• Nenhum resultado encontrado

NOVAS DIRETRIZES CURRICULARES PARA OS CURSOS DE MEDICINA

CAPÍTULO III – A EDUCAÇÃO MÉDICA NO BRASIL

3.4 NOVAS DIRETRIZES CURRICULARES PARA OS CURSOS DE MEDICINA

Segundo STELLA (2007), a construção das Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação, na área da saúde, tem sua origem nos questionamentos sobre o ensino superior, iniciados na década de 1960, entre os quais se destacava o seu isolamento do mundo do trabalho, formando profissionais com perfil não adequado às necessidades sociais.

Embora tenha havido algumas tentativas de superação daquele modelo, durante todo o período da ditadura militar (1964-1984), as idéias de renovação foram reprimidas. As reformas na Educação se limitaram aos aspectos organizacionais, os currículos continuaram a ser rigidamente definidos pelo extinto Conselho Federal de Educação, e cada vez mais se acentuou a segmentação entre formação básica e profissionalizante. (STELLA, 2007).

Na área da saúde, durante esse período, configurou-se um significativo movimento social pela reforma sanitária, que possibilitou a conquista paulatina do direito universal à saúde, e que pautou o setor de educação para a necessidade de construir projetos pedagógicos voltados à formação de profissionais capazes de atuar com qualidade e resolutividade no Sistema Único de Saúde.

Contribuiu muito para isso a tendência de reorganização das práticas, nas áreas pública e privada, buscando a diminuição de custos fosse para garantir a atenção universal, fosse para aumentar a lucratividade. Essa reorientação das modalidades de atenção fez surgir em várias partes do mundo, demandas e pressões para reorientar a formação de profissionais, exigindo perfil e capacidades distintas das produzidas pelo modelo hegemônico de formação. (FEUERWERER, 2002).

Com a retomada da democracia, a discussão sobre a adequação do sistema de educação é reaberta, e com a promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB em 1996, é dada às universidades a autonomia didático- científica, assegurando-lhes entre outras atribuições, a de fixar os currículos de seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes. (STELLA, 2007).

O processo de construção das Diretrizes Curriculares Nacionais, teve início formalmente com a publicação do Edital 4/97 da SESu em 10/12/97. Este processo, apesar das dificuldades enfrentadas, foi muito rico e envolveu vários atores da educação e da sociedade em geral nas discussões das diretrizes para as várias áreas do conhecimento.

Na Educação Médica, a discussão se pautou na necessidade de introdução do novo paradigma, embasada principalmente pela Conferência Mundial de Educação Médica realizada em Edimburgo, em 1988, que discutiu os resultados dos questionamentos apresentados às cinco federações que compõem a World Federation of Medical Education (WFME) sobre as necessidades de mudanças na educação superior e as demandas da área da saúde, e gerou uma proposta de reorientação do modelo de formação médica, que ficou conhecida com “Declaração de Edimburgo”. (STELLA, 2007).

A histórica VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986 e o próprio movimento da reforma sanitária que resultou na criação do SUS, associada a outros estudos e documentos, como os produzidos pela Organização Pan-Americana de Saúde e os resultantes da 2ª Conferência Mundial de Educação Médica (Edimburgo, 1993) e de outras Conferências na América Latina; os resultados dos Projetos UNI; as

iniciativas da Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação da Educação Médica – CINAEM; e a ação efetiva de entidades nacionais ligadas à Educação Médica e à Formação de Recursos Humanos em Saúde, como a Associação Brasileira de Educação Médica – ABEM, e a Rede UNIDA; tiveram grande importância no processo de discussão das diretrizes curriculares dos cursos da área da saúde.

Também foi importante a compreensão do documento produzido pela Conferência Mundial de Educação Superior realizada pela UNESCO em 1998, que propunha uma formação responsável, cidadã e ética, a capacitação para a educação permanente e o conhecimento do método científico, com base em novas práticas pedagógicas que facilitem a aquisição de competências, habilidades e capacidade para trabalhar em grupos. (STELLA, 2007).

Nesse contexto, onde os movimentos educacionais internacionais e os movimentos de reorientação da formação profissional em saúde caminhavam para a busca da adequação da educação superior às demandas da sociedade atendendo às necessidades sociais, o Edital nº 04/97 da SESu/MEC, convidando as universidades, cursos, sociedades científicas, ordens e conselhos profissionais para oferecerem contribuições para a elaboração das diretrizes nacionais dos cursos de graduação, veio em um momento mais do que propício para avançar na proposição de mudanças.

Segundo Stella (2007), o edital era democrático e inovador e permitia a flexibilização dos currículos plenos servindo de referência para os programas de formação. Privilegiava a indicação de áreas do conhecimento (e não de disciplinas com cargas horárias definidas, rompendo com a fragmentação dos conteúdos e a especialização precoce) e perfis orientados pelas demandas da sociedade, mais adequados, portanto às necessidades da população.

De acordo com a proposta, as diretrizes deveriam conter: perfil desejado para o formando; competências e habilidades correspondentes; conteúdos curriculares básicos e profissionais, essenciais ao desenvolvimento das mesmas competências e habilidades; estruturação modular dos currículos e adoção de metodologias de ensino e de avaliação abrangentes.

A partir desse momento, a atuação da Rede UNIDA foi fundamental para garantir a participação da comunidade acadêmica e da sociedade, estimulando seus associados a debaterem a questão e apresentando as respectivas contribuições. A Rede assumiu o protagonismo do debate e sistematizou as contribuições de todas as áreas, produzindo o documento “Contribuições para as novas diretrizes curriculares dos cursos de graduação da área da saúde”, encaminhado à SESu/MEC e apresentado ao Conselho Nacional de Educação.

Para a Rede UNIDA, o ensino da prática médica tinha como base o processo saúde-doença e as necessidades individuais e coletivas referidas pelo usuário e aquelas identificadas pelos profissionais de saúde. Foi a partir desse entendimento que a proposta apresentada incluiu as competências profissionais desejadas e apontou os caminhos que a escola deveria trilhar no processo de formação dos futuros médicos, sustentado por um novo perfil docente e um moderno sistema de gestão de cursos e avaliação. (STELLA, 2007).

Ainda segundo Stella (2007), a aprovação final das diretrizes se deu por meio da compatibilizarão dos conteúdos propostos pelas entidades e pelo MEC, em uma Oficina que reuniu a ABEM, a CINAEM, a Rede UNIDA, e representantes da Comissão de Especialistas do MEC, cuja realização foi articulada com o apoio da Secretaria de Políticas do Ministério da Saúde, interessada na formação de Recursos Humanos para o SUS, e pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). O texto acordado com as entidades, resultou no texto final, que com pequenas alterações deu origem ao Parecer n º 1.131/01 da Câmara de Ensino Superior, aprovado pelo CNE e publicado no Diário Oficial da União em 03 de outubro de 2001.

Para Almeida (2005), a Rede cumpriu um papel importante de mobilização durante o processo de construção das diretrizes (estimulando o debate e apresentando contribuições) e de facilitar o acesso a professores, estudantes, lideranças comunitárias, profissionais e entidades da área (ao publicar o conjunto de diretrizes da área da saúde – 1ª edição em 2003 e 2ª edição em 2005). Entretanto apesar da Rede de ter se destacado nesse primeiro momento, considera inegável a

Saúde, do Fórum de Pró-Reitores de Graduação das Universidades, dos Conselhos Profissionais, das Associações de Ensino, e de outras entidades da sociedade, além do próprio CNE que, entre outras coisas, se empenhou na agilização da aprovação. (ALMEIDA, 2005).

Para ele, o avanço é significativo, embora não haja consenso entre lideranças da área quanto à superação das amarras dos currículos mínimos ou quanto à garantia de que as orientações emanadas sejam de fato indutores de mudanças. Alguns autores, como Lampert, vislumbram um cenário bastante otimista:

Em relação às novas diretrizes curriculares, agora vigentes, pode-se dizer que trazem claramente um avanço de abrangência política e social no contexto das necessidades de saúde da população brasileira, e exigem que as escolas médicas tenham maturidade institucional para implementá-las. Conferindo flexibilidade, o conjunto das diretrizes respeita a singularidade de cada escola médica, que ganha com isso legitimidade e espaço para executar as reformas que se fazem necessárias no âmbito da sua realidade. (LAMPERT, 2002, p. 97).

Ainda que não seja unanimidade, o fato é que o cenário é bastante favorável, e considerando que as mudanças para que sejam efetivas, devam ser institucionalizadas, a exigência de que os cursos de graduação atendam às diretrizes vem reforçar os movimentos internos, fortalecendo as tendências de mudança e apontando um novo caminho para o curso médico, que prevê entre outras questões, a integração de conteúdos e o desenvolvimento de competências e habilidades; a utilização de metodologias ativas de ensino, que levem o estudante a aprender a aprender e a compreender a necessidade da educação permanente; a integração do ensino, serviços de saúde e comunidade, aproximando o futuro médico da realidade social; a articulação entre ensino, pesquisa, extensão e assistência; e acima de tudo, a formação de profissionais com autonomia e discernimento para assegurar a integralidade da atenção e a qualidade e a humanização do atendimento prestado aos indivíduos, famílias e comunidades.

Formar profissionais com perfil adequado às necessidades sociais em qualquer área implica em desenvolver capacidades relacionadas a aprender a aprender, a trabalhar em equipe, a comunicar-se, a ter agilidade diante de situações- problema, a ter capacidade propositiva. Essas características não combinam com a

formação tradicional e com a mera transmissão do conhecimento. Por isso a grande pressão para a superação do modelo, e para a adoção de metodologias que favoreçam o desenvolvimento do espírito crítico, da capacidade de reflexão, e a participação ativa dos estudantes na construção do conhecimento. (FEUERWERER, 2002).

Muitas escolas haviam iniciado seus processos de mudança, entretanto até aquele momento, a maioria deles voltado para reformulações curriculares pontuais, a introdução de metodologias ativas de ensino em uma ou outra disciplina, e mudanças tímidas de cenários, impactando de forma muito limitada na formação do médico. Poucas eram as iniciativas que davam conta da mudança de paradigma, rompendo efetivamente com o modelo hegemônico.

As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação, na área da saúde, constituem-se em mudança paradigmática do processo de educação superior, de um modelo flexneriano, biomédico e curativo para outro, orientado pelo binômio saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, na perspectiva da integralidade da assistência; de uma dimensão individual para uma dimensão coletiva; de currículos rígidos, compostos por disciplinas cada vez mais fragmentadas, com priorização de atividades teóricas, para currículos flexíveis, modulares, dirigidos para a aquisição de um perfil e respectivas competências profissionais, os quais exigem modernas metodologias de aprendizagem, habilidades e atitudes, além de múltiplos cenários de ensino. (STELLA, 2007, p. 01).

O perfil proposto para o profissional formado, nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina10, assume definitivamente

o desafio de consolidar a inter-relação da área de formação de recursos humanos em saúde com os serviços de assistência à saúde:

o médico com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença, em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano. (ALMEIDA, 2005, p. 46).

Uma outra questão importante no processo de formação, valorizada pelas diretrizes curriculares da área, foi a abordagem em relação à avaliação, seja em relação à avaliação do processo de ensino-aprendizagem, que passou a levar em conta

10

competências e habilidades além do conteúdo desenvolvido e deverá adequar-se ao novo modelo, centrado no aluno e não mais no professor; seja em relação à avaliação do curso como um todo, considerando que conforme o Art. 13 (caput), a implantação das diretrizes deverão ser “acompanhadas e permanentemente avaliadas, a fim de permitir os ajustes necessários ao seu aperfeiçoamento.”

A aprovação das diretrizes foi um passo importante na construção da mudança paradigmática da Educação Médica, mas esta somente se dará quando for superada a fase de inovação em que se encontram muitas escolas médicas, introduzindo isoladamente alguns dos componentes do conjunto proposto pelas Diretrizes, tais como a prática extra-muros, as metodologias ativas de ensino- aprendizagem, a interdisciplinaridade e a produção de conhecimentos articulada com os serviços. (STELLA, 2007).

Para superar esse desafio e alcançar um patamar mais consistente de mudança, a Educação Médica tem um longo caminho a percorrer, conforme definido por Almeida (1999), onde:

têm lugar as mudanças que buscam introduzir uma nova ordem no processo de produção de médicos e nas suas relações com a estrutura socioeconômica. Ou seja, engloba todo o contexto e a própria sociedade. Envolve a essência do próprio processo de produção do conhecimento, a construção de novos paradigmas e os determinantes histórico-sociais.(ALMEIDA, 1999, p. 11).

A avaliação, se entendida como parte do processo de mudança, pode iluminar esse caminho, contribuindo para uma verdadeira transformação na Educação Médica.