privadas e/ou pela indústria farmacêutica, como facilmente se observa nas publicações indexadas e apoiadas pelos chamados Institutos de Saúde, ou pelo ocasional acréscimo, ao final das publicações, dos interesses concorrentes. Não se pode desconhecer que esse financiamento pela indústria introduz uma direção importante nessas descobertas, as quais notoriamente visam à utilização indiscriminada e massificada dos psicofármacos, de preferência estendendo-se aos médicos generalistas e a todas as outras áreas de especialidades, quando não por automedicação, por indicações não raro veiculadas pela mídia.

As diferentes abordagens feitas por várias especialidades em alguns momentos são discrepantes, incompatíveis, ou se excluem mutuamente. Esta incompatibilidade, amplamente conhecida na prática, muitas vezes pode-se atribuir a uma luta político-econômica de prestígio e mercadológica, que privilegiaria as abordagens técnico-cientificistas, porque inserida no contexto do mundo contemporâneo capitalista e globalizado.

Essa questão contraditória poderia ser analisada sob a ordem meramente prática e operacional dos interesses confluentes da sociedade de consumo: sistemas e planos de saúde, seguros, financiamento e agenciamento das pesquisas pela indústria farmacêutica, hegemonia científica do paradigma biológico dominando as publicações nos meios acadêmicos porque prestigiadas pelos agentes patrocinadores, etc. No momento, são questões que fogem ao escopo da nossa investigação, devendo contudo ser consideradas variáveis intervenientes para um possível aproveitamento futuro dos resultados obtidos nesta pesquisa.

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