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Três níveis de regulação diferentes e complementares: regulação transnacional, regulação nacional e regulação local

Índice de Tabelas

2. A regulação das políticas

2.1. Três níveis de regulação diferentes e complementares: regulação transnacional, regulação nacional e regulação local

Até ao momento foram sendo sublinhados uma série de movimentos e mudanças na ação pública que dão conta de novos modos de regulação das políticas públicas. Com efeito, o abandono da crença da centralidade do Estado na definição das políticas públicas, associado a fenómenos de descentralização, integração europeia e globalização contribuíram para a “emergência do peso do local e do supranacional em representações que não conheciam senão o nacional” (COMMAILLE, 2006, p. 417).

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Assim, face a uma visão monocentrada, hierarquizada e descendente da decisão pública como instrumento de um Estado que planifica, que incita e que determina os objetivos e concebe as regras, impõe-se progressivamente a ideia de uma ação pública em múltiplos níveis e que implica uma multiplicidade de atores e no seio da qual o Estado não é mais do que um parceiro que participa na sua co-construção (idem, p. 417).

Como sublinham ainda BORRAZ & GUIRAUDON (2008a), presenciamos “um processo de fragmentação da ação pública: «retorno» para o local, nas diversas formas de descentralização operadas na Europa, mas também na emergência de novos atores (agências independentes, órgãos de regulação, institutos de normalização, organizações internacionais)” (p. 13) levando a uma sistematização das políticas multinível, que implicam o local, o nacional e o internacional (GAUDIN, 2004).

O interesse desta análise e da sua mobilização para este estudo, encontra suporte na introdução que é feita por FAURE & MULLER (2006) à mesa-redonda realizada no 8º congresso da Associação francesa de ciência política e intitulada «Villes, régions, États, Europe: l’acton publique à l’épreuve des changements d’échelle»:

A questão das mudanças de escala territorial na condução das políticas públicas é simultaneamente clássica e desafiadora. Clássica porque estas mudanças são conhecidas e frequentemente estudadas: quer decorra de um ponto de partida centralizado ou do princípio da subsidiariedade, os Estados partilharam sempre, em parte, os seus recursos de legitimidade e de soberania com as comunidades infra e supra nacionais. Desafiadora, contudo, na medida em que parece que esta construção partilhada de prioridades se tem vindo a complicar, nas últimas décadas, com a descentralização, a integração europeia e a globalização. Reflexões sobre a erosão dos Estados, as correntes neoliberais, a governança multinível, e o retorno para o local, são abordagens que ilustram esta complexidade crescente das incrustações e das sobreposições entre os diferentes níveis de intervenção política. (p. 7)

Pois bem, é neste entendimento que BARROSO (2006a) nos propõe uma análise dos processos de regulação das políticas públicas (de educação) que toma como referência a existência de três níveis de regulação diferentes, mas complementares: a regulação transnacional, a regulação nacional e a regulação local; e fá-lo com o intuito de ir “para lá do carácter episódico e anedótico” que marca as políticas públicas (e em concreto as reformas empreendidas no domínio da educação) e de analisar “o modo como são definidas e controladas as orientações, normas e ações que asseguram o funcionamento do sistema educativo e, em particular, o papel que o Estado e outras instâncias ou agentes sociais têm nesse processo” (p. 44).

Esta análise que tem na sua base esta ideia de que a regulação dos sistemas sociais resulta de um “complexo sistema de coordenações e (co-coordenações) com diferentes níveis, finalidades, processos e actores, interagindo entre si, de modo muitas vezes imprevisível, segundo racionalidades, lógicas,

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interesses e estratégias distintas” (BARROSO, 2006a, p. 60) revela-se fundamental para a análise das políticas de construções escolares em Portugal e daí esta opção pela sua descrição e adoção.

Na análise que faz sobre a introdução e transformação dos modos de regulação das políticas educativas BARROSO (2003; 2004) identifica três tipos de efeitos, que resultam, no “aumento da regulação transnacional”, no “hibridismo da regulação nacional” e na “fragmentação da regulação local”:

- o efeito de contaminação que existe ao nível da transferência dos conceitos, das políticas e das medidas postas em prática, entre os países, à escala mundial;

- o efeito de hibridismo que resulta da sobreposição ou mestiçagem de diferentes lógicas, discursos e práticas na definição e acção públicas, o que reforça o seu carácter ambíguo e compósito;

- o efeito mosaico que resulta do processo de construção destas mesmas políticas que raramente atingem a globalidade dos sistemas escolares e que, na maior parte das vezes, resultam de medidas avulsas de derrogação das normas vigentes, visando situações, públicos ou clientelas especificas. (BARROSO, 2003, p. 24-25)

No que respeita à primeira constatação, ‘o aumento da regulação transnacional’, BARROSO (2006a) começa por definir regulação transnacional como o “conjunto de normas, discursos e instrumentos (procedimentos, técnicas, materiais diversos, etc) que são produzidos e circulam nos fóruns de decisão e consulta internacionais, no domínio da educação, e que são tomados, pelos políticos, funcionários ou especialistas nacionais, como ‘obrigação’ ou ‘legitimação’ para adoptarem ou proporem decisões ao nível do funcionamento do sistema educativo” (p. 44-45). Regulação transnacional que tem origem em: a) países centrais, fazendo parte de um sistema de dependências em que se encontram os países periféricos e semiperiféricos; b) em estruturas supra-nacionais (como a União Europeia, no caso de Portugal), que “controlam e coordenam, através das regras e dos sistemas de financiamento, a execução das políticas” (BARROSO, 2006a, p. 45) no domínio educativo; c) em programas de cooperação e desenvolvimento de organizações como o Banco Mundial, a OCDE, a UNESCO, que fornecem guiões standard para o desenvolvimento educacional, a assistência concreta, consultores para colaborar no terreno e formas dos educadores e administradores participarem neste processo, obtendo um maior status (MEYER, 2000, p. 20). Estas “influências globais” (MEYER, 2000) situam-se, assim, em domínios desde o currículo, às estruturas organizacionais ou às construções escolares e funcionam como um meio de legitimação e de normalização das políticas educativas nacionais. Como afirma TEODORO (2003) a este propósito,

a hipótese que aqui se defende é que o recurso ao estrangeiro funciona, prioritariamente, como um elemento de legitimação de opções assumidas no plano nacional, e muito pouco como um esforço sério de um conhecimento contextualizado de outras experiências e de outras realidades. Mas, simetricamente, pode-se também considerar que as constantes iniciativas, estudos e publicações das organizações internacionais desempenham papel

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decisivo na normalização das políticas educativas nacionais, estabelecendo uma agenda que fixa não apenas prioridades, mas igualmente as formas como os problemas se colocam e equacionam, e que constituem uma forma de fixação de um mandato, mais ou menos explícito, conforme a centralidade dos países (p. 54)

Assiste-se, neste contexto, como sublinha BARROSO (2006a), ao tal efeito de contaminação de “conceitos, políticas e medidas postas em prática, em diferentes países, à escala mundial” (p.45-46) e é neste contexto que emergem noções como educational policy borrowing (WALDORF, 2001; PHILLIPS, 2005; STEINER-KHAMSI, 2004; 2012), policy transfer (DOLOWITZ & MARSH, 200017; RADAELLI,

199718; BULMER; DOLOWITZ; HUMPHREYS & PADGETT, 2007) ou travelling policies (ALEXIADOU &

JONES, 2001). Na prática, a ação dos atores políticos nacionais (funcionários da administração central; membros do governo, etc.) concretiza-se, segundo WALFORD (2001) num “olhar para os sistemas educativos de outros países e observar aquilo que funciona” o que “exerce uma atração evidente nos decisores políticos em busca de soluções rápidas que lhes permitam evitar as dificuldades, ou legitimar, através delas, as mudanças que propõem para os seus sistemas” (p. 179).

Como decorre desta afirmação de WALFORD (2001), este «empréstimo de políticas» acaba por ter sucesso pelo facto de permitir cumprir “simultaneamente funções de justificação (de valores e ideologias), de auto-legitimação (dos estudos educacionais enquanto campo académico) e de imputação (dos fracassos das reformas)” (BARROSO, 2006a, p. 47).

Nesta regulação transnacional é marcante o papel que agências internacionais como a UNESCO ou a OCDE assumem. Referindo de forma particular a OCDE, pelo papel especial que teve na regulação das construções escolares (em Portugal), importa sublinhar que esta, pela sua natureza, “limitada ao exercício de pressão moral, em contraste com outras que podem usar forças regulamentares ou financeiras para influenciar o comportamento dos atores nacionais” (KILDAL, 2003, p. 7), faz uso do que vários autores designam de «soft regulation», através do chamado «idea-game» MARCUSSEN (2004a; 2004b). Como reforça KILDAL (2003), é o facto de não exercer pressão legal ou financeira como outras organizações, que amplia o poder das ideias e do conhecimento veiculado.

17 Neste seu artigo DOLOWITZ & MARSH (2000) apresentam o seu quadro de análise do policy transfer, organizado em torno de 6 questões: Porque é que os atores participam no processo de policy transfer? Quem são os atores-chave no processo de policy transfer? O que é transferido? De onde são retirados os ensinamentos? Quais os diferentes graus de transferência? O que restringe ou facilita o processo de policy transfer? Incluem uma outra questão, que decorre de investigações anteriores e que diz respeito a Como é que o processo de policy transfer está relacionado com o sucesso ou o insucesso da política? Focam-se, ainda, na distinção entre a transferência voluntária e coerciva.

18 RADAELLI (1997) analisa as políticas públicas da União Europeia a partir do quadro conceptual do policy transfer e do conceito de isomorfismo, desenvolvido no terreno das teorias organizacionais. O autor defende que as instituições europeias, com limitações políticas em termos de legitimidade, estimulam a transferência de políticas “catalisando processos isomórficos que difundem pela União Europeia soluções políticas nacionais, para problemas coletivos” (p. 3).

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Ao longo da sua existência, a OCDE funcionou como um meio de “transferência de ideias” (KILDAL, 2003, p. 9) adotando diferentes papéis neste jogo, desde «ideational artist»19 a «ideational arbitrator»20

(MARCUSSEN, 2004a; 2004b).

Desde o seu início foi sublinhado que a principal função da OCDE envolvia o processo regular de «consulta» entre os seus grupos de peritos e os países-membros. O objetivo global desta atividade de consulta consistia em desenvolver um sistema de valores comuns entre os funcionários públicos dos países-membros da OCDE, uma visão de mundo comum que deveria constituir a base para a definição comum de problemas e soluções para a articulação da política económica. Assim, o «idea-game» diz respeito à formulação e transferência dessas ideias, que têm como intenção induzir certos tipos de comportamento dentro da área da OCDE. Dois papéis têm sido especialmente importantes para a OCDE neste jogo: os papéis de ideational artist e ideational arbitrator. (KILDAL, 2003, p. 9)

Estes papéis sofreram algumas alterações fruto da “reinvenção” (MARCUSSEN, 2004b) da própria organização internacional e a OCDE assumiu papéis adicionais de «ideational agent», adotando ideias dos países-membros mais prósperos e fazendo a ligação com áreas específicas de atividade para depois desenvolver e transferir para países menos centrais; e de «ideational agency», que implica uma mobilidade constante da OCDE pelos debates políticos nacionais, tal como uma agência, com o intuito de procurar novos produtos e novos mercados (KILDAL, 2003).

Ainda no que respeita ao papel desempenhado pela OCDE, BUSCH & JÖRGENS (2005a; 2005b) propõem uma tipologia de mecanismos utilizados por esta organização internacional – harmonização, imposição e difusão - através dos quais, atores, instituições e processos internacionais contribuem para a mudança e convergência das políticas nacionais. Como sublinham estes autores estes “mecanismos diferem no que diz respeito ao seu modo de funcionamento, às principais motivações dos decisores políticos para adotar políticas e à margem de manobra concedida aos decisores políticos nacionais para influenciar o conteúdo e decidir de forma independente sobre a adoção de uma política” (BUSCH & JÖRGENS, 2005a, p. 3). Estes três tipos de mecanismos são definidos por estes autores da seguinte forma:

- Harmonização – integra mecanismos como a negociação, a legalização, o cumprimento e a execução. Constitui um processo multilateral, centrado nos Estados, que envolve negociações internacionais com Estados soberanos e a subsequente formulação da política, implementação em cada país e o seu

19 Este papel envolve a formulação, teste e difusão de novas ideias políticas. Ao assumir este papel, a OCDE “pode ser descrita como uma enorme think tank, disposta a ajudar os seus estados-membros com conselhos de base empírica. Este papel retrata a OCDE como um fórum de consulta neutro com funcionários cuja lealdade para com a OCDE é mais forte do que a lealdade a seus países de origem.” (KILDAL, 2003, p. 9-10).

20 O papel de «ideational arbitrator» configura a OCDE como um local de reunião para várias ideias. Como refere Marcussen (2004a) a fim de ser um jogador eficiente neste idea-game, a OCDE organiza encontros para os funcionários nacionais se conhecerem e desenvolverem as suas competências pessoais e técnicas através de processos de aprendizagem, tais como a socialização, imitação e coerção.

31 cumprimento (LEHTONEN, 2005). Consiste na “harmonização cooperativa de práticas domésticas por meio de acordos legais internacionais ou de leis supranacionais” (BUSCH & JÖRGENS, 2005a, p. 3); - Imposição – o mecanismo de imposição acontece quando atores externos impõem coercivamente aos atores nacionais a adoção de uma política. Enquanto a harmonização decorre da vontade sentida pelos Estados no sentido de melhorar a gestão coletiva dos problemas ou para evitar reações externas negativas a uma ação unilateral; no caso da imposição, as motivações dos Estados e dos que pretendem impor as políticas, são distintas. Consiste numa imposição coerciva de práticas políticas por meio de pressões económicas, políticas, etc;

- Difusão – Finalmente a difusão é definida como o “processo pelo qual as inovações políticas são comunicadas através do sistema internacional e adotadas voluntariamente por um número cada vez maior de países ao longo do tempo” (BUSCH & JÖRGENS, 2005a, p. 5). Constitui, como continuam estes autores, um mecanismo que se caracteriza pela difusão interdependente, mas (des)coordenada de práticas políticas através da imitação, emulação ou aprendizagem entre países.

Dando continuidade à análise feita por BARROSO (2004; 2006a), relembra-se a segunda constatação feita pelo autor, o ‘hibridismo da regulação nacional’. Esta constatação decorre da “sobreposição ou mestiçagem de diferentes lógicas, discursos e práticas na definição e acção políticas” (BARROSO, 2006a, p. 53) e acontece como resultado da emergência de novos modos de regulação (por efeito da regulação transnacional e de mutações políticas e sociais internas).

Este hibridismo que se manifesta a dois níveis: a) “nas relações entre países, pondo em causa a ideia de que estamos em presença de uma aplicação ‘passiva’, pelos países da periferia, dos ‘modelos’ de regulação concebidos e exportados pelo centro” e b)“na utilização no mesmo país, de modos de regulação procedentes de ‘modelos’ distintos” (BARROSO, 2006a, p. 54) tem consequências ao nível da análise dos processos de regulação. Por um lado, porque “põe em causa (ou relativiza) o uso de taxinomias com que, por vezes se procuram descrever, comparar e classificar as políticas e modos de regulação entre diversos países”; e por outro, pois leva a que a “caracterização dos processos de regulação, num determinado país, não se possa fazer a partir de normas isoladas e situações avulsas, reduzindo estes processos a um ‘jogo de soma nula’ entre dois pólos de regulação” (idem, p. 55). Por esta razão, “as políticas nacionais necessitam ser compreendidas como o produto de um nexo de influências e interdependências que resultam numa «interconexão, multiplexidade, e hibridização» (Amin, 1997, p. 129), isto é, «a combinação de lógicas globais, distantes e locais» (p. 133)” (BALL, 2001, p. 102). Esta afirmação transporta-nos, de alguma forma, para a terceira constatação feita por BARROSO (2004; 2006a), e que diz respeito à ‘fragmentação da regulação local’. Este conceito que nos remete para um “complexo jogo de estratégias, negociações e acções” por parte dos vários atores é definido por este autor como “o processo de coordenação da acção dos actores no terreno que resulta do confronto,

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interacção, negociação ou compromisso de diferentes interesses, lógicas, racionalidades e estratégias em presença quer, numa perspectiva vertical entre ‘administradores’ e ‘administrados’, quer numa perspectiva horizontal, entre os diferentes ocupantes dum mesmo espaço de interdependência” (BARROSO, 2006a, p. 56-57).

Nesta perspetiva, são diversos os polos de influência da regulação local, desde os serviços da administração desconcentrados e descentralizados, às organizações educativas, aos atores individuais “com interferência directa no funcionamento do sistema educativo quer como prestadores, quer como utilizadores” (idem, p. 57). A existência destes múltiplos espaços de regulação ao nível local faz emergir a complexidade e imprevisibilidade dos processos de microrregulação e provoca o tal efeito mosaico que, segundo BARROSO (2004) contribui para acentuar a diversidade do sistema, mas também a desigualdade.

Este modelo de análise proposto por BARROSO (2004; 2006a) coloca em evidência a complexidade dos processos de regulação das políticas e da ação pública fazendo emergir a policentricidade das formas de regulação e as mutações internas de uma ação pública marcada pela fluidez das questões e a heterogeneidade dos espaços de referência (DURAN, 2001, p.1).

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