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2. A CULTURA QUE NASCE DO COTIDIANO POPULAR

2.2. O COTIDIANO POPULAR NA IDADE MÉDIA E MODERNA

Em “A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais”, Mikhail Bakhtin (2010) revisita a obra de Rabelais, que foi um eminente porta-voz da cultura popular cômica no campo literário. Para compreender este autor clássico, Bakhtin adentra então no contexto cultural em que os livros de Rabelais estão inseridos e traz características da cultura popular, mais especificamente, do riso e do humor popular, na Idade Média e Renascimento. Neste período, a sociedade era marcada por ritos e festas oficiais de caráter predominantemente religioso, nos quais as comemorações tendiam a consagrar um mundo pré-construído e o modo de viver daquela sociedade.

O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro de sua diversidade, essas formas e manifestações – as festas públicas carnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a literatura paródica, vasta e multiforme, etc. – possuem uma unidade de estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca, una e indivisível. (BAKHTIN, 2010, p. 03-04)

Bakhtin investiga a dinâmica cultural popular a partir do espaço da praça pública, local onde o povo ganha voz e do qual o Carnaval é a grande expressão. “A praça é o espaço não segmentado, aberto à cotidianidade e ao teatro, mas um teatro sem distinção de atores e espectadores. Caracteriza a praça sobretudo uma linguagem; ou melhor, a praça é uma linguagem, ‘um tipo particular de comunicação’,” (MARTÍN-BARBERO, 2013, p. 101) que deixa de lado as linguagens oficiais da Igreja, da Corte e dos tribunais e dá lugar no vocabulário e nos gestos a expressões ambíguas, ambivalentes, que “não apenas acumulam e dão vazão ao proibido, mas também ao operar como paródia, como degradação –regeneração ‘contribuíam para a criação de uma atmosfera de liberdade’.” (MARTÍN-BARBERO, 2013, p. 102).

Enquanto nos palácios, templos, nas instituições e nas casas particulares reinava um princípio de comunicação hierárquica, regida por normas de etiqueta e polidez, na praça pública, território próprio da cultura popular, é a linguagem familiar, permeada por grosserias, juramentos e maldições, que ganha espaço. A praça forma, segundo Bakhtin, um mundo único e coeso, um ambiente impregnado de liberdade, franqueza e familiaridade. Nos dias de festa, ela se tornava “o ponto de convergência de tudo o que não era oficial, de certa forma gozava de um direito de ‘exterritorialidade’ no mundo da ordem e da ideologia oficiais, e o povo aí tinha sempre a última palavra.” (BAKHTIN, 2010, p. 132).

Dentre as festas que ocorriam na praça pública, o carnaval era a que ocupava o lugar mais importante na vida das populações medievais. Permeadas por atos e ritos cômicos, as celebrações carnavalescas chegavam a durar até três meses por ano, nas grandes cidades. Junto ao carnaval haviam outras festas de caráter cômico-popular como a Festa dos Tolos e a Festa do Asno, sendo que, de modo geral, todas as festas religiosas possuíam um aspecto cômico popular e público, consagrado pela tradição. Além das festas, o riso também estava presente nas cerimônias e nos ritos civis da vida cotidiana, sendo os bufões e bobos, presenças constantes nos cerimoniais sérios, parodiando seus atos.

Enquanto as cerimônias oficiais da Igreja e do Estado feudal primavam pela seriedade, oferecendo uma visão de mundo voltada para o passado e que valorizava a ordem social vigente, consagrando “a estabilidade, a imutabilidade e a perenidade das regras que regiam o mundo: hierarquias, valores, normas e tabus religiosos, políticos e morais coerentes” (BAKHTIN, 2010, p. 08), os ritos e espetáculos cômico-populares ofereciam uma visão do mundo e das relações humanas totalmente diferente e não oficial, exterior à Igreja e ao Estado. Bakhtin faz referência a um segundo mundo e a uma segunda vida, coexistentes com o mundo oficial, dos quais os homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor grau, e nos quais viviam em ocasiões determinadas.

Contrastando com a excepcional hierarquização do regime feudal, com sua extrema compartimentação em estados e corporações na vida diária, esse contato livre e familiar era vivido intensamente e constituía uma parte essencial da visão carnavalesca do mundo. O indivíduo parecia dotado de uma segunda vida que lhe permitia estabelecer relações novas, verdadeiramente humanas com seus semelhantes. A alienação desaparecia provisoriamente. O homem tornava a si mesmo e sentia-se um ser humano entre seus semelhantes. (BAKHTIN, 2010, p. 09)

Ao contrário da festa oficial, o carnaval era uma espécie de liberação temporária da verdade dominante, do regime vigente, pois abolia, mesmo que provisoriamente, todas as relações hierárquicas, os privilégios, regras e tabus da época. Segundo Stuart Hall (2003), o carnaval de Mikhail Bakhtin, é “a metáfora da suspensão e inversão temporária e sancionada da ordem, um tempo em que o baixo se torna alto e o alto, baixo, o momento da reviravolta, do ‘mundo às avessas’.” (HALL, 2003, p. 246-247). A partir desta perspectiva, o popular é caracterizado pela combinação dos contrários, pelas duplicidades das coisas e da linguagem. Para Bakhtin, o carnaval é o ápice do popular, lugar onde a própria vida representa e interpreta, independente de atores, cenários, palcos ou espectadores. O carnaval é o lugar onde a verdadeira natureza humana se manifesta, pois as pessoas deixam de lado a seriedade e o rigor social e dão lugar ao riso, ao cômico, às falhas. Diferentemente da festa oficial, onde

as pessoas são identificadas por seus títulos, o carnaval torna todos iguais, reinando ali um contato livre e familiar entre os indivíduos, normalmente separados na vida cotidiana por suas condições sociais e econômicas.

Também na Idade Moderna, o carnaval continua ocupando um lugar de destaque na vida das aldeias e cidades. Peter Burke (2010) caracteriza o carnaval como uma época de desordem institucionalizada, um conjunto de rituais de inversão. O carnaval era o período em que a cidades tornavam-se teatros sem paredes e seus habitantes, atores e espectadores ao mesmo tempo. O povo cantava e dançava nas ruas, usava máscaras e até fantasias completas. Era comum ver homens vestidos de mulher e mulheres de homem. Outros trajes usuais eram os de padre, diabo, bobo e animais selvagens. Havia desfiles com carros alegóricos, competições e também encenações de peças.

O carnaval era uma época de comédias, que muitas vezes apresentavam situações invertidas, em que o juiz era posto no tronco ou a mulher triunfava sobre o marido. As fantasias de Carnaval permitiam que os homens e mulheres trocassem seus papéis. As relações entre patrão e empregado podiam se inverter; [...] Os tabus cotidianos que coibiam a expressão de impulsos sexuais e agressivos eram substituídos por estímulos a ela. O carnaval, em suma, era uma época de desordem institucionalizada, um conjunto de rituais de inversão. Não admira que os contemporâneos o chamassem de época de “loucura” em que reinava a folia. As regras da cultura eram suspensas; os exemplos a se seguir eram o selvagem, o bobo e o “Carnaval”, que representava a Natureza ou, em termos freudianos, o Id. (BURKE, 2010, p. 259)

Assim como a Idade Média também a Modernidade (período de 1500 a 1800) será marcada pela estratificação cultural e social. A maioria das pessoas era analfabeta e só parte da minoria letrada sabia latim, considerada a língua dos cultos. Mesmo trabalhando com os termos cultura da elite e cultura popular, Burke explica que, principalmente no início da Europa moderna, havia intercâmbios culturais. Elite e não elite, ou seja, “todo um conjunto de grupos sociais mais ou menos definidos, dentre os quais destacavam-se os artesãos e os camponeses9”. (BURKE, 2010, p. 11), partilhavam um repertório comum. A elite se apropriava da cultura do povo, frequentava suas festas, partilhava suas canções, mitos, estória. Ao menos nas cidades, ricos e pobres, nobres e plebeus assistiam os mesmos sermões. Os contadores de estórias, as baladas, os folhetos e palhaços também eram populares entre as elites, que faziam uso de produtos de arte folclórica e também tratavam suas doenças com curandeiros. Burke lembra ainda, que não eram só os nobres que participavam da cultura popular, mas também o clero, particularmente no século XVI. “Não era absolutamente

9 Burke usa a expressão “artesãos e camponeses” para sintetizar o conjunto da não elite, que era também composto por mulheres, crianças, pastores, marinheiros, mendigos e os demais grupos sociais.

incomum ver os padres a cantar, dançar ou usar máscaras nas igrejas em ocasiões festivas, e eram os noviços que organizavam a festa dos Loucos, grande festejo de algumas regiões da Europa.” (BURKE, 2010, p. 54). Os homens da Igreja eram autorizados a se divertir. Podiam jogar bola, encenavam comédias e mesmo as freiras eram autorizadas a celebrar o Carnaval, vestidas de homem.

A participação e inserção da elite na cultura popular não exclui, no entanto, as relações de classe, muito menos demonstra um convívio amigável entre povo e elite. Havia por parte da elite um desprezo pelas classes baixas e pelo que vinha do povo, porém, no início da Idade Moderna, “a gente culta ainda não associava baladas, livros populares e festas à gente comum, precisamente porque também participava, ela mesma, dessas formas de cultura”. (BURKE, 2010, p. 55). Burke também não descarta que a participação da nobreza e do clero na cultura popular poderia estar relacionada a seu interesse pelo folclore e ao fato de que muitos nobres e clérigos não sabiam ler nem escrever, possuindo o mesmo estilo de vida dos camponeses. Cabe também destacar o papel das mulheres como intermediárias culturais entre o grupo a que pertenciam socialmente, a nobreza, e o grupo a que pertenciam culturalmente, a não elite. “Os nobres, eruditos, mantinham contato com a cultura popular através de suas mães, irmãs, esposas e filhas, e em muitos casos teriam sido criados por amas camponesas, que lhes cantavam baladas e contavam-lhes estórias populares.” (BURKE, 2010, p. 56).

Na Europa moderna, cada artesão e cada camponês estava envolvido na difusão da cultura popular, do mesmo modo que sua esposa e filhos. A criação dos filhos passava necessariamente pela transmissão dos valores de sua cultura ou subcultura. Homens e mulheres tinham funções bem determinadas, sendo que na sociedade pré-industrial, a vida era basicamente organizada com base na produção manual dos próprios indivíduos. A produção da mobília ficava a cargo dos homens, e a das roupas por conta das mulheres. As doenças eram tratadas em casa, cabendo também aos moradores criar suas formas de entretenimento, como a confecção de instrumentos musicais. No entanto, apesar da vida cotidiana estar fundamentada na casa, nem a casa nem a aldeia eram culturalmente autônomas. Os profissionais de diversões, como apresentadores de espetáculos, menestréis, bufões, artistas de rua, cantores, poetas populares, tinham um papel importante na difusão da tradição popular para além do ambiente da casa, atuando não só como porta-vozes de uma comunidade e transmissores da tradição popular, mas também como recriadores da tradição, trazendo em suas apresentações certo grau de inventividade. No entanto, cabe ressaltar que nem tudo o que

era proposto pelos profissionais era incorporado à tradição, pois em uma cultura oral, a comunidade é que selecionava.

Se um indivíduo produz inovações ou variações apreciadas pela comunidade, elas serão imitadas e assim passarão a fazer parte do repertório coletivo da tradição. Se suas inovações não são aprovadas, elas morrerão com ele, ou até antes. Assim, sucessivos públicos exercem uma “censura preventiva” e decidem se uma determinada canção ou estória vai sobreviver, e de que forma sobreviverá. É neste sentido (à parte o estímulo que dão durante a apresentação) que o povo participa da criação e transformação da cultura popular. (BURKE, 2010, p. 161)

O fato de existirem porta-vozes das tradições populares, pessoas do povo que se destacavam em suas comunidades por suas capacidades criativas e por difundirem a tradição revela que a cultura popular sempre contou com mediadores culturais. No entanto, se naquele momento, eram as próprias pessoas do povo que assumiam esse papel, hoje, temos a mídia como uma das principais difusoras da cultura popular, espaço de encontro do popular com outras culturas e também de renovação e criação de novas práticas e hábitos. Por meio da mídia, as classes populares, principalmente no contexto urbano, se veem representadas e também têm acesso a outras formas culturais que passam a integrar seu cotidiano. No entanto, cabe ressaltar, que ainda que as produções midiáticas tenham grande força, é preciso reconhecer que as classes populares continuam tendo o papel de seleção, podendo ou não se apropriar do que é produzido pela mídia10, seja por meio de sua audiência a determinados programas como também pela incorporação e ou consolidação de comportamentos, discursos, valores e representações em seu cotidiano.

Tendo como base o modelo de estratificação cultural de Robert Redfield11, Burke propõe que nos inícios da Europa moderna existiam duas tradições culturais: a pequena e a grande tradição. No entanto, diferentemente de Redfield, o autor ressalta que enquanto o povo participava apenas da pequena tradição, os membros da elite participavam tanto da grande quanto da pequena tradição, sendo que a participação da elite nas duas tradições se explica pelos diferentes modos de aquisição cultural. Enquanto a grande tradição era transmitida formalmente nos liceus e universidades, sendo assim, uma tradição fechada, no sentido de que aqueles que não frequentavam tais instituições estavam excluídos, a pequena tradição era

10 Como argumenta Hall (2003), no texto “Codificação/Decodificação”, o telespectador pode se apropriar (decodificar) o discurso televisivo de três modos distintos: hegemônico, negociado e contrário.

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Segundo Redfield, em certas sociedades existiam duas tradições culturais: a grande tradição da minoria culta (cultura letrada) e a pequena tradição (cultura popular) dos demais. A crítica de Burke ao uso deste modelo para se pensar a Europa moderna é que ao relacionar a pequena tradição enquanto aquela relacionada à não elite, omite-se a participação das classes altas na cultura popular e suas possíveis influências nesta cultura.

transmitida informalmente, estando presente na igreja, na taverna e na praça do mercado, onde ocorriam as apresentações.

Assim, a diferença cultural crucial nos inícios da Europa moderna (quero argumentar) estava entre a maioria, para quem a cultura popular era a única cultura, e a minoria, que tinha acesso à grande tradição, mas que participava da pequena tradição enquanto uma segunda cultura. [...] Para a elite, mas apenas para ela, as duas tradições tinham funções psicológicas diferentes: a grande tradição era séria, a pequena tradição era diversão. [...] Essa situação não se manteve estática ao longo do período. As classes altas foram deixando gradualmente de participar da pequena tradição, no curso do século XVII e XVIII. (BURKE, 2010, p. 56-57).

Mesmo se apropriando da ideia de pequena tradição de Redfield, Burke chama a atenção para o fato de que este termo pode ser considerado amplo demais, na medida em que, estando no singular, sugere uma relativa homogeneidade cultural, o que está longe de ser verdade, pois existiam muitas culturas populares ou muitas variedades de cultura popular. Mesmo que para os românticos12, que são, segundo Burke, os primeiros estudiosos da cultura popular, o povo se resumisse aos camponeses, ou seja, a 80% a 90% da população, ainda assim não seria possível pensá-los de modo uniforme, já que entre eles haviam muitas distinções, diferentes modos de vida, a começar pelo fato de que alguns moravam em aldeias e outros em cidades, uns em montanhas, outros em planícies. Haviam servos e homens livres, camponeses pobres e ricos. Podemos identificar neste período quatro grupos principais: artesãos, camponeses, mineiros e agricultores, detentores de características culturais próprias e divergentes, mas que não faziam destes grupos portadores de quatro culturas diferentes.

Para descrever as diferenças entre as canções, rituais ou crenças dos nossos quatro grupos principais, o termo subcultura talvez seja mais útil do que “cultura”, pois sugere que essas canções, rituais e crenças não eram totalmente, e sim parcialmente, autônomas, diferentes, mas não separadas por completo do resto da cultura popular. A subcultura é um sistema de significados partilhados, mas as pessoas que participam dela também partilham os significados da cultura em geral. (BURKE, 2010, p. 73).

Pensar em termo de subcultura exige, porém, cuidados, pois os limites entre as subculturas, muitas vezes, não eram tão nítidos, havendo intercâmbios e apropriações entre os grupos. Assim, mais do que se preocupar com o que pertence a um grupo ou outro, a ideia de

12 A cultura popular só começa a ganhar interesse dos estudiosos no final do século XVIII, sendo estudada inicialmente por um grupo de intelectuais alemães. Neste período surge a expressão cultura popular cunhada por Herder e pelos irmãos Grimm; houve também uma ênfase no povo. Apesar de alguns destes estudiosos serem filhos de artesãos e camponeses, a maioria provinha das classes superiores para os quais o povo era um mistério, sendo descrito “em termos de tudo que seus descobridores não eram (ou pensavam que não eram): o povo era natural, simples, analfabeto, instintivo, irracional, enraizado na tradição e no solo da região, sem nenhum sentido de individualidade (o indivíduo se dispersava na comunidade)”. (BURKE, 2010, p. 33).

subcultura é rica na medida em que ressalta a diversidade da cultura popular e a revela como um espaço interacional constituído pelas relações entre os diferentes grupos.

Ao pensar a cultura popular é importante também não perder de vista as relações que ela estabelece com a cultura erudita, dominante. O próprio Redfield reconhece que grande tradição e pequena tradição se afetavam mutuamente. No entanto, as apropriações culturais do povo são encaradas de diferentes formas. Enquanto alguns associam as apropriações culturais do povo à criatividade, outros sustentam a ideia de que a cultura das classes baixas não passava de uma imitação fora de moda da cultura das classes altas, uma forma de rebaixamento.

Mas a teoria do rebaixamento é tosca e mecânica demais, sugerindo que as imagens, estórias ou ideias são passivamente aceitas pelos pintores e cantores populares e seus respectivos espectadores e ouvintes. Na verdade elas são modificadas ou transformadas, num processo que, de cima, parece ser de distorção ou má compreensão e, de baixo, parece adaptação a necessidades específicas. As mentes das pessoas comuns não são como uma folha em papel em branco, mas estão abastecidas de ideias e imagens, as novas ideias, se forem incompatíveis com as antigas serão rejeitadas. Os modos tradicionais de percepção e intelecção formam uma espécie de crivo que deixa passar algumas novidades e outras não. (BURKE, 2010, p. 96) A teoria do rebaixamento também ignora as formas de apropriação que a elite faz da cultura popular. Burke traz exemplos de danças, como a valsa e das festas de Carnaval e Natal. “Essas interações entre a cultura erudita e popular se tornavam ainda mais fáceis porque, para acrescentar uma última restrição ao modelo de Redfield, havia um grupo de pessoas que ficavam entre a grande e a pequena tradição, e atuavam como mediadores”. (BURKE, 2010, p. 99). Entre a cultura oral e letrada, havia uma terceira cultura, a “cultura dos folhetos”, dos semiletrados, que tinham frequentado a escola por pouco tempo. “Essa cultura de folhetim pode ser vista de uma forma inicial daquilo que Dwight Macdonald chama de midcult, situada entre grande e a pequena tradição, alimentando-se de ambas”. (BURKE, 2010, p. 99).

Se em 1500, podemos dizer que a cultura popular era uma cultura de todos - uma segunda cultura para os instruídos e a única cultura para todos os outros (BURKE, 2010) -, em 1800, o panorama já era bem diferente. As transformações econômicas, sociais e políticas nestes 300 anos transformaram a cultura popular e fizeram dela uma cultura cada vez mais relacionada às classes baixas, uma cultura do povo.

[Em 1800] Na maior parte da Europa, o clero, a nobreza, os comerciantes, os profissionais liberais – e suas mulheres – haviam abandonado a cultura popular às classes baixas, das quais agora estavam mais do que nunca separados por profundas diferenças de concepções do mundo. Um sintoma

dessa retirada é a modificação do sentido da palavra “povo”, usada com menor frequência do que antes para designar “todo mundo” ou “gente respeitável”, e com maior frequência para designar “a gente simples”. (BURKE, 2010, p. 356).

As razões para o “abandono” da cultura popular são diversas. No caso do clero, a retirada fez parte da Reforma Protestante e da Contra Reforma. Os reformadores queriam um clero culto; com isso os padres começaram a ser formados nos seminários e foram se distanciando cada vez mais dos paroquianos, assumindo uma postura mais séria e educada, referente a pessoas de status social superior. O distanciamento da nobreza e burguesia foi mais influenciado pela Renascença do que pela Reforma. À medida que o papel militar da