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Índice de Tabelas

3. Dimensão cognitiva na análise das políticas públicas: o papel do conhecimento na regulação das políticas públicas

3.2. O conhecimento nos processos de problematização e preconização

Como referem DELVAUX & MANGEZ (2008), é nos processos de problematização e preconização, elementos fundamentais da ação pública, que o conhecimento é mais frequentemente utilizado. O primeiro destes processos, a problematização, é aquele através do qual os problemas são identificados como tal, inseridos na agenda e sinalizados com o estatuto de problema a resolver (DELVAUX, 2009a). O segundo processo, a preconização, é aquele no decurso do qual emergem as pistas de ação privilegiadas para a resolução dos problemas (isto numa perspetiva de análise sequencial das políticas públicas) ou, noutro entendimento, no decurso do qual surgem as propostas ou alternativas (DELVAUX & MANGEZ, 2008).

Antes de explicitar o papel crucial desempenhado pelo conhecimento nestes dois processos, importa esclarecer que o uso destes dois conceitos não implica a definição da política “como a busca de soluções para problemas previamente identificados com clareza”, como nos diz DELVAUX (2009b, p. 966). Como explica este autor,

… o que acontece com frequência é que uma pista de acção se refira a mais do que um problema, que os actores que partilham a mesma denominação de um problema lhe atribuam significações diferentes, ou, ainda, que a preconização preceda a problematização, visto que, como sublinha Kingdon (1984), os actores portadores de uma preconização têm muitas vezes de esperar o agendamento de um problema, para que a sua proposta, pensada por vezes em referência a outro problema, seja considerada como uma solução para um novo problema. É, pois, possível analisar os processos de problematização e de preconização sem que obrigatoriamente se esteja a pensar que o segundo decorre do primeiro numa lógica sequencial. (DELVAUX, 2009b, p. 966)

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O interesse destes dois processos decorre, de alguma forma, do descrito acima e reside no papel fundamental que o conhecimento assume nestes dois processos, na medida em que este é utilizado pelos atores “para porem à prova as problematizações e preconizações dos adversários” (DELVAUX, 2009b, p. 966) e justificarem as suas próprias e “assim evitarem que estas sejam desfeitas pelas provas a que os seus adversários as submetem” (idem, p. 967). Quer o processo de problematização, quer o processo de preconização são alvo de provas28 e é na tentativa de resposta a estas provas que o

conhecimento assume um papel preponderante, funcionando como um recurso (DELVAUX, 2009a).

Para responder a estas provas ou para as anteciparem, os actores forjam argumentos, procurando justificar as suas problematizações e preconizações, apoiando-se em conhecimentos que pretendem interpretar o real. Mais do que fazer mudar a opinião do adversário, estes argumentos visam, sobretudo, cativar a adesão ou, pelo menos, evitar a oposição daqueles que não têm ainda uma opinião pré-definida ou uma crença firmada sobre o assunto. Podem também servir para evitar que as problematizações ou preconizações sejam descredibilizadas e, assim, retiradas do debate público.

Os conhecimentos incorporados nos argumentos têm geralmente uma forma simplificada, porque a convicção não nasce tanto da completude e da solidez da argumentação racional, mas sim de uma argumentação que dê resposta simultaneamente a uma exigência de racionalização e de simplificação do mundo. (DELVAUX, 2009b, p. 968-969)

De entre o tipo de conhecimentos utilizados na construção destes argumentos por parte dos atores emergem as comparações no espaço e no tempo (a multiplicação dos indicadores e dos inquéritos comparativos nacionais ou internacionais tendem a exercer pressão sobre as entidades que fazem menos do que outros ou menos que faziam antes); associações causais entre variáveis (na medida em que permitem associar um novo problema a situações identificadas de maneira consensual como sendo problemáticas; ou porque podem associar uma preconização a um problema); cartografia do que existe (podem ser opiniões, boas práticas; são essencialmente conhecimentos descritivos e servem sobretudo para fazer passar as preconizações na prova de exequibilidade e auxiliar no processo de problematização nas provas de importância ou acessibilidade) (DELVAUX, 2009a; 2009b).

Para terminar importa sublinhar que estes processos de problematização e preconização “não se desenrolam apenas na cena central da decisão política, onde interagem os actores governamentais e parlamentares, bem como os grupos de interesse mais importantes” (DELVAUX, 2009b, p. 972). Eles

28 No que respeita ao processo de problematização, ele é sujeito a: prova de importância, que consiste em colocar em dúvida o carácter realmente problemático da situação; prova de hierarquização, que contesta que determinado problema seja mais importante que os outros; prova de acessibilidade, que coloca a questão sobre a possibilidade de resolução do problema; e prova de compatibilidade, que coloca em causa se a discussão de um determinado problema não poderá gerar ou agravar problemas de outra natureza. As provas a que é submetido o processo de preconização são: prova de exequibilidade, que coloca em evidência a impraticabilidade das propostas, pela falta de disponibilidade de recursos ou outros constrangimentos; prova de pertinência, que coloca em questão a pertinência da proposta para a resolução do problema; prova de aceitabilidade, que decorre da prova de compatibilidade (já descrita) e coloca em causa se a implementação daquela proposta não gerará ou agravará outros problemas. (DELVAUX, 2009a; 2009b)

43 desenrolam-se em múltiplas cenas, onde interagem múltiplos atores e onde os conhecimentos mobilizados podem ser apenas partilhados pelos atores de uma determinada cena ou podem circular para lá da cena.

DELVAUX (2009a; 2009b) refere-se a este propósito aos circuitos e fluxos de conhecimento e realça a importância que determinados atores29 assumem neste processo. Como sublinha,

O poder que um actor detém na circulação dos conhecimentos mede-se principalmente, pelo seu grau de domínio do conhecimento difundido a seu propósito (incluindo a capacidade para esconder uma parte), pelo grau de conhecimento que revela dos outros actores ou cenas (e, eventualmente, a sua capacidade para lhes enviar alguns desses conhecimentos sobre eles próprios) e a capacidade que demonstra em formatar e difundir na cena-alvo conhecimentos que serão reutilizados pelos actores desta cena, para problematizarem ou preconizarem. Esta última capacidade implica não apenas um conhecimento desta cena ou deste tipo de cena, mas também de uma forma mais generalizada, de um conhecimento dos processos que aqui temos estado a descrever. Além disso, essa capacidade implica que o actor seja competente (ou possa aceder à competência de especialistas) nas técnicas de formatação e de difusão de conhecimentos. (DELVAUX, 2009b, p. 973)

Os conhecimentos e a sua circulação constituem elementos que não se podem negligenciar se pretendemos compreender o decurso de uma ação pública. E por isso, conjuntamente com “as crenças coletivas” (de que falámos acima e no qual se inclui a noção de referencial, por exemplo); os modos de coordenação que prevalecem num determinado país, setor ou cena e a configuração das relações de interdependência (que definem as posições relativas que ocupam cada uma das cenas e cada um dos atores em relação aos outros); os circuitos de conhecimento e as posições relativas dos diferentes atores nestes circuitos são fatores que estruturam o que se desenrola em cada uma das cenas “onde se joga um fragmento da ação pública” (DELVAUX, 2009a, p. 55). Estes quatro elementos (já referidos acima, neste capítulo),

… contribuem para orientar as condutas e as interações dos atores que, numa determinada cena (seja estabelecimento escolar, organização sindical, federação de associação de pais ou do governo de uma comunidade), interagem e agem, por vezes em direção de outra cena, também ela implicada na mesma ação pública. (DELVAUX, 2009a, p. 56)

29 DELVAUX (2009b) faz referência a três tipos de atores: a) os que encomendam - mandam produzir, desbloqueiam os recursos necessários. Incluem-se aqui órgãos de administração, grupos de interesse solidamente constituídos ou até grandes grupos de media; b) os que fabricam – aqui o poder pertence aos atores que dispõem não só de competências, mas também de legitimidade para validar ou desqualificar determinados conhecimentos; c) os que fazem circular os conhecimentos – atores que dominam os processos de circulação. Nesta última categoria, KOSA et al (2008) referem-se a dois tipos de atores: circulators e brokers. Circulators como os atores que controlam canais importantes de difusão de conhecimento dentro de um determinado setor. E brokers, como os atores que desempenham um papel fundamental como importadores e exportadores de conhecimento e como tradutores que permitem o contacto entre ambientes heterogéneos.

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