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LEGITIMADOR DO STATUS QUO

O direito do consumidor como reflexo de fenômeno social de uma sociedade na qual as relações são plenamente massificadas, ocupa um papel de destaque no contexto das mídias e das políticas públicas atuais. Sendo o consumismo um fenômeno de grande importância à economia de mercado contemporânea, razoável que o Estado elabore regras capazes de facilitar seu desenvolvimento e preservar um nível mínimo de controle dessas relações.217 A maior intervenção estatal pode significar num primeiro momento que há uma proteção da sociedade quando a economia de mercado é melhor controlada, contudo, também não podemos afastar a interpretação filosófica que considera a maior intervenção do Estado como um método de preservação das relações de mercado, especialmente da posição de seus atores, conservando o status quo e por isso que o ideal intervencionista posto que afete os interesses de um ou outro capitalista, sempre será coerente com os

interesses do capitalismo.218 Trata-se da validação do sistema mercantil, ao mesmo tempo em que a globalização deixa os governos com menor capacidade de regulamentação do mercado. A legalidade é a forma adotada pelo sistema capitalista para a conservação do status quo.219

A globalização, como evento facilitador do modelo de acúmulo de capital, a despeito de sua interpretação como integração dos mercados de forma igualitária, busca o acúmulo de capital de maneira absoluta, portanto, na globalização, mesmo os países periféricos da economia mundial não são desconsiderados pelo regime de livre mercado. O que também não significa que tais países periféricos possam ser plenamente integrados dos benefícios originários desse movimento global. Novamente o regime de mercado utiliza a igualdade aparente, ou igualdade formal para justificar a nova fase do capitalismo (a globalização), ignorando a realidade de cada membro integrante do sistema, ou pretendente, numa verdadeira transmudação da relação entre privados existente no século XIX, sob uma nova

217 SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as estruturas. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 20.

218 GRAU, Eros Roberto. op. cit., p. 28.

219 Nesse sentido, MASCARO, Alysson Leandro. Crítica da legalidade e do direito brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2003. p. 34.

perspectiva.220 A influência do poder econômico na realidade de mercado afeta diretamente o poder estatal. No período do liberalismo econômico, a ausência do intervencionismo estatal decorreu da luta da burguesia contra os privilégios dos governos absolutistas que afetavam diretamente suas relações comerciais, assim, a doutrina dos direitos individuais mínimos ganhou espaço e serviu como limitador do poder estatal que por ser um Leviatã, poderia violar os direitos do particular burguês. Com o desenvolvimento da econômica de mercado, ao mesmo tempo em que o Estado tem maior participação na regulação das atividades econômicas, a integração comercial entre os países, decorrente da globalização, mitiga o poder do Estado em regular com eficácia social essas relações, seu poder fica disperso, muitas vezes apenas validando o que foi auto-aplicável pelo mercado, agindo como simples comitê gerenciador dos interesses burgueses.221 O poder econômico tem forte influência social, não sendo externado apenas pelo Estado, mas também por outras formas, como a publicidade que age no sentido de disfarçar a realidade ao consumidor, numa visão ideal do dever ser que não observa o ser, conforme analisado. De qualquer modo, o poder econômico visa à estruturação e o bom funcionamento do sistema capitalista. É nesse sentido que o direito do consumidor, também, deve ser interpretado, como um dos instrumentos da ordem econômica vigente para a manutenção e regulação do sistema.

A ligação entre o direito do consumidor e a ordem econômica é reconhecida por Ronaldo Porto Macedo Júnior, que compreende o direito do consumidor como uma área específica da disciplina da ordem econômica e não como mera técnica para a adoção de “boas maneiras” no “mercado”. O autor ainda menciona que não apenas o direito do consumidor surgiu como uma das disciplinas de controle da regulação econômica nos anos 70, e cita, ainda, “a expansão de legislações de proteção ao meio ambiente, defesa da saúde e antitruste cada vez mais abrangentes”.222 O Código de Defesa do Consumidor é instrumento de manutenção do status quo, esse fato foi demonstrado durante o trabalho ao indicar as limitações de sua aplicação e como sua aplicação é benéfica não apenas o consumidor, mas ao fornecedor, mas também pode ser utilizado, como ferramenta jurídica que é, em benefício do

220 Cf. GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 22.

221 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. p. 12. 222 MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 207; 209.

desenvolvimento das relações de consumo, limitando o poder econômico, o que pode, de todo o modo, trazer benefícios ao mercado.

O mercado, como estrutura inerente ao regime de acumulação de capital é imprescindível para o funcionamento do capitalismo que tem por foco o lucro e baseia-se, por conseqüência, em relações de troca e circulação de mercadorias. A participação do Estado na manutenção do mercado é necessária ao evitar que crises no sistema gerem conflitos sociais que possam por em risco a sobrevivência do sistema de mercado. Em razão dessa necessidade que novas políticas de consumo, focadas no sistema econômico vigente, foram traçadas. O aumento de renda e a possibilidade de inserir no mercado a parte da população excluída do sistema é uma forma de evitar o surgimento de conflitos e preservar a ordem liberal vigente. O Código de Defesa do Consumidor surgiu como um conjunto de normas que limitam as práticas e atos capazes de, primeiro, prejudicar a livre concorrência dos fornecedores e, segundo, de reprimir os direitos coletivos e individuais dos consumidores. Instrumentaliza e prevê a necessidade da participação do Estado como implementador de políticas públicas de consumo, tendo como escopo a preservação do ambiente de consumo, a previsibilidade e o equilíbrio dessas relações. Esse é o papel de uma política pública de defesa das relações de consumo, buscar a eficiência, valorizando a liberdade da livre iniciativa. A livre iniciativa deve ser valorizada e preservada, sendo a menos possível viciada pelos instrumentos de coerção disponíveis no mercado de consumo, como as cláusulas contratuais abusivas.

Portanto, podemos citar como objetivos da legislação de defesa do consumidor duas vertentes de atuação. A primeira vertente tem como escopo a proteção do mercado de consumo com regras mínimas que permitam uma concorrência igualitária entre os fornecedores atuantes no mercado, facilitação na circulação de bens e riquezas, estabilidade econômica, higidez de mercado e tutela estatal; na segunda vertente, o foco é a defesa do consumidor receptor dos efeitos decorrentes de um mercado regulado, especialmente o direito à informação sobre os bens de consumo e garantias mínimas que os fornecedores devem cumprir para integrar o mercado e usufruir do lucro, como, por exemplo, a oferta de produtos que não ofendam a saúde do consumidor e tenham a qualidade esperada num produto que está à disposição do mercado. Necessário, por conseqüência, relembrar a existência

da Lei n. 8.884/94, que rege os assuntos focados no grande capital, mas que tem relação íntima com o Código de Defesa do Consumidor, assemelhando-se em alguns aspectos e finalidades. E a defesa do direito concorrencial, pode ser, também, a defesa do consumidor conforme Izabel Vaz afirma que:

“... defender a concorrência é, antes de tudo, adotar uma posição política e filosófica perante os fatos econômicos e constitui uma atividade que não se esgota em coibir abusos do poder econômico, nem se resume, até hoje em tabelar ou congelar preços, controlar lucros ou defender direitos do consumidor. É tudo isto, mas também é situar as atividades econômicas e todas as formas admitidas de atuação empresarial no contexto de um plano de desenvolvimento de médio e longo prazo”.223

A questão econômica não pode ser afastada das relações de consumo, especialmente por integrar um dos objetivos da ordem econômica constitucional prevista no artigo 170 da Constituição Federal. As primeiras constituições que trataram diretamente da ordem econômica a ser seguida foram as cartas do México em 1917 e da Alemanha em 1919. A Constituição Mexicana, também considerada como a primeira carta que tratava de questões político-sociais no mundo, regulou temas que hoje se encontram no debate do direito constitucional moderno, como, por exemplo, questões envolvendo o trabalho, a previdência social e a propriedade privada. A carta de Weimar foi a primeira constituição a explicar positivamente o dever estatal de agir, visando à concreção de direitos e teve grande influência nas posteriores cartas constitucionais do mundo, inclusive a Carta brasileira de 1934. A Constituição econômica, da qual faz parte o direito do consumidor é o conjunto de normas que estabelece os princípios fundamentais de determinada forma de organização e funcionamento da economia, constituindo uma ordem econômica.224 Assim, o direito do consumidor é como se fosse uma folha no galho da estrutura econômica que se apresenta na árvore que é a Constituição. E a compreensão plena da função da folha de uma árvore apenas se dá quando se compreende toda

223 VAZ, Isabel. Direito econômico da concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 255-256. 224 AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 791.

a estrutura na qual está inserida. A Constituição da República de 1988 opta pelo sistema capitalista no modelo do bem-estar social com a garantia de princípios liberais, como o princípio da livre iniciativa, da propriedade e da livre concorrência. Por certo que por serem princípios, eles devem coexistir sem serem interpretados de forma absoluta. A função social da propriedade não significa o fim da propriedade privada nos termos expostos e com as garantias do Código Civil brasileiro, mas a mitigação do direito individual em favor do coletivo. E o Código de Defesa do Consumidor visa essa proteção coletiva em detrimento da individualidade225, o que pode trazer problemas práticos como se verá adiante.

A livre iniciativa prevista no artigo 170 da Constituição Federal e a proteção ao consumo é uma forma de permitir uma disputa em igualdade de condições, tentando, chegar ao máximo possível, de uma igualdade real.226 A competição, como regra da doutrina capitalista, ainda é mantida na ordem econômica brasileira, incentivada, mas de maneira a manter uma competição de mercado saudável. O Código de Defesa do Consumidor nesse contexto aparece apenas como um novo instrumento de regulação e proteção do mercado, até pelo simples raciocínio de que, na hipótese do referido diploma afetar o sistema capitalista de forma a exigir em demasia ou menos do que o esperado dos bens colocados no mercado de consumo pelos fornecedores, poderia acontecer a quebra de algumas empresas, ou até o aumento do custo de produção que seria integralizado na cadeia de consumo para que o destinatário final arque com os custos adicionais inesperados. Esse repasse de custos extraordinários poderia prejudicar o desenvolvimento do mercado, gerando conflitos, estes sempre evitados pelo capitalismo. Na realidade político- econômica que o País se encontra, o Código de Defesa do Consumidor é um importante instrumento, com largo alcance social que pode, ao tencionar o sistema capitalista, encontrar soluções dentro do próprio sistema que podem proteger os consumidores e até transformar a realidade existente, ainda que de maneira parcial.

225 O Código de Defesa do Consumidor possui seção específica sobre a defesa em juízo coletiva com relevantes efeitos – Capítulo II do Título III. A coletividade dos consumidores também é tratada por FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de direitos do consumidor. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 32-34, ao mencionar que o Código de Defesa do Consumidor, também, no parágrafo único do artigo 2º trata do consumidor considerado coletivamente, especialmente os indeterminados, mas que de alguma forma participaram da relação de consumo, beneficiando a universalidade dos consumidores, efetivos ou potenciais.