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4. OCasodoÁrtico

No documento I Seminário IDN Jovem (páginas 115-120)

Atualmente, o reposicionamento de potências internacionais face a uma nova ordem mundial que se desenha, remete-nos para alguma indefinição que problematiza a inter- pretação da realidade do sistema internacional no sentido da manutenção da paz, ou seja, a existência da contradição de forças que tornou o mundo global mais próximo geográ- fica e temporalmente e que alavancou o processo de fracturação do sistema internacional. Neste contexto, o cenário geopolítico do Ártico é incontornável, uma vez que o território e a própria demografia, itens clássicos da geopolítica, são agora revisitados por se reconstituírem como elementos de poder estratégico.

É, portanto, numa perspetiva económica que surge o interesse no Ártico. Conforme referido, este território constituía um deserto gélido que está, gradualmente e mais rapi- damente do que se previa, a tornar-se navegável. A China, que constitui uma ameaça estratégica aos EUA, já conseguiu viabilidade marítima sem recurso a quebra-gelo. E este é um facto absolutamente incontornável pois poderá tornar também a Rússia num terri- tório mais vulnerável. Não será por acaso que Putin aumentou, em grande medida, as

suas ambições militares para 2020. Por outro lado, e concomitantemente, temos vindo a assistir a uma aproximação estratégica e lenta da China à Rússia.

Os EUA em relativo enfraquecimento, a China com aspirações a potência hegemó- nica apesar de oficialmente ser mantido o mote de peaceful rising, a Rússia com uma clara

ação estratégica de afirmação e condição de poder na defesa dos seus interesses, a Europa sem relevância estratégica no teatro internacional, constituem os atuais posicionamentos gerais destas quatro grandes potências.

A retração estratégica dos EUA a que temos assistido, por exemplo na crise do Médio Oriente, a incapacidade de resolver conflitos no Afeganistão, Iraque e Síria, ou até a forma como encarou a situação da Geórgia e da Ucrânia, também se encontra espelhada no caso do Ártico: os EUA terão sido “‘apanhados de surpresa’ em matéria de meios e infraestruturas para assumirem a posição de líderes no Ártico” (Balão, 2015, p. 78). Será por isso que “Os E.U.A. procuram a todo o custo impedir que o centro de poder global se desloque, nomeadamente para a sua rival China […] Para isso, apostam numa política externa centrada no poder militar, sobretudo no âmbito da NATO, quer na ação desen- volvida por aquela organização, quer no seu alargamento a países do ex-pacto de Varsó- via, como são os casos da Ucrânia e Geórgia,…” (Balão, 2015, p. 174) e mais recente- mente de Montenegro, ainda que à revelia da Rússia.

Apesar deste tardio “despertar” dos EUA, é de referir a reativação da base aérea de Thule na Gronelândia, que coloca os EUA numa posição literalmente mais próxima e, provavelmente, mais presente e atenta na disputa do Ártico. No passado teve importância geoestratégica central durante a Guerra Fria corroborando as teorizações de Spykman e Cohen e, neste sentido, veremos se não terá numa possível “Guerra Fria do Ártico” (Balão, 2015, p. 49). A revitalização desta base em simultâneo com o sistema de satélites e de deteção antimíssil dos EUA constituem grande vantagem no teatro de operações do Ártico.

Os EUA procuram manter poder de projeção e para isso o seu investimento militar é único no mundo. Para além disso, constitui-se como o garante da estabilidade do comércio internacional, mas o foco atual é a criação de condições para a recuperação dos padrões de vida da sociedade americana, de bem-estar por excelência, o que se coaduna com uma postura isolacionista e cíclica deste país.

De uma perspetiva sistémica, desde 2009 que não assistimos à recuperação robusta da situação económica mundial. Ao invés, mantém-se instável, e em particular nas econo- mias desenvolvidas da Europa e dos EUA, com impactos sociais profundos.

No teatro Europeu existem forças e movimentos que constituem dinâmicas com consequências muito fortes, como sendo as circunstâncias de oposição entre França e Alemanha, a saída do Reino Unido do projeto Europeu, a Europa protestante versus

Europa católica, a Europa Cristã versus a Europa islâmica, os países credores versus deve-

dores são algumas das tensões que agitam a Europa na sua profundidade.

O soft power europeu afirmou-se, durante muito tempo, como elemento de poder

estratégico para a União Europeia atingir os seus objetivos: a robustez que o Euro impri- miu no comércio, a organização democrática e a cultura de cidadania contribuíram para

um sólido pilar económico. No entanto, numa visão realista, é-nos possível verificar que

ao primeiro confronto, nenhuma potência sem hard power, sem poder militar, consegue

manter poder estratégico, sendo a Europa um “anão” deste ponto de vista. O insucesso da Comunidade Europeia de Defesa de 1952 dotou a Europa de uma visão mais economi- cista, funcionalista, com um grande mercado interno e ponto de união política. Militar- mente, a NATO foi sempre o elemento de referência fundamental para a segurança da Europa e depois da Guerra Fria a agenda europeia foi dominada pela integração de novos Estados-membros, daí que o quadro da NATO tenha passado a ser valorizado pela Rússia.

O que é entendido por alguns como uma lacuna é vista por outros como algo sur-

preendentemente poderoso numa perspetiva globalizante. Ian Manners defende o norma-

tive power da Europa, os procedimentos em matéria de segurança alimentar, humana,

transparência dos processos legais, o próprio check and balance, entre outros, na base do

modelo social europeu, com capacidade para ser exportado para variadíssimos pontos do globo, assumindo essa particularidade como elemento referencial para outros atores.

Não obstante, a pressão na Europa é enorme, o projeto europeu cada vez menos consolidado assim como Huntingdon anteviu e Kissinger documentou eximiamente:

“On the other hand, European politics remains primarily national, and in many countries, objections to EU policy have become the central domestic issue. The result is a hybrid, constitutionally something between a state and a common bureaucracy – more like the Holy Roman Empire than the Europe of the nineteenth century. […] Europe has retur- ned to the question with which it started, except now it has a global sweep. What inter- national order can be distilled from contending aspirations and contradictory trends? Which countries will be the components of the order, and in what manner will they relate their policies? How much unity does Europe need, and how much diversity can it endure? But the converse issue is in the long run perhaps even more fundamental: Given its his- tory, how much diversity must Europe preserve to achieve a meaningful unity?” (Kissin- ger, 2015, pp. 92-93).

Noutra ótica, a de Mackinder, a Europa constituía e constituirá a salvaguarda da segurança dos EUA. Mackinder terá tido grande influência na constituição da NATO, se tivermos em conta o preâmbulo do Plano Marshall que anuncia o projeto daquilo que é hoje a União Europeia, com a articulação para o objetivo da paz, da cooperação, mas sobretudo da segurança política e social, ao contrário da tendência natural de pensarmos que a União Europeia era originalmente de índole europeia. Mackinder “não descansou enquanto não encontrou um conceito unificante entre a Europa marítima e os Estados Unidos da América” (Bessa, 2015, p. 9).

Nicholas Spykman, cuja teorização está em grande parte assente na teorização origi-

nal de Mackinder, demonstra com a permanência do significado dos conceitos – o Inner

Crescent correspondendo ao Rimland, que é aqui que assenta a grande equação de poder: é

o primeiro anel de segurança do poder, o “anel global”. A Europa não tendo anel securi- tário, serve, ela própria, como anel de defesa dos EUA, numa ótica realista.

No caso de Saul Cohen, existem dois blocos geoestratégicos: o Mundo do Poder

do Almirante Mahan. Para esta teoria contribuem as shatterbelts e as crush zones, zonas

situadas entre as duas grandes áreas primariamente definidas e responsáveis pelo equilí- brio de poder. Países costeiros como Portugal, Itália, Espanha, Holanda, Grã-Bretanha e Japão surgem neste contexto.

Figura1–Círculo Polar Ártico

Fonte: Map of the Artic 2002, Ed. Athropolis 1101 x 1328. Retirado de Athropolis Artic Maps [online]. Disponível em http://www.athropolis.com/map2.htm.

Na perspetiva da adoção de uma estratégia marítima, a Europa pode vir a ser uma preocupação para os EUA, China e sobretudo para a Rússia, caso a União Europeia e a NATO se tornem mais ativas nas questões polares, visto que todas as nações árticas são membros de uma ou das duas organizações.

Países como a Finlândia, Islândia, Noruega, Suécia e a Dinamarca não devem ser

descurados na análise da disputa do Ártico: a Noruega com o exercício Cold Response

mostrou ser capaz de dinamizar uma das maiores demonstrações de manobras militares no Ártico. Em dezembro de 2014, a Dinamarca reivindicou um território ártico de

895 km2 na região ártica, reivindicada também pela Rússia, Canadá e EUA.

No entanto, de regresso às premissas da geopolítica clássica, e tendo em perspetiva o mapa apresentado abaixo, é notória a monumentalidade do território russo relativa- mente à massa terrestre europeia em projeção ao Ártico. A reiterar nesta análise a expres- são discreta do hard power europeu.

A referida deterioração das relações entre a Europa e a Rússia pode representar uma maior gradação na problemática da definição de fronteiras no Ártico, pois a Rússia vem- -se mantendo ativa no Conselho do Ártico e exige uma clara distinção entre estas ques- tões e a crise da Ucrânia.

Relativamente à Rússia, temos vindo a assistir a um processo de fortalecimento interno através da centralização dos poderes do Estado, a renacionalização de muitos dos conglomerados industriais do gás e do petróleo, a destruição da tensão separatista do Cáucaso e a revitalização do poder militar, no sentido de projetar a sua influência inter- nacionalmente e voltar a ter uma posição central na agenda mundial.

“Everything about Russia – its absolutism, its size, its globe-spanning ambitions and insecurities – stood as an implicit challenge to the traditional European concept of inter- national order built on equilibrium and restraint. […] In this context, a distinctive Russian concept of political legitimacy took hold. While Renaissance Europe rediscovered its classical humanist past and refined new concepts of individualism and freedom, Russia sought its resurgence in its undiluted faith and in the coherence of a single, divinely sanctioned authority overpowering all divisions – the Czar as “the living icon God”, whose commands were irresistible and inherently just […] Thus what in the West was regarded as arbitrary authoritarianism was presented in Russia as an elemental necessity, the precondition for functioning governance. […] The expansion of NATO up to the borders of Russia – even perhaps including it – was now broached as a serious prospect. The projection of a military alliance into historically contested territory within several hundred miles of Moscow was proposed not primarily on security grounds but as a sen- sible method of “locking in” democratic gains” (Kissinger, 2015, pp. 50 e 54).

Em termos económicos, a Rússia teria muito a ganhar com a anexação do “território russo da zona polar”, pois esta zona contém reservas importantes de hidrocarbonetos, diamantes, metais e outros minerais.

À semelhança do Canadá, a Rússia usou dispositivos especiais subsidiados pelo Artigo 234.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), rela- tivo aos direitos de soberania sobre águas congeladas, no sentido de fortalecer o domínio

sobre as novas rotas decorrentes do degelo – a Passagem Noroeste e a Rota do Mar do Norte.

Em 2007, dois minissubmarinos russos não tripulados colocaram uma bandeira de titânio inoxidável no polo norte, debaixo da calota polar, a 4.262 metros de profundidade, ato simbólico que agitou os meios de comunicação social e inquietou as potências inte- ressadas no Ártico, sobretudo os EUA, fazendo renascer sentimentos antigos associados à Guerra Fria.

Num teatro mais distante mas igualmente importante no exercício do poder estraté-

gico encontra-se a China, país que se anuncia num peaceful rising mas com evidências de

intenção estratégica no mar da China. Este conceito não terá sofrido alterações até à data, mas o país tem vindo a posicionar-se de forma a garantir o controlo do seu desenvolvi-

mento económico, através da New Silk Road e da String of Pearls, sem dependência de

terceiros.

O posicionamento deste país a par dos EUA futuramente será decisivo para se com- preender se o equilíbrio internacional será mantido pelos dois atores numa ótica de bipo- laridade ou se, por outro lado, a tensão tomará lugar e, inevitavelmente, contornos inter- nacionais mais complexos serão despoletados. A influência dos EUA no Japão, Coreia do Sul, Filipinas terá também de ser alvo de gestão diplomática, por força dos tratados que garantem a não-agressão a estes territórios.

A China é muito homogénea demograficamente, com uma identidade cultural notável e milenar reveladora de grande resiliência. Como base nesta característica estará o tempo civilizacional em contraste com o tempo cronológico adotado pelo Ocidente e que em tudo condiciona as tomadas de decisões e, sobretudo, o planeamento estratégico. Distin- gue-se marcadamente do Ocidente com esta cultura perpétua que se mantém inabalável.

A China vem tendo uma aproximação diplomática muito cautelosa ao Ártico, pelo interesse primordial na exploração de recursos minerais e a abertura de novas rotas comerciais marítimas, que interferem diretamente na economia e sociedade chinesas. Desde a década de 90 do século passado que esta potência tem vindo a desenvolver um programa polar, com a criação do Polar Research Institute of China e em 2013 tornou-se membro observador do Conselho do Ártico, o que significou a garantia dos chineses no

forum intergovernamental mais importante sobre esta região. Oficialmente, a China nega

a existência de uma política ártica, mas as ações chinesas sinalizam o contrário, conforme discurso do próprio Liu Zhenmin, atual Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros:

“The parties have different rights, interests and specific concerns with regard to Arctic- related issues. However, peace, stability and sustainable development in the Arctic serve the common interests of both Arctic and non-Arctic states. We should continue to enhance mutually beneficial and win-win cooperation, and jointly uphold and promote peace, stability and sustainable development in the Arctic region.” (Silva, 2014, p. 110).

No documento I Seminário IDN Jovem (páginas 115-120)