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PRÉ-TESTE

7.3 Ponto de virada na pesquisa

Nessa etapa de construção da pesquisa já se pode vislumbrar a primeira “descoberta”: a dificuldade para selecionar um paciente, ligada ao preconceito contra a Saúde Mental e aos pacientes “psicossomáticos”, estava relacionada à expectativa da escuta com uma intenção terapêutica, como vemos:

Al.6: – “Para quê que eu vou selecionar o paciente, se eu não vou estar ajudando ele?”; “Eu acho que não estou ajudando o meu paciente, eu não sei se ele está melhorando”; “Eu não sei o quê que ela tem. E aí, quê que eu vou fazer?”.

7.3.1 Reivindicação de respaldo

A necessidade de “respaldo” sentida e reivindicada pelos alunos repousa tanto no medo da excessiva empatia, da identificação com o sofrimento do paciente, por achar que teria que “sofrer junto” para melhor compreendê-lo. Isto gera uma angústia que levaria tanto a um imobilismo, quanto a uma certa necessidade defensiva de construir um “preconceito” contra o paciente, considerando-o como um “estranho”.

Esse “estranho”, conceito desenvolvido por Freud, revela um encontro com o que há de nós mesmos com o incompreensível, o inassimilável, o que precisamos recalcar. A necessidade do recalque, como estrutura fundante da neurose, é um dos pilares de sustentação da nossa existência no mundo, como forma de sobrevivência às exigências da civilização.

Observe-se as demandas feitas pelos alunos de respaldo, no sentido de aliviar seu medo e insegurança:

Al.1: – “As nossas dificuldades a gente discutiu muito”; “As dúvidas que eu tinha, eu trouxe.”; Al.2: – “É uma coisa tão difícil, ainda mais em posto...eu fico até, eu chego em casa com vontade de chorar, e me sentia covarde, menor e inferior por causa disso.”

Sentimento de culpa do médico, que se sente responsável pelo paciente: Al.2: – “Eu achei que foi falha minha”; “Me senti despreparada, sabe, como se eu tivesse errado na condução daquele caso ali”.

7.3.2 A questão da identidade médica

Para o exercício da “arte de curar”, como fala Hipócrates em nosso juramento, devemos suportar as agruras do enfrentamento com a morte, a dor, o sofrimento, a impotência, a castração – o que, em última análise, nos remete ao encontro com nossa própria “falta-a-ser” (conceito lacaniano). Até que ponto a prática médica não requereria ou mesmo exigiria o desenvolvimento ou a exacerbação de uma pretensão “fálica” inicial como pilar ético da própria profissão?

Pode-se observar que esse sofrimento em suas profundezas remete ao ser do próprio médico, em sua relação com a identidade médica.

7.3.3 A escuta vista como terapêutica

A constatação deste “ponto-de-virada” foi a descoberta, feita pelo pesquisador, da escuta vista como terapêutica sendo uma dificuldade, como se vê nos relatos a seguir:

Al.3: – “Como que eu posso conduzir isso aqui sem uma proposta de terapeuta da paciente, que eu não daria conta de ser a terapeuta dela como clínica.”; “Se eu não puder encaminhar para um psiquiatra, quê que eu posso fazer com ela?”

Al.4: – “Ainda restam essas dúvidas do quê que eu vou fazer depois, se eu vou dar conta de continuar ajudando essa paciente depois.”; “Se a gente puder fazer alguma coisa depois com isso... não poder dar uma ajuda pra pessoa depois... se a gente puder dar esse retorno pra paciente...”; “Acho que se ela estivesse mais bem- resolvida assim, talvez nem essa dor ela não teria.”; “Mesmo sendo a paciente fazer uma análise assim, mas não um retorno, parecendo alguma coisa terapêutica, mesmo.”; “Se ele achar que ele não dá conta de resolver aquele problema, que seja encaminhar.”

A “escuta” vista como catarse: Al.6: – “Se ela for escutada mais vezes, isso vai ser terapêutico”; Al.8: – “Acho que é aquelas coisas de tentar fazer depois uma psicoterapia, dessa comportamental, é meio que a gente ficava focando os problemas atuais, e as vezes ia na família e tal, mas era muito baseado nas coisas atuais da pessoa assim. Era uma coisa bem do agora.”

7.3.4 A observação-participante: o pesquisador como instrumento

A partir da constatação do interesse profundo dos alunos em “ajudar” o paciente e, ao mesmo tempo, de sua raiva e revolta por sua própria impotência, o pesquisador, enquanto observador-participante, num lugar de identificação com os sujeitos da pesquisa, pode então fazer uma descoberta que foi considerada por ele mesmo como um “ponto-de-virada” nesse processo de construção da pesquisa- ação.

Durante todo esse processo de construção da pesquisa, o pesquisador sentia ou até mesmo intuía as dificuldades relatadas pelos alunos, mas ainda não conseguira formular uma visão clara de onde se situaria o “nó” que dificultava a transmissão dos objetivos. Nesse momento, ele pode vislumbrar a diferença de perspectiva fundamental.

Todo o enfoque percebido pelos alunos (ou dado a eles pelas concepções das disciplinas de Psicologia Médica no currículo atual) era que a escuta do paciente propiciava, pelo desabafo, uma “catarse” - ou seja - a perspectiva de abrir um espaço para que o paciente pudesse falar teria por si só um efeito terapêutico. Isto é um fato incontroverso, conhecido sobejamente, da função terapêutica do médico.

7.3.5 O medo do desconhecido “estranho” e da responsabilidade

Freud, em 1919, descreveu a possibilidade do médico se introduzir nesse desconhecido “estranho” do paciente. Essa situação é vivida como constrangedora pelo médico, ao desencadear um grande medo pela responsabilidade que ele estaria assumindo na condução do caso. Haveria necessidade de uma supervisão contínua por um outro profissional que estivesse habilitado para tal? O médico tem consciência de suas limitações – de que sua formação não o capacita para este tipo de atendimento, que isso extrapola seu âmbito de atuação – e portanto, corretamente aliás, delega esta função para os profissionais habilitados, encaminhando o paciente.

Miller (1998), a esse respeito assim se pronuncia:

“Podemos esbozar uma tipologia de los oyentes de quejas, pues el analista no es el único oyente de quejas em la sociedad; el médico también es um oyente de quejas, pero, uma vez que há oydo la queja, pasa a interrogar el cuerpo. Preimero lo escucha a usted y después, interviene com lãs manos o com algunos instrumentos. Terminando por el escáner, ahora, donde uno no tiene nada que

decir: com el escáner se termina la palabra, es uma pura lectura automática del cuerpo mudo; el cuerpo no es mudo, es el sujeto el que se debe callar cuando el aparato científico lee su cuerpo; usted no tiene nada que decir. Últimamente escuché que, no sé em que país, habían olvidado el paciente em el escáner por 27 horas...i um poco de descuido! Es decir, hay um saber en el cuerpo, hay um aparato para leerlo y el sujeto que habla, el ser hablante, está realmente anulado por esta operación, a tal punto que, uma vez la lectura es hecha, se olvida totalmente, como um cadáver, el ser hablante.

Esse es um oyente de quejas, el médico, quién, después de uma sessión preliminar, em cierto modo, pasa a interrogar el cuerpo. A vezes, hay que decir, hay médicos que no hacen eso; um médico general, por ejemplo, empieza a entender que mientras más escucha al paciente, menos necesita interrogar al cuerpo. He visto a um médico general – por supuesto analizante – poco a poco convertirse em uma suerte de psicoterapeuta analista, solamente postergando el momento de interrogar al cuerpo; interrogando poquito el cuerpo para ver que no haya nada orgânico grave, y descubriendo que el paciente volvia solamente para repetir su queja; es como el reinvento del psicoanálisis, el reinvento salvaje del psicoanálisis.” (MILLER, 1998, p. 28-29)

7.3.6 Causas da omissão

O medo da responsabilidade paralisa o médico, o que o leva a se omitir, como podemos ver:

Al.2: – “Medo do quê que você vai ter que dar pro paciente depois, entendeu? Dar atenção?”; “Além dessa responsabilidade - entre aspas assim - pela criança que realmente tinha uma doença e ainda pegar os problemas dela.”

Al.3: – “Pelo fato da gente colher a HV a gente vai ter que suportar tudo, né?” Al.4: – “Só abrir, tipo fazer essa única vez e nunca mais fazer nada – isso que eu acho difícil assim.”; “Ou você fica querendo resolver tudo, ou você fala assim, você se resolva.”

7.3.7 A mudança de percepção no papel do médico

Esta questão ética e o dilema do médico sofreram mudanças que foram captadas nos Pós-Testes, da forma como se segue:

Falta de clareza sobre a questão ética: Al.2: –“Até que ponto eu devia ir e até que ponto é problema dele?”;

Concepção de Retificação Subjetiva e responsabilização do paciente: Al.3: – “...o médico saber que ele é agente de transformação, mas transformar o paciente como ele próprio agente de transformação na vida dele, na história dele.”

O médico como agente de transformação social: Al.3: – “É eles que vão ver o quê que eles podem fazer por eles mesmos.”

Questionando o lugar e o papel do médico: entretanto, ao evitar ou fugir desse encontro (que é sempre faltoso mesmo), escapa-lhe uma oportunidade

preciosa – a de conhecer com um pouco mais de profundidade o seu paciente. Ele se sente incapaz de formular pelo menos uma hipótese diagnóstica prévia , para poder se situar quanto a seu próprio lugar na transferência feita por aquele paciente, o que constitui a única bússola capaz de nortear com alguma segurança a abordagem e a condução de um caso.

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