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Na rede e para além dela: o controle ao ar livre e o disciplinamento da massa

3 A INTENSA PRESENÇA DAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NA

3.3 Na rede e para além dela: o controle ao ar livre e o disciplinamento da massa

O poder exercido em confinamentos foi analisado por Foucault (1975) ao descrever a sociedade disciplinar dos séculos XVII e XIX. Esse tipo de sociedade foi sendo criada de maneira progressiva e disputando espaço com a sociedade de soberania, em que o poder era totalmente visível, sua força dependia dessa visibilidade e era centrado na figura do rei.

O poder disciplinar não objetivava castigar corpos, como era típico na soberania, mas de adestrá-los por meio de instituições disciplinares (confinamentos), tais como fábrica,

prisão, hospital, escola e família. O objetivo, então, passou a ser a sanção normalizadora, para reduzir desvios em direção a uma normalização. Para isso existia uma vigilância hierárquica (como o caso do panóptico) registros e exames que constituíam “o indivíduo como efeito e objeto do poder e do saber” (FOUCAULT, 1987 apud KANASHIRO, 2006, p. 76)

Embora ainda existam confinamentos atualmente, entraram em crise devido aos novos modos de controle: em meio aberto, móvel e dinâmico. O funcionamento do poder migrou de uma certa disciplina: infinita, longa e descontínua para um controle: ilimitado, curto e contínuo (BUZATO e SEVERO, 2010). Para entender essas e outras transformações da sociedade disciplinar de Foucault (1975) para a sociedade de controle, observemos a quadro 2, inspirada no texto de Deleuze (1992).

Na sociedade de controle a vigilância passou a ser descentralizada e propagada em espaços públicos. No controle ao ar-livre, executado com a ajuda das tecnologias digitais e informacionais, as fronteiras dos espaços foram ultrapassadas e tornaram-se permeáveis e não há mais distinção de dentro e fora.

Para o exercício desse controle, a palavra de ordem é modulação, que pode ser: (i) do salário que agora é por mérito competitivo; (ii) do capitalismo que opera com trocas flutuantes e com moedas distintas e; (iii) do controle que é universal e por meio computacional. Reflitamos melhor sobre este último.

O controle é operado com computadores e com a informação. Segundo Deleuze (1992), Felix Guattari já imaginava uma sociedade controlada por cartão e sendo operada por uma “modulação universal”. Nessa sociedade, o essencial é a cifra (senha) que marca o acesso ou à rejeição à informação.

Por exemplo, há situações em que o usuário esquece a senha ou por algum outro problema, mesmo o usuário sendo ele o sistema entende que não é. Assim, temos indivíduos “dividuais”, segundo Deleuze, pois mesmo sendo um só, o indivíduo se torna múltiplo, porque dependendo de uma senha, ora tem acesso, ora não tem. Isso seria uma consequência da modulação universal que nesse caso opera por um conjunto de códigos para verificar qual grupo de usuários está apto a adentrar no sistema.

QUADRO 2: SOCIEDADE DISCIPLINAR E SOCIEDADE DE CONTROLE

DISCIPLINAR CONTROLE

TEMPO HISTÓRICO Séculos XVIII, XIX e início XX Depois da Segunda Guerra Mundial

CONTROLE Em confinamentos.

Instrumento: Panóptico

Ao ar livre.

Instrumento: marketing, coleira eletrônica. EXEMPLOS Família, escola, caserna, fábrica,

eventualmente hospital e prisão

Empresa, Internet.

LINGUAGEM Analógica – comum a todos Numérica – geometria variável ORGANIZAÇÃO DA

SOCIEDADE

Moldes – moldagens distintas. Modulação – moldagem auto deformante. Mudança continua e a todo instante

TRABALHO Fábrica: alta produção e baixo salário. Concentrar, distribuir no espaço; ordenar no tempo; compor no espaço- tempo uma força produtiva cujo efeito deveria ser superior à soma das forças elementares.

Empresa: é uma alma, um gás. Salário por mérito. Estado de metaestabilidade, concursos, desafios.

EMPREGADO Da fábrica: visto e controlado como massa (pelo patronato e pelo sindicato).

Da empresa: motivado por competições, gerando rivalidades e divisões entre si.

SUBSTITUIÇÕES De: Fábrica Para: Empresa: nova forma de tratar o

dinheiro, os produtos e os homens.

De: Escola Para: Formação permanente e avaliação

contínua.

De: Exame Para: Controle contínuo

De: Hospitais Para: Resgate de doentes potenciais e sujeitos a riscos: “dividual” a ser controlado. De: Prisões Para: Penas substitutivas; coleiras

eletrônicas.

ESTADO Recomeçar sempre Nunca terminar nada

IDENTIFICAÇÃO DO INDIVÍDUO

Documento pessoal e matrícula. Par massa-indivíduo

Cifra/ Senha

Indivíduos dividuais.

Massa: banco de dados, de amostras.

DINHEIRO Moedas cunhadas em ouro Trocas flutuantes.

Diferentes amostras de moeda.

O HOMEM Produtor descontínuo de energia Ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo

MÁQUINAS Energéticas

Perigo passivo: entropia Perigo ativo: sabotagem

Computacionais

Perigo passivo: interferência Perigo ativo: pirataria, vírus. CAPITALISMO De concentração (produção) e de

propriedade. Foco: produção

Sobre-produção. Compra serviços e vende ações.

Foco: produto

CONQUISTA DE

MERCADO

Ora por especialização, ora por colonização, ora por redução dos custos de produção.

Tomada de controle, por fixação de cotações, por transformação do produto. FUNCIONAMENTO

DO PODER

Longa duração, infinito e descontínuo. De curto prazo, de rotação rápida, contínuo e ilimitado.

LIMITES Fronteiras, muros. Cartão eletrônico que abre ou barra o acesso além de detectar a posição do indivíduo. Modulação universal.

O homem passa ser controlado por uma coleira eletrônica implícita que, num processo análogo ao da prisão, obriga o usuário de Internet a ficar lá por certas (ou muitas) horas, conforme visto no quadro 1.

No final do século passado, muito se especulava a respeito da implantação chip eletrônico nas pessoas. A princípio parecia uma ideia de ficção científica, mas se analisarmos a díade humano-tecnologia, poderemos notar que ninguém mais consegue ser imperceptível. Cada computador possui um número de IP pelo qual é possível saber exatamente qual a localização daquele usuário. Uma pessoa com celular é facilmente rastreada e localizada. O mesmo acontece para quem utiliza aplicativos baseados em Global Positioning System (GPS), que podem ser utilizados no carro para encontrar endereços ou simplesmente para permitir aos usuários divulgarem sua localização nas redes sociais. Também podemos citar as câmeras de monitoramento espalhadas por toda a parte, que não filmam só os suspeitos, embora seja essa finalidade. Como se pode notar, o chip só não foi implantado...

Entretanto, hoje em dia mesmo sabendo que podem ser rastreadas e controladas, as pessoas não conseguem se desconectar. A vigilância eletrônica faz com que os indivíduos interiorizem os dispositivos sociotécnicos de controle do espaço e do tempo, pois eles fazem parte de um desejo exteriorizado (DE ALVES & SABARÁ, 2015).

Hoje em dia os meros usuários de redes sociais ganham papel de vigilantes no virtual. Com uma participação ativa e voluntária no sistema de vigilância, os bilhões de usuários no Facebook exercem o controle contínuo: “trata-se de uma vigilância mais generalizada, horizontal e mútua, a qual implica que o olho que tudo vê também por todos é visto” (BUZATO e SEVERO, 2010, p. 10). Por isso, é extremamente difícil uma gafe ou um pensamento mal interpretado passar despercebido.

Nessa direção, o caso 7 vem nos mostrar que o controle não é só exercido pelos seus discursos dentro da Internet- como aconteceu com Alícia e Justine (casos 4 e 1) -, mas por qualquer atitude, em qualquer lugar e em qualquer situação, já que as fronteiras in-off line são borradas. Nesse caso específico, mostramos que os recursos tecnológicos portáteis são grandes aliados para o registro de flagrantes, em que se é possível gravar a cena e publicar nas redes sociais (mesmo que impulsivamente). Ao exporem o caso, já com uma acusação, burlam a justiça institucional e buscam um poder de alcance maior, que endosse o julgamento. Assim, acreditam que ao tornarem a cena pública, os superiores tomarão as devidas providências.

No entanto, os algozes de hoje poderão se tornar vítimas amanhã se algum de seus discursos desagradar a alguém ou a algum grupo. Ao sentirem esse receio de trocar de posição, pode ser que alguns já estejam interiorizando o “sentir-se vigiado, que para Bruno (2006) há o mesmo princípio do panóptico: o olhar autovigilante, que ao sentir-se vigiado, regula-se. Isso provocaria uma autovigilância e um controle em seu próprio discurso, caindo por terra a sensação de liberdade proporcionada pelas redes sociais.

Essa seria uma outra forma de vigilância nas redes sociais, que é exercida pelos próprios usuários: a autovigilância. Para escapar de um linchamento virtual, o usuário precisa controlar o que posta para não se tornar vítima de retaliações on-line, com consequências, como vimos, além das redes.

No entanto, será que se todos exercessem o autocontrole seria suficiente para romper as ações sucessivas de linchamentos virtuais? Primeiramente, devemos refletir se é possível exercer essa autovigilância o tempo todo. O prazer em usar as redes sociais está, principalmente, na capacidade de comunicação a qualquer hora e com pessoas de qualquer lugar do planeta. Então, calar-se é incoerente com o objetivo da rede.

E se em vez de silenciar, ter apenas cautela com as palavras e pensar se o comentário ofenderá os grupos x, y ou z, por questões políticas, religiosas, ideológicas, culturais, etc? Isso parece-nos improvável por dois motivos: aceleração e extensão.

O primeiro seria a aceleração imposta pela Internet. Atualmente, ninguém para tudo que está fazendo para acessar da Internet, como se desconectasse do mundo atual para se conectar no virtual. As pessoas estão nos dois mundos ao mesmo tempo e para fazer ações simultâneas é preciso agilidade, que está mais relacionada ao impulso do que à reflexão. O impulso está relacionado ao automatismo do pensamento, com a percepção reduzida ao estímulo e resposta, conforme vimos no capítulo 2 (VIRILIO,1998).

O segundo, a extensão, seria a ausência de fronteiras geográficas na Internet. Com isso, é impossível conhecer todas as culturas e ideologias e ter a certeza de que seu post não ofenderá ninguém.

Pode ser que, futuramente, quanto mais usuários de redes sociais tiverem certeza de que esse tipo de atitude é passível de punição40, seja por meio do poder judiciário ou pela justiça popular, a autovigilância se torne cada vez mais frequente no cotidiano da sociedade

tecnificada. Nessa lógica da autovigilância não está em jogo “tanto o que somos ou fazemos, mas o poderemos nos tornar ou fazer” (ALBUQUERQUE e PEDRO, 2013, p. 12) tendendo a uma modulação (DELEUZE, 1992).

Por enquanto, pelos casos estudados, parece-nos que as pessoas no exercício da liberdade de expressão, tão almejada na época da Ditadura, utilizam a rede social como uma forte ferramenta para denúncias. Diante dos inúmeros casos presenciados diariamente nas redes sociais, com intuito de denunciar e agilizar a justiça, trouxemos para este trabalho os casos: 6, 7 e 8.

No caso 7, por exemplo, os dizeres que acompanham o vídeo já trazem um pré- julgamento e foi constatado nos comentários poucas opiniões na direção oposta. Não cabe aqui julgar a ação da enfermeira, mas demonstrar que as redes sociais tanto servem empoderar quanto para denegrir o cidadão comum.

Pelo exposto, Buzato e Severo (2010) acreditam que as relações na Internet não devam ser pensadas sob a lógica da sociedade disciplinar analisada por Foucault, mas pela sobreposição e interconexão de espaços (redes), pois há uma forma de poder que foge às características de confinamento e ao poder institucional, por ser móvel, dinâmica e contínua, ou seja, conforme descrita na sociedade de controle, pensada por Deleuze (1992).

Na mesma direção, Kanashiro (2006) considera que as análises sobre vigilância contemporânea se aproximem mais da sociedade de controle descrita por Deleuze (1992) do que do panóptico de Benthan, por funcionarem em meios abertos, sob um controle não sobre os indivíduos (sociedade disciplinar), mas sobre o fluxo. Entretanto, alerta que o poder disciplinar não aboliu o poder soberano, que continuou sendo exercido nos códigos jurídicos. Da mesma maneira, o controle descrito por Deleuze não exclui as técnicas de poder disciplinar descritas por Foucault; elas coexistem sobrepostas.

Esses pontos de convergência parecem descrever melhor a sociedade do século XXI. Nas redes sociais, os usuários ao serem movidos por um poder-prazer, são rastreados por sistemas inteligentes e isso gera perfis (um padrão de referência e classificação de indivíduos), que são invisíveis e fluidos. Esses perfis estabelecem padrões, que mudam constantemente de acordo não só com interesses econômicos, mas também políticos.

No entanto, ao estabelecer perfis - padrões como descrito por Deleuze - percebe- se também uma intensificação e generalização da disciplina, como a descrita por Foucault,

pois ao registrar cada movimento, informação e conexão, armazenando dados dos usuários, está implícito o exercício de um poder disciplinador (FOUCAULT, 1975).

Além disso, atualmente a capacidade de armazenamento, processamento e recuperação de dados é muito maior e muito mais rápida em relação a sociedade estudada no século XVII.