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2.3 A evolução do controle de constitucionalidade

2.3.2 O controle de origem estadunidense

É interessante notar que foi justamente a soberania do Parlamento inglês que favoreceu a denominada “supremacia dos juízes” nos Estados Unidos da América.

De fato, como explica CAPPELLETTI, a teoria da supremacia da common law sobre o Parlamento já era defendida por COKE no ordenamento inglês. A lei estatutária poderia ser rejeitada pela common law no caso de ser a ela contrária. E, segundo Lord COKE, seriam os juízes que deveriam garantir, a final de contas, a soberania da common law.109

A doutrina de Lord COKE, continua CAPPELLETTI, entendida como instrumento de luta, quer contra o absolutismo do Rei, que contra o do Parlamento, predominou na Inglaterra por alguns decênios, e não só na Inglaterra, mas também nas colônias inglesas da América, onde foi, de fato, em muitas ocasiões, acolhida pelos

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Segundo CAMPILONGO: “Paralelamente ao princípio da divisão dos poderes afirmam-se outros dois importantes aspectos do pensamento liberal-burguês: a separação Estado/sociedade e o individualismo. A superação do absolutismo envolve gradual estabilização desses três componentes: a mudança de um modelo político mono-hierárquico para uma estrutura anti-hierárquica da divisão de poderes; a passagem de uma concepção que não diferencia com clareza as tarefas do Estado daquelas da sociedade civil para uma postura que traça uma rígida demarcação dos limites do Estado e das esferas de liberdade que o sistema jurídico deve reconhecer e garantir ao cidadão; a transformação de uma sociedade estratificada em ‘Estados’ numa sociedade na qual todos são iguais em suas esferas de liberdade e recebem do Estado um tratamento formalmente idêntico.”

In: CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial. São Paulo, Max Limonad,

2002, p. 32-33. 109

CAPPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado. Rio Grande de Sul, Sérgio Fabris Editor, 1999, p. 59-60.

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tribunais110, tendo sido, contudo, abandonada na Inglaterra com a revolução de 1688, a partir de quando proclamou-se a doutrina contrária, da supremacia do Parlamento.

E, arremata COKE, as Colônias inglesas foram constituídas como companhias comerciais, por meio de cartas ou estatutos da Coroa. Estas “cartas” poderiam ser consideradas as primeiras Constituições das Colônias, pois vinculavam o legislador local, que, embora pudesse editar leis locais, deveria fazê-lo de maneira que fossem razoáveis e não violassem as leis do Reino da Inglaterra e, por via de consequência, a supremacia do Parlamento. Partindo dessas premissas, em numerosos casos, o Privy Concil do Rei decidiu que as leis coloniais deviam ser aplicadas pelos juízes das Colônias só se elas não estivessem em contraste com as leis do Reino.111

Dessa forma, os juízes americanos foram se afeiçoando à prática de controlar a legalidade das leis locais. Após a independência em relação à Inglaterra, ocorrida em 1776, os Estados aprovaram suas próprias Constituições, em substituição às antigas “Cartas”, e em pouco tempo as Constituições locais foram substituindo as leis do Reino como parâmetro para o controle da legislação.

As ideias que ensejariam a aplicação da judicial review já estavam presentes na formação da federação americana, tendo sido claramente sustentadas por ALEXANDER HAMILTON, nos arts. LXXVIII112 e LXXXI, de Os Artigos Federalistas.

110

CAPPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado. Rio

Grande de Sul, Sérgio Fabris Editor, 1999, p. 60. 111

Ibidem, p. 61. 112

“A completa independência dos tribunais de justiça é peculiarmente essencial numa Constituição limitada. Por Constituição limitada, entendo uma que contenha certas exceções especificas ao pode legislativo, como, por exemplo, a de que ele não aprovará decretos de perda dos direitos civis, leis ex post facto, ou coisas semelhantes. Na prática, limitações desse tipo não podem ser preservadas senão por meio de tribunais de justiça, cuja missão deverá ser declarar nulos todos os atos contrários ao sentimento manifesto da Constituição. Sem isto, todas as restrições a direitos ou privilégios particulares equivaleriam a nada. [...] Não há posição fundada em princípios mais claros que aquela de que todo ato de um poder delegado que contrarie o mandato sob o qual é exercido é nulo. Portanto, nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido. Negar isto seria afirmar que o delegado é maior que o outorgante; que o servidor está acima do senhor; que os representantes do povo são superiores ao próprio povo; que homens que atuam em virtude de poderes a eles confiados podem fazer não só o que estes autorizam, mas o que proíbem. [...] A interpretação das leis é o domínio próprio e particular dos tribunais. Uma Constituição é de fato uma lei fundamental, e como tal deve ser vista pelos juízes. Cabe a eles, portanto, definir seu significado tanto quanto o significado de qualquer ato particular procedente do corpo

56 RUI BARBOSA enfatiza, ao comentar o poder de os tribunais declararem a nulidade das leis inconstitucionais, que “desde os tempos coloniais a jurisprudência americana se detinha ante esta questão, e várias vezes a resolvia, atribuindo esse poder, como função privativa, aos tribunais”.113 Cita, então, decisões de 1870, do Supremo Tribunal de Nova Jérsei; de 1782, da magistratura de Virgínia; de 1786, de Rhode Island; e de 1788, da Carolina do Norte, nas quais houve o reconhecimento da invalidade das leis inconstitucionais.114

O mais emblemático episódio na jurisprudência americana, todavia, ocorreu em 1803, no famoso caso MARBURY versus MADISON, no qual a Suprema Corte americana, em decisão proferida por MARSHALL, então Presidente daquele tribunal, delineou os contornos do raciocínio que proclama a invalidade, nulidade absoluta, da lei que contrarie a Constituição.115

O sistema de controle estadunidense teve grande repercussão e foi incorporado ao ordenamento jurídico de diversos outros países. CAPPELLETTI informa que este modelo foi implantado, sobretudo, em muitas ex-colônias inglesas, como o Canadá, a Austrália e a Índia, mas também, em outras partes, como no Japão, na Suíça, na Noruega, na Dinamarca, na Suécia, bem como, na Alemanha, durante a Constituição de Weimar, e na Itália, de 1948 a 1956.116 117

legislativo. Caso ocorra uma divergência irreconciliável entre ambos, aquele que tem maior obrigatoriedade e validade deve, evidentemente, ser preferido. Em outras palavras, a Constituição deve ser preferida ao estatuto, a intenção do povo à intenção de seus agentes. Esta conclusão não supõe de modo algum uma superioridade do poder judiciário sobre o legislativo. Supõe apenas que o poder do povo é superior a ambos, e que, quando a vontade do legislativo, expressa em suas leis, entra em oposição com a do povo, expressa na Constituição, os juízes devem ser governados por esta última e não pelas primeiras. Devem regular suas decisões pelas leis fundamentais, não pelas que não são fundamentais.” In: MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. Os Artigos Federalistas: 1787-1788. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993, p. 480-481.

113

BARBOSA, Rui. Atos Inconstitucionais. 2ª ed., São Paulo, Russel, 2004, p. 47. 114

Veja-se a tradução de RUI BARBOSA (Ibidem, p. 47-48) acerca dos pontos fundamentais da referida decisão. 115

A transcrição da decisão foi feita, em sua parte essencial, por RUI BARBOSA, In: Ibidem, p. 49-52. 116

CAPPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado. Rio Grande de Sul, Sérgio Fabris Editor, p. 68-72.

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BARACHO esclarece que: “Distantes do modelo europeu estão a Dinamarca, a Irlanda, a Noruega, a Suécia e a Grécia, que optaram pelo modelo americano. A Suíça apresenta situação particular. A Grã-Bretanha, os Países Baixos e Luxemburgo são desprovidos de todo sistema de Justiça Constitucional.” In: BARACHO, José Alfredo

57 Como se sabe, foi, igualmente, adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, em 1890, após a proclamação da República, e é, também, o sistema tradicional português, “introduzido na Constituição de 1911 (art. 63º), por influência da Constituição brasileira de 1891 (arts. 207 e 280)”.118