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2.2 Processo e procedimento constitucionais

2.2.2 O Direito Processual Constitucional

Diante da especificidade do processo de controle abstrato de constitucionalidade, cogita-se da configuração do Direito Processual Constitucional como ramo autônomo do Direito processual.

Inicialmente, é necessário esclarecer que o questionamento poderia ser feito apenas no que diz respeito ao controle abstrato de constitucionalidade, que pode ser visto como a jurisdição constitucional em sentido estrito. De fato, o controle concreto ou incidental, como se sabe, é realizado em um processo comum, entre partes, motivo pelo qual deve seguir as regras do processo que regem a matéria. Não se trata, no controle concreto, de processo constitucional, mas, sim, de processo comum, ressalva feita apenas ao incidente de inconstitucionalidade de efeitos gerais nos ordenamentos jurídicos que o preveem.

CANOTILHO define o direito processual constitucional como “o conjunto de regras e princípios positivados na Constituição e noutras fontes de direito (leis e tratados) que regulam os procedimentos juridicamente ordenados à solução de questões de natureza jurídico-constitucional pelo Tribunal Constitucional”.73

Há controvérsia na doutrina nacional e estrangeira acerca da questão de o Direito Processual Constitucional configurar ramo cientificamente apartado do processo comum.

73

CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed., Coimbra, Almedina, 2003, p. 965.

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A entender que se trata de um corte metodológico apto a melhor estudar as especificidades do processo constitucional, em particular do controle abstrato de constitucionalidade, ARAÚJO CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO defendem que:

“A condensação metodológica e sistemática dos princípios constitucionais do processo toma o nome de direito processual constitucional.

Não se trata de um ramo autônomo do direito processual, mas de uma colocação científica, de um ponto-de-vista metodológico e sistemático, do qual se pode examinar o processo em suas relações com a Constituição.”74

Todavia, a questão fica mais intrincada se considerarmos apenas a jurisdição constitucional em sentido estrito, ou seja, o controle abstrato de constitucionalidade.

A jurisdição constitucional em sentido estrito possui regras próprias, fundadas em princípios específicos, que a caracterizam como um processo diferenciado em relação aos demais. A relação jurídica processual no controle abstrato de constitucionalidade é peculiar, pois nela se coloca em cheque a existência de partes, na medida em que não há defesa de interesses pessoais (ao menos diretamente) e sim da ordem jurídica constitucional, o que leva o processo a assumir a característica de processo objetivo.

Nesse contexto, o procedimento apto a regular o desenvolvimento de uma relação processual sui generis é especialíssimo, guardando nítidas características próprias, que o distinguem claramente dos demais.

CELSO DE MELLO, ao relatar acórdão que indeferiu a intervenção, como terceiro interessado, de entidade de cunho privado em ação direta de inconstitucionalidade75, defende a autonomia instrumental do processo constitucional, demonstrando não ser possível a aplicação em seu âmbito da generalidade das normas

74

ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 25ª ed., São Paulo, Malheiros, 2009, p. 85.

75

Observe-se que, à época do julgamento, não havia a previsão legal referente ao amicus curiae, inserida, posteriormente, na Lei nº 9.868/99, art. 7º, § 2º e na Lei nº 9.882/99, art. 6º, § 2º.

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aplicáveis ao processo comum, impedindo, assim, a aplicação ordinária do princípio da subsidiariedade ao processo de controle abstrato de normas. Em suas palavras:

“em regra, não se deve reconhecer, como pauta usual de comportamento

hermenêutico, a possibilidade de aplicação sistemática, em caráter

supletivo, das normas concernentes aos processos de índole subjetiva,

especialmente daquelas meramente legais que disciplinam a intervenção de terceiros na relação processual”.7677

VITALINO CANAS defende a completa autonomia do Direito Processual Constitucional:

“De tudo o que escrevemos nas páginas anteriores só se pode extrair uma conclusão: o direito processual constitucional não pode deixar de ser um direito processual autónomo, regido por princípios próprios, necessariamente pouco fungíveis com os dos processos jurisdicionais típicos.”78

É preciso ter em mente, todavia, que o ramo processual autônomo que CANAS vislumbra é algo bastante abrangente, a incluir no Direito Processual Constitucional até mesmo processos não jurisdicionais. De fato, segundo a visão de CANAS acerca do processo constitucional, este abarcaria não só as garantias processuais da Constituição, como também outros processos materialmente constitucionais, como o processo legislativo, o processo de revisão constitucional, o processo de declaração de estado de sítio, de estado de emergência etc.79 Tal concepção me parece demasiadamente extensa, não encontrando ressonância seja no ordenamento jurídico seja na doutrina nacionais.

76

ADI-AgR 1254-1 RJ, j. 14/08/1996, grifos no original. 77

Em outra oportunidade, o Ministro CELSO DE MELLO, em voto proferido na ação direta de inconstitucionalidade nº 2.995 AgR/PE, julgada em 31/10/2006, chegou a fazer menção a uma absoluta

autonomia do processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade em relação aos institutos e normas dos

processos de índole subjetiva: “Não se pode deixar de reconhecer, por isso mesmo, no plano do controle normativo abstrato de constitucionalidade, a absoluta autonomia que o processo de fiscalização concentrada ostenta, ordinariamente, em relação aos institutos e normas peculiares aos processos de índole meramente subjetiva.”

78

CANAS, Vitalino. Os processos de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade pelo Tribunal Constitucional: Natureza e princípios estruturantes. Coimbra, Coimbra Editora, 1986, p. 87-88.

79

Ibidem, p. 13 e 14. Veja-se também a definição que CANAS confere ao Direito Processual Constitucional, a confirmar a amplitude de seu conceito: “Nestes termos propenderíamos para uma noção mais ampla de direito processual constitucional e defini-lo-íamos como o conjunto de normas que regulam os actos e princípios de natureza processual orientados à produção de um acto constitucional (final), entendido este como o acto

44 JULIANO TAVEIRA BERNARDES ressalta que a jurisdição constitucional brasileira, entendida como o controle de constitucionalidade em geral, não poderia ser tida como ramo autônomo do Direito Processual Constitucional geral, pois “em quaisquer processos podem surgir questões constitucionais e [...] o sistema difuso de controle de constitucionalidade permite a todo juiz decidi-las sem a necessidade de instauração de nova relação processual [...]”.80 Pondera, todavia, que não ocorre o mesmo se forem considerados apenas os processos de jurisdição constitucional em sentido estrito, pois, nestes, o “elevado número de peculiaridades permitem concluir: o processo constitucional (também entendido aqui em sentido estrito) goza de autonomia científica”.81

ANDRÉ RAMOS TAVARES reconhece a controvérsia, citando as posições de HÄBERLE, pela autonomia, e de FRÖHLINGER, pela aplicação das regras gerais do processo para o campo constitucional, concluindo que:

“Não obstante a corrente a que cada um se filie, parece inegável que há uma especificidade, que faz o Direito Processual Constitucional depender de uma série de regras autônomas em relação ao processo em geral e que, em boa parte, chegam até a negar as regras gerais do processo, tal como a de que em todo processo há uma triangulação entre autor-réu-juiz.”82

Em outra oportunidade, ao comentar o processo da arguição de descumprimento de preceito fundamental, TAVARES observa que se trata de um processo de natureza objetiva, não se podendo pretender fazer “o uso dos mesmos princípios constitucionais do processo comum ou das regras utilizadas para o processo ordinário. Aquele primeiro não é e não pode ser regido pelas mesmas regras deste último”.83

jurídico sujeito e regulado, integralmente ou não, pela Constituição quer no seu conteúdo, quer na sua formação.” In: Ibidem, p. 14, grifos no original.

80

BERNARDES, Juliano Taveira. Controle abstrato de constitucionalidade: Elementos materiais e princípios processuais. São Paulo, Saraiva, 2004, p. 278.

81

Ibidem, p. 279. 82

TAVARES, André Ramos. Tratado da arguição de descumprimento de preceito fundamental. São Paulo, Saraiva, 2001, p. 267 e 268.

83

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Pondera, todavia, que, embora não se possa fazer uma aplicação plena das regras processuais comuns, seria “possível fazer uso de certas categorias processais, com algumas mudanças, como tem assinalado a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Pode-se falar, assim, em elementos e condições da ação, embora com certas reservas”.84

O Ministro CELSO DE MELLO ressaltou não se mostrar impossível a aplicação das normas concernentes aos processos de índole subjetiva ao controle abstrato de normas, legitimando-se, ainda que em caráter excepcional, a invocação do princípio da subsidiariedade:

“Embora o processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade ostente inquestionável perfil objetivo (CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, ‘A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro’, p. 141/145, item n. 3.2.2, 2ª ed., 2000, RT; GILMAR FERREIRA MENDES, ‘Jurisdição Constitucional’, p. 129/130, 2ª ed., 1998, Saraiva; NAGIB SLAIBI FILHO, ‘Ação Declaratória de Constitucionalidade’, p. 106, 2ª ed., 1995, Forense) – entendimento este que encontra apoio na própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 113/22 - RTJ 131/1001 - RTJ 136/467 - RTJ 164/506-507) –, não se mostra de todo impossível a

aplicação, a essa categoria especial de causa, das normas concernentes aos processos de índole subjetiva (ADI 459/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO), legitimando-se, em conseqüência, ainda que em caráter excepcional, a invocação do princípio da subsidiariedade. Daí a

advertência do magistério doutrinário, segundo o qual os princípios inerentes ao processo subjetivo somente devem ser aplicados ao processo objetivo desde que observada ‘apurada dose de cautela’ (CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, ‘A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro’, p. 144/145, item n. 3.2.2, 2ª ed., 2000, RT). Desse modo, e sob tal perspectiva, o postulado da subsidiariedade – embora não

encontre vigência irrestrita no âmbito do processo objetivo de fiscalização abstrata (ADI 1.350/RO, Rel. Min. CELSO DE MELLO) – legitima a aplicação, às ações diretas de inconstitucionalidade, das diretrizes que regem as situações pertinentes ao reconhecimento da legitimidade ativa ad causam para a válida instauração, e para o seu regular prosseguimento, do processo de controle normativo abstrato.”85

84

TAVARES, André Ramos. Tratado da arguição de descumprimento de preceito fundamental. São Paulo, Saraiva, 2001, p. 307.

85

ADI nº 1063, Relator Ministro CELSO DE MELLO, decisão monocrática, D. J. Nº 140, do dia 08/08/2001 (grifos nossos).

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Note-se, outrossim, que a doutrina processual moderna vê uma tendência unificadora quanto ao tratamento científico da doutrina processual, pelo qual se busca encontrar os pontos comuns na atividade jurisdicional. VICENTE GRECCO FILHO pondera que:

“Modernamente a ciência processual tem recebido uma inspiração unificadora. Após séculos de tratamento distinto, o direito processual civil e o direito processual penal passaram a receber tratamento científico unificado em seus institutos fundamentais, por meio da busca dos pontos comuns da atividade jurisdicional. Igual aproximação receberam o chamado direito processual do trabalho e os ramos especiais do direito processual, ou seja, o direito processual penal militar e o direito processual eleitoral.

A compreensão unitária do direito processual resultou, especialmente, da verificação de que o poder jurisdicional, como um dos poderes do Estado, é único, e sua estruturação básica encontra-se no nível da Constituição Federal, de modo que resulta inevitável a conclusão que há algo em comum na atividade jurisdicional.”86

NELSON NERY JUNIOR, lembrando que o Direito Processual é um sistema uniforme e uno, esclarece que a distinção entre ramos é feita com finalidades didáticas, não se tratando de novos ramos do Direito Processual.87

Entendo que o processo do controle abstrato de constitucionalidade é veiculado por um procedimento de inegável especificidade. Todavia, não vejo que, como processo jurisdicional que é, possa ficar completamente imune aos princípios processuais, sobretudo aqueles previstos na própria Constituição. De fato, também são processos especiais aqueles que veiculam o mandado de segurança, o habeas corpus, a ação popular, as ações de impugnação de mandato parlamentar, dentre outros. Embora se sujeitem a regras e princípios próprios – o princípio da verdade real, por exemplo, vigente no processo penal, não se aplica aos demais –, isso não parece suficiente para que o seu estudo seja feito de

86

GRECCO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro, v. 1. 20ª ed., São Paulo, Saraiva, 2008, p. 3. 87

“Naturalmente, o direito processual se compõe de um sistema uniforme, que lhe dá homogeneidade, de sorte a facilitar sua compreensão e aplicação para a solução das ameaças e lesões a direito. Mesmo que se reconheça essa unidade processual, é comum dizer-se didaticamente que existe um direito constitucional processual, para significar o conjunto das normas de direito processual que se encontra na Constituição Federal, ao lado de um direito processual constitucional, que seria a reunião dos princípios para o fim de regular a denominada jurisdição constitucional. Não se trata, portanto, de ramos novos do direito processual.” In: NERY Jr., Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 9ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009, p. 41 (grifo nosso).

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maneira absolutamente apartada das demais espécies processuais. Essencialmente, todos são processos que adotam a forma judiciária – tal qual sugerido por KELSEN88 – e, assim, respeitadas as especificidades de cada um deles, podem se valer dos princípios gerais de processo que iluminam a matéria, de modo a permitir o seu bom desenvolvimento com base em regras hauridas pela experiência secular.

Portanto, não vejo o Direito Processual Constitucional como disciplina autônoma do Direito Processual, mas apenas, tal qual sugerido por ARAÚJO CINTRA, DINAMARCO e GRINOVER89, um corte metodológico para melhor analisar o controle abstrato de normas e suas especificidades.

Indubitavelmente, por outro lado, as regras do processo comum não incidem, via de regra, diretamente ao processo de controle abstrato de constitucionalidade. Mesmo em relação aos princípios processuais, deve haver extrema cautela em sua aplicação ao processo de controle abstrato, pois a natureza especialíssima deste pode afastar, em determinadas situações, a incidência dos princípios gerais ou implicar na necessidade de amoldá-los às suas peculiaridades ou, ainda, exigir a identificação de princípios próprios desta espécie de processo.