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2.2 Linchamentos: caminhos possíveis para compreensão

2.2.1 Perspectiva Sociológica

O termo “linchamento” é uma palavra do século XVII. Deriva do nome do juiz Lynch11 dos EUA, que difundiu uma penalidade para o que hoje conhecemos como linchamento.

Segundo Martins (2014), o ato de linchar é o resquício das ordenações Filipinas e das decisões da Santa Inquisição. Para esse autor, o linchamento é uma punição radical e extintiva do corpo do réu, cujo fim é exterminar e não reeducar ou restinguir à condição civil.

11 William Lynch, um fazendeiro americano (1742-1820) de Pittssylvania (Estado de Virgínia), criou um tribunal privado

para julgar e executar criminosos apanhados em flagrante prática de crimes graves. O Julgamento e a execução incumbiriam, decididos sumariamente, por uma multidão. Daí derivaram as expressões linchamento e Lei de Linch (DE JESUS, 2015).

Para Martins (2015) o linchamento é apenas uma das várias formas de violência coletiva que provém de uma inquietação social disseminada. É uma tentantiva da sociedade em violar a ordem onde esta foi rompida por condutas sociais condenáveis para, então, colocar a sociedade no rumo de uma sociedade almejada. Constiui-se, então, de “uma ação anômica no sentido de superar o estado de anomia” (MARTINS, 2015, p. 105).

Sendo assim, o linchamento não é uma violência original: é uma segunda violência, que deriva de um ato condenável. É sobretudo indicativo de que há um limite para o delito e, na lógica dos linchadores, para a violência há o crime legítimo (praticado por eles), embora ilegal, e o crime sem legitimidade (praticado pelo linchado).

Da perspectiva de Martins, qualquer linchamento é um fato lastimável, porque sonega à vítima o direito de se defender, o de ser julgada por um juiz imparcial, ou seja, é um julgamento moral, definitivo e sem apelo; produto da emoção e não da razão. Nesse sentido, todos os delitos são igualados: tanto o pequeno roubo quanto o assassinato

Nos linchamentos está envolvido o julgamento de quem não consegue refrear o desejo, o ódio e a ambição, e não vê limites para o desejar, o odiar e o ter, não pode conviver com os demais nem tem o direito a uma punição restitutiva que o devolva à sociedade depois de algum tempo e do castigo. Simplesmente, nega-se como humano. (MARTINS, 2015, p. 53).

Nesse ínterim, a prática de linchar indica a presença de rituais de exclusão ou desincorporação e dessocialização de pessoas, que pelo crime cometido, revelaram-se incompatíveis com o gênero humano e inaptas a conviver em sociedade (MARTINS, 2015). A violência que é característica dessa prática tem uma função social conservadora e altruísta.

A partir dessa perspectiva sociológica que estamos descrevendo, para estudar os linchamentos é necessário conhecer melhor a forma e a função do justiçamento popular que, para Martins (2015), provém da força do inconsciente coletivo e das estruturas sociais profundas:

As estruturas sociais profundas são as estruturas fundamentais remotas que, aparentemente vencidas pelo tempo histórico, permanecem como referência oculta de nossas ações e de nossas relações sociais. São estruturas supletivas de regeneração social, que se tornam visivelmente ativas quando a sociedade é ameaçada ou entra em crise e não dispõe de outra referência, acessível, para se reconstruir, fenômeno que se expressa nos linchamentos (MARTINS, 2015, p. 9-10)

A crise social que leva à prática de justiçamento tem de um lado a deteorização de uma hierarquia social pré-existente e de outro o desejo de conquista de direitos por categorias sociais até então excluídas (MARTINS, 2015).

Por isso, os linchamentos vêm justamente como forma de contestação da má distribuição de bens de direito e de justiça. Essa é a dimensão sociológica da justiça popular: forma de “resposta restaurativa a situações de anomia e de ruptura violenta de elementos fundantes da estrutura social” (MARTINS, 2015, p. 64). Além disso, cumpre sua função social ao fornecer “aos participantes uma compreensão das rupturas sociais que não estão inscritas no previsível e tolerável da cultura popular” (MARTINS, 2015, p. 65).

A justiça popular, para Martins, baseia-se no pressuposto da vendetta, ou seja, na concepção da função social restauradora da vingança. O linchamento acaba sendo, então, uma “forma extremada de uma necessidade social de vingança”. (MARTINS, 2015, p. 65). E quando não se tem motivos para vingar, o mote do linchamento passa a ser o castigo.

Segundo esse autor, há diferentes motivações para o ato de linchar. Nos bairros populares das grandes cidades, a principal motivação é o medo de ser vítima - de roubo, de estupro, de assassinato, de pouco caso. Já nas cidades do interior, a motivação é conservadora: de cunho moral e repressivo, defesa da própria classe média, do caráter fechado das elites ao estranho e ao de fora.

Para Martins (2015), é preciso considerar dois planos: a mente conservadora e a ações coletivas violentas justificadas por essa mentalidade, já que a prática conservadora de impor um castigo a quem tenha agido contra os valores e normas que regem as relações sociais pré-estabelecidas, ou as tenha colocado em risco, movem a população à prática de linchamento.

Ainda segundo os estudos do sociólogo (2015), os casos de linchamento crescem quando: (i) aumenta a insegurança em relação à proteção do Estado; (ii) descrença nas Instituições (polícia e justiça). A população acredita que elas são ineficazes nos cumprimentos de suas funções, pois não é raro ver um policial envolvido em algum crime ou ver criminosos serem absolvidos.

Essa desmoralização da polícia e da justiça teve início durante a Ditadura Militar (1964-1985) e as práticas de tortura e extermínio perpetradas pelo Estado nesse período. E o

fim do regime ditatorial não fez com que o Estado de direito e democrático se estabelecesse automaticamente:

Não se levou em conta a desordem do Estado ditatorial viabilizara o revigoramento e a difusão da cultura do poder pessoal, da vendeta, do arbítrio, do menosprezo pela pessoa e pelo corpo do outro, agora colocados nas mãos até de membros das forças policiais. Desprovidos, com mais frequência do que se possa tolerar, da distinção entre público e privado e da consciência de que não servidores do Estado e não de sua própria vontade, de seus instintos (MARTINS, 2015, p. 75).

Para se ter uma ideia, cresceu em 50% os casos de linchamento nos quatro primeiros anos da chamada Nova República (após o regime militar). A hipótese do autor é de que o pacto entre a burguesia e setores liberais oriundo das oligarquias rurais tenha reestimulado concepções e práticas relativas à justiça privada. Uma outra hipótese seria a contribuição dos esquadrões da morte em difundir a ideia da legimitidade da punição fora da lei, baseando-se na ineficiência das autoridades, que são lentas e complacentes (MARTINS, 2015).

No Brasil, há emergência de multidões enfurecidas, como uma espécie de explosão libertária de tensões reprimidas no regime autoritário e de afirmação da liberdade conquistada com a volta do Estado Democrático. No entanto, em nome do princípio de que a liberalidade da lei é melhor do que sua aplicação, estimula e secunda mais violência, pois a liberdade, desde então, tem soado como possibilidade de vingança, de fazer justiça com as próprias mãos.

Cabe aqui esclarecer o que vem a ser o conceito de multidão: como se organizam, por que se juntam e com qual objetivo, sobretudo para também pensarmos se as mesmas definições se aplicam para os casos de linchamentos virtuais. Para Martins (2015), a multidão, nesse contexto:

[...] não é política, não negocia com a sociedade, não reconhece a legitimidade do outro, não se vê na mediação das estruturas sociais e políticas [...] O fenômeno das multidões ativas está muito associado a momentos de transição social e de incerteza quanto aos valores que devem nortear os rumos da sociedade. Está também associado a transições concluídas, mas insuficientemente, em que os agentes sociais que a conduziram não tiveram completa e adequada consciência das tensões nela envolvidas e dos desencontrados protagonismos de um novo e diferente querer social. (MARTINS, 2015, p. 126-127).

A multidão, a partir dessa perspectiva sociológica, coloca em segundo plano os valores da civilidade e a compreensão de que o direito é a contrapartida do dever (LE BON, 196312 apud MARTINS, 2015). Isso torna-se preocupante ao passo que a desordem acabe se instaurando como uma instituição, incorporada como algo natural (MARTINS, 2015).

Na mesma direção, Elias Canetti também escreveu, em 1930, sobre indivíduos que, tomados pela fúria da massa, agem por seus instintos irracionais e agressivos e, deixando adormecidas suas virtudes, são hipnotizados por um “mandar e obedecer” e um “matar e destruir” da massa. Para isso basta um impulso, que pode ser uma intolerância ao modo de pensar e agir do outro. Em 1960, concluiu seus pensamentos no livro “Massa e Poder”.

Para melhor entender o que esse autor considera como “massa”, extraímos uma explicação de Pelbart (2001):

Canetti lembra que na massa são abolidas todas as singularidades, nela reina a igualdade homogênea entre seus membros (cada cabeça equivale a cada outra cabeça), a densidade deve ser absoluta (nada deve se interpor entre seus membros, nada deve abrir um intervalo em seu meio), e por último, nela predomina uma direção única, que se sobrepõe a todas as direções individuais e privadas, que seriam a morte da massa. Homogênea, compacta, contínua, unidirecional, a massa é todo o contrário da multidão, heterogênea, dispersa, complexa, multidirecional (PELBART, 2001, p.41).

Como alguns exemplos de linchamentos motivados pela massa, Canetti cita: o apedrejamento de condenados; prisioneiros enterrados em formigueiros na África; fuzilamento de sentenciados pela sociedade; e o povo que condenou e crucificou Jesus Cristo. Em todos os casos não há um único executor, mas sim a responsabilidade da morte dessas pessoas é de um coletivo.

Ao contrário de Canetti que define linchamento como massa, Martins (2015), considera os agrupamentos dos linchamentos como uma multidão que:

[...] reúne pessoas que não têm entre si outro vínculo que não seja o vínculo fortuito e acidental derivado de ação orientada por um objetivo passageiro, embora compartilhada de identificação e companheirismo, uma espécie de comunidade breve e transitória. (MARTINS, 2015, p. 77).

Os linchadores agem na multidão como se estivessem em uma comunidade subjascente da que vivem: nesta há uma sociabilidade estável da vizinhança que acolhe; naquela há uma composição súbita e imediata, que vinga, pune e exclui. Dito de outra forma, são pessoas de duplicidade sociológica (MARTINS, 2015). Le Bon (apud MARTINS, 2015) sublinhou o quanto a multidão é o sujeito coletivo e temporário, de orientação diversa da dos indivíduos que a compõem.

Nos casos de linchamentos virtuais as pessoas que se reunem para atacar alguém podem ter ou não vínculo de amizade, todavia devido aos inúmeros compartilhamentos é bem provável que a única identificação entre os usuários seja o fato que motivou a ação. Adotaremos para o objeto de estudo desta pesquisa a denominação do agrupamento em massa, sobretudo por ser unidirecional e homogêneo, embora seja transitório.

Para o autor, ainda é preciso compreender a ação dos linchadores como a de um sujeito coletivo que se oculta multidão e se manifesta quando a sociedade entra em crise. Muitos individuos quietos e amedrontados quando solitários, no volume da multidão, deixam vir à tona o seu descontentamento e a sua raiva intrínsecos. Para entender como isso reflete no contexto da multidão, multiplica-se esse ânimo exaltado individual pelos inúmeros participantes de linchamentos e tem-se uma fúria, por vezes, desproporcional aos fatores que a desencadearam.

Para esse indíviduos, que se transformam na multidão, a visibilidade de seu ato seria fatal, por isso preferem agir à noite. Paradoxalmente, os locais preferidos para os linchamentos, segundo as estatísticas de Martins (2015), são locais abertos, como ruas, terrenos e praças, para que haja um público testemunho do castigo.

Atualmente, há divulgação dos atos de linchamentos no YouTube13 com intenção de mostrar a ocorrência da punição para um público mais amplo, tal como ocorreu no linchamento no Guarujá. Assim, a Internet é usada como meio de ampliação (virtual) do espaço de visualidade. Contudo, o recurso tecnológico não é somente aliado na divulgação do castigo ou vingança dos linchadores, mas é também material de identificação e prova contra os próprios linchadores.

13 YouTube é um site que permite que os seus usuários carreguem e compartilhem vídeos em formato digital. Disponível em:

Todavia, o linchamento, não é visto pelos linchadores como um crime, pois acreditam que, por haver participação da população e ocorrer em locais públicos e abertos, serão respaldados ou ocultados. No próprio Código Penal brasileiro há um atenuante para a participação em crime coletivo, que pode ser um fator instigante ao justiçamento. Dessa maneira, coloca-se a justiça popular diante de “um código complexo de ações de restauração da ordem onde ela é violada” (MARTINS, 2015, p. 105).

Como não há na lei a figura de um crime coletivo, cada infrator é julgado individualmente e cabe a cada um a sua parcela de culpa. Assim, se cinquenta pessoas forem identificadas participando do crime, ocorrerão cinquenta processos criminais. No entanto, mesmo com o auxílio tecnológico, ainda é difícil identificar e julgar todos os participantes de linchamentos no Brasil.