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Público e Privado: redes sociais como palco público para a exposição do íntimo

3 A INTENSA PRESENÇA DAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NA

3.1 Público e Privado: redes sociais como palco público para a exposição do íntimo

“na virtualização são as próprias noções de público e privado que são questionadas” (Lévy, 1996).

Neste tópico pretende-se mostrar como as tecnologias e, neste trabalho, mais precisamente, as redes sociais, despertaram o ensejo pelo olhar do outro que culminou na exposição demasiada da privacidade ao que é de domínio público (BRUNO, 2006). Essa exposição leva-nos a reflexões acerca do deslocamento entre público e privado, sobre o sentido de intimidade, da constituição da subjetividade contemporânea e da construção de identidades (THEBALDI, 2014).

Com o advento da Web 2.0, o indivíduo e sua vida comum passam da tentativa de estar na mídia para o ato concreto de criar o seu espaço midiático e ter o seu público. Ampliaram-se as possibilidades de visibilidade com as redes sociais, cuja estrutura favorece a exposição pública e a interação de seus usuários na rede mundial de computadores.

A intermediação das TICs nos modos de ver e ser visto do mundo contemporâneo, segundo Bruno (2006), reconfiguraram os limites entre o que é público e o que é privado e a topologia da subjetividade ganhou novos contornos. Entretanto, isso é uma marca da atualidade, pois na modernidade espaços públicos e privados eram bem demarcados.

Na modernidade, o olho público era associado à interdição e à norma. Já a esfera privada era morada da intimidade e local de liberdade perante a ordem pública. O olhar do outro servia para ativar o superego, uma espécie de juiz da moral que “impõe renúncia à natureza, aos instintos, pulsões e desejos” (BRUNO, 2013, p. 78).

Para a subjetividade moderna, a intimidade deveria ser resguardada ao máximo, pois era o lugar de segredo e da verdade, dotado de certa opacidade: “o espaço íntimo, interior e privado, é tido como uma realidade autêntica, em que o engodo só se é possível malgrado o próprio sujeito” (BRUNO, 2013, p. 64). A vida em segredos gerava uma sensação de sufocamento aos indivíduos, pois havia uma certa “tirania da intimidade” (SENNETT27, 1995 apud THEBALDI, 2014, p. 117).

No século XIX, por exemplo, o uso de diário era uma prática constante. Faz-se necessário explicar o que é diário porque a geração “Z” pode não conhecer: um caderno de anotações para relatar, objetiva e subjetivamente, os acontecimentos diários contando para si mesmo o que tinha de mais secreto. Para evitar que suas particularidades pudessem ser reveladas, o diário era fechado com um cadeado e a chave ficava em posse do autor e dono do caderno, em local seguro. Seus principais temas eram: o amor, a sexualidade, a saúde e o corpo (BRUNO, 2013).

No século XX ainda era visto o diário em papel até que a passagem para o século XXI trouxe o então diário virtual: o blog. Ele tinha, a princípio, o mesmo objetivo de um diário, mas era compartilhado com qualquer internauta que tivesse afinidade com o assunto. Além disso, ainda contava com recursos multimodais - como foto e vídeo - e a possibilidade

de receber comentários (interatividade), ou seja, não era só o olhar do outro, mas o palpite do outro.

Posteriormente, também na Internet, surgiram as redes sociais e a exposição de si ficou ainda mais frequente. Em 2013, proliferam nas redes as selfies28, fotos tiradas de si próprio. Elas encurtaram a descrição escrita e, ao mesmo tempo, serviram como prova incontestável de algo que tenha ocorrido. O espelho era o grande aliado das selfies, até que o celular foi equipado com câmera frontal, na qual o retratista podia se ver e, recentemente, surgiu no mercado o “pau de selfie”, que é um bastão para encaixar o celular com o objetivo de ampliar o horizonte da fotografia.

Isso contribuiu para tornar-se hábito postar relatos íntimos e cotidianos nas redes sociais: onde está, o que está comendo, o que está assistindo, com quem está e o que está sentindo (incluindo opiniões em momentos de raiva). O advento da sociedade-confissionário (BAUMAN, 2011) alterou o conceito de privacidade:

[...] a privacidade invadiu, conquistou e colonizou a esfera pública, mas ao preço de perder o seu direito ao segredo, seu traço distintivo e privilégio mais caro e mais ciumentamente defendido [...]. Em uma surpreendente inversão com relação aos hábitos dos nossos antepassados, porém, perdemos a coragem, a energia e principalmente a vontade de persistir na defesa desses direitos, daqueles insubstituíveis elementos constitutivos da autonomia individual. Aquilo que nos assusta hoje não é tanto a possibilidade da traição ou da violação da privacidade, mas sim o seu oposto, isto é, a perspectiva de que todas as vias de saída possam ser bloqueadas (BAUMAN, 2011).

Portanto, o que era da vida privada, a intimidade, contida em páginas trancadas de um diário, tornou-se deliberadamente pública, mesmo sem ter ideia de quem possa ser o seu público, já que mesmo compartilhando só com amigos, estes podem salvar a postagem e/ou compartilhá-la em outras redes. O próprio autor da postagem pode permitir que estranhos vejam, dependendo de como a rede social foi configurada.

Buzato e Severo (2010) relatam que uma pesquisa feita em 2005 com cerca de quatro mil estudantes de uma universidade dos Estados Unidos, demonstrou que a maioria dos usuários expõe sua privacidade nas redes sem se preocupar com as configurações de segurança sugeridas pelo próprio Facebook. Já Bruno (2013) apontou em seu livro que os

28 Selfie — junção do substantivo self (em inglês "eu", "a própria pessoa") e o sufixo ie — ou selfyé um tipo de fotografia de

autorretrato, normalmente tomada com uma câmera fotográfica de mão ou celular com câmera. Foi considerada a palavra internacional do ano de 2013 pelo Oxford EnglishDictionary. Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Selfie>. Acesso em 04 jan, 2016.

jovens tendem a continuar expondo dados pessoais em redes e tecnologias sociais digitais, porém agora parece haver uma preocupação maior em manter seus perfis de redes sociais de modo privado, ou seja, compartilhado apenas com amigos: 62% desses usuários têm essa procupação.

Na atualidade, a vida privada, cotidiana, do cidadão comum é exposta nas mídias digitais (mas não só nelas) para ganhar visibilidade, como “uma espécie de direito ou condição almejada de legitimação e reconhecimento” (BRUNO, 2006, p. 55). As TICs – incluindo-se também os reality shows televisivos - oferecem às experiências privadas uma cena pública, como afirmação de legitimação social.

Para Thebaldi (2014) a relação do “eu” com o “outro”, mediada pela Internet, constitui-se por dependência e indiferença.

Dependência, na medida em que para confirmar a existência do “eu” é necessário o olhar do “outro”. Nas próprias redes sociais encontra-se uma reflexão dessa necessidade do homem exibir-se para existir no mundo, explícita na frase: “Posto, logo existo”; uma paráfrase a célebre frase de Descartes: “Penso, logo existo”, que legitima a existência do sujeito por ser pensante.

Já a indiferença é posta no sentido em que o outro é reduzido apenas em um certo “padrão” para que o “eu” verifique seu próprio desempenho e performance.

Pensamos primeiramente na dependência. Para ser reconhecido, há uma incansável procura pelo olhar do outro. Bruno (2006) busca em algumas teorias29 já conhecidas possíveis explicações para o fenômeno. Por exemplo, Freud (1980) e Lacan (1987) atribuem a importância do olhar do outro para a constituição do “eu”. Um exemplo dado por Lacan é o estágio do espelho: o “eu” ao ser visto, legitima a sua existência. Já para Elias (1994) e Vigarello (1996) o olhar do outro é determinante para o comportamento social, a conduta e a interiorização de certas regras, como comer com talheres e se preocupar com a limpeza do corpo, principalmente das partes que ficam a mostra. Para Foucault (1975) o olhar

29 FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. Obras completas. Rio de Janeiro, 1984.

LACAN, J. O Seminário – Livro 2, Rio de Janeiro: Zahar, 1987. ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

do outro promovido pelo panóptico30 é responsável por estabelecer disciplina, pois ao olhar para a torre e pensar que há alguém observando, o interno se autorregula.

A hipótese histórica é a de que a atenção e o cuidado com o olhar do outro vão sendo progressivamente interiorizados e constituindo todo um campo de cuidados consigo, de autocontrole, autorregulamento e autovigilância que passam a reger a esfera íntima e privada (BRUNO, 2006, p. 57).

Embora a subjetividade contemporânea tenha herdado também a cultura disciplinar e normalizadora do panóptico, há consigo princípios sinópticos da cultura do espetáculo e da mídia de massa (BRUNO, 2013). Com isso, a exposição nas redes sociais está sujeita não só ao controle, como será visto adiante, mas também ao prazer, à sociabilidade, ao entretenimento, a uma cultura confessional e terapêutica, “multiplicando as nuances de uma subjetividade cada vez mais alterdirigida” (RIESMAN31, 1995 apud BRUNO, 2013, p. 67)

Se na modernidade a subjetividade era resguardada como forma de resistir ao olhar normalizador do outro e circunscrevia em ambientes privados (casa, psiquismo, confessionário), na contemporaneidade ocorre exatamente o inverso: expõe-se a intimidade ao exterior, ao olhar do outro, de tal sorte que a subjetividade é construída em espaço aberto e principalmente mediada por tecnologias, proporcionando visibilidade e a audiência.

A passagem do público para o privado e a transformação recíproca do interior em exterior são atributos da virtualização [...]. Uma emoção posta em palavras ou em desenhos pode ser facilmente compartilhada. O que era interno e privado, torna-se externo e público. A partir do momento que falamos, as entidades eminentemente subjetivas que são as emoções complexas [...] são externalizadas, objetivadas, intercambiadas, podem viajar de um lugar a outro, de um espírito a outro. (LÉVY, 1996, p. 73).

De lugar de recolhimento, a intimidade constitui-se em matéria assistida e produzida na presença explícita do olhar do outro. Tomando de empréstimo o termo “extimidade” proposto por Lacan, Tisseron (2011)32 designou-a como o desejo de o indivíduo

comunicar ou expor o seu mundo interior ao outro (TISSERON, 2011 apud BRUNO, 2013, p. 69).

30 Será conceituado e explicado no tópico 3.2.

31 RIESMAN, D. A Multidão Solitária. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1995. 32 TISSERON, S. Intimité et extimité. Communications, n. 1, p. 83-91, 2011.

O conceito de extemidade aqui sugerido por Tisseron (2011) não pode ser reduzido ao conceito de exibicionismo. A personalidade íntima, ao ser apresentada ao olhar do outro, busca validar-se. Tampouco pode ser interpretada como o oposto da intimidade, já que ela é a própria intimidade exteriorizada. Ressalta-se ainda que a extimidade configura-se “em um bem existencial que atua, ao menos, sobre o sentimento de existência, sobre o sentimento de devir e sobre a identidade pessoal” (BOLESINA, 2015, p. 5).

Nas mídias sociais on-line, por exemplo, o espectador participa ativamente da construção do “eu”, ao curtir uma postagem, comentar positiva ou negativamente, compartilhar fotos ou vídeos. A subjetividade, então, reside no imediatamente visível: “ a sua face visível não é apenas o reino do outro, onde sempre é possível mascarar ou mentir, mas também e conjuntamente o reino do próprio “eu” (BRUNO, 2013, p. 70). Assim, há um embaralhamento entre “a aparência e a essência, a ficção e a realidade, o público e o privado” (BRUNO, 2006, p. 63), bem típico da inserção da virtualidade no cotidiano dos indivíduos.

O caso 5 retratado na abertura deste tópico mostra a evidência desses embaralhamentos na vida coditiana contemporânea. Além disso, ao usar uma cena pública para discutir assuntos íntimos, da vida privada, que deveriam estar dentro do lar do casal, ampliou-se a possibilidade de julgamentos e a exposição demasiada resultou em linchamento virtual.

Falemos agora sobre a relação de indiferença constituída com o “outro” na contemporaneidade. Como afirma Thebaldi (2014) “mostramo-nos, ainda, em geral, pouco sensíveis e/ou envolvidos com as necessidades alheias” (p. 124). Além disso, percebe-se nas redes sociais que a preocupação com o olhar do outro está mais ligada à superação de limites e sucesso pessoal do que a imposição de normas, como era na modernidade. Passamos do fator regulador superego, para o ego; da culpa à angústia de não estar à altura de si mesmo; de Édipo a Narciso (com as selfies).

A realização tanto pessoal quanto social depende da aparência perante o olhar do outro: precisa-se estar no patamar do considerado ideal. Segundo Bruno (2013), na atualidade se o “eu” é um ideal, então ele está sempre adiante.

Além disso, a natureza não é mais o limite. A reconfiguração entre as fronteiras do que é público e privado também entrelaça com a redefinição dos limites entre natureza e cultura (artifício). A aceleração tecnológica tem produzido cada vez mais seres híbridos, ou

seja, em que o natural pode ser complementado com o artificial: tratamento de belezas – plásticas, regimes, estética, etc; e de temperamento – terapia e drogas psiquiátricas para depressão, por exemplo. Então, afirmar que o ideal não depende só da natureza é afirmar também que quase tudo é possível. Portanto, o ego ideal é regido por uma ordem pública, que dita padrões; já o limite é privatizado, caracterizado como insuficiência do indivíduo que não alcança esses padrões (BRUNO, 2013).

Temos, assim, mais um paradoxo: com as TICs as possibilidades de ser aumentam – seres híbridos, realidade virtual, fakes -, mas observa-se a busca por identidades “padrões”, pois recorre-se a amostra ou modelos subjetivos socialmente aceitos e reconhecidos. Entretanto, esses perfis não são estáticos, mas sim “ de mudança contínua e a todo instante” (DELEUZE, 1992).

Sendo assim, em um mundo contemporâneo líquido (BAUMAN, 2001) as identidades são igualmente líquidas (THEBALDI, 2014), pois além de estarem sempre mudando para alcançarem padrões momentâneos, também se revelam e se omitem nesse jogo de dentro e fora em que os limites do público e privado, da natureza e cultura, do virtual e atual, ofuscam-se.

Então, esse “eu” visível na Internet é autêntico ou artificial? Segundo Bruno (2006), pode haver plasticidade da imagem, mas a autenticidade também está naquilo que se aparece ser, no que se consegue ver. A verdade, então é o que se mostra. Um regime de visibilidade “consiste, antes, não tanto no que é visto, mas no que torna possível o que se vê” (BRUNO, 2013, p.15).

Como visto alhures (figura 1), algumas pessoas fazem perfis fakes para esconderem sua identidade civil, numa tentativa de anonimato, a fim de disseminarem ódio, discriminação, preconceito, manipularem números ou declarações e incitar à violência. No entanto, há outras que utilizam o próprio nome e sobrenome na Internet para expressar seus sentimentos, mesmo que esse ato seja revelador de uma personalidade cruel. Pessoas que outrora, fora da Internet, eram consideradas éticas, mas que na massa (de usuários e nas redes sociais) deixaram vir à tona uma personalidade oculta, como acontece em crimes de linchamentos (MARTINS, 2014).

Para Saflate (2016) o jogo do proibido/permitido passa a ser agora do possível/impossível. E se quase tudo é possível e o “eu” não alcança esse ideal, fica submerso

em um sentimento de culpa por não ter realizado seus desejos. Isso pode levar a uma implosão depressiva e o desconforto gerado pode resultar em violência. Isso, talvez, seria uma outra forma de compreender o comportamento nas redes sociais: o indíviduo descontente consigo mesmo ataca o outro, por meio de discursos de ódio.

De qualquer maneira, pensamentos que ficavam dentro de casa ou dentro de si mesmo, perderam o pudor e foram externalizados nas redes sociais. Por exemplo, a ira e o preconceito ao serem divulgados em espaço público e de grande alcance – a Internet - deixaram de ser algo reprimido e internalizado, para ser algo ostentado (BRUM, 2015).

Ao tornar esses pensamentos públicos, procura-se buscar pessoas com ideias semelhantes para conquistar aplausos (curtidas) e adoradores (seguidores). À medida que essa prática de exteriorizar a subjetividade ganha cada vez mais adeptos ao redor do mundo, converte-se em um entretenimento e anônimos ganham audiência.

Com essa incitação por falar sobre qualquer assunto nas redes sociais, inclusive expor sua intimidade, o indivíduo acaba se mostrando demais e revelando sua identidade, às vezes, mais do que ele próprio desejaria se não tivesse engajado nessa dinâmica acelerada da comunicação virtual. Com isso, são fornecidos elementos suficientes para inimigos, criminosos, ou qualquer cidadão contra-atacar.

A subjetividade contemporânea constitui-se, então, na própria exterioridade (extimidade) ao se fazer visível a outros. Logo, essa visibilidade, é dada (ao receptor) e proporcionada (ao emissor), sobretudo pelos meios digitais de comunicação de longo alcance, principalmente pela Internet. Conclui-se, portanto, que as TICs são, ao mesmo tempo, testemunhas e produtoras de subjetividade (BRUNO, 2006).