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O decreto de 1870 – A introdução da música no sistema escolar público

4. EDUCAÇÃO MUSICAL NA ESCOLA PÚBLICA COLOMBIANA

4.3. O decreto de 1870 – A introdução da música no sistema escolar público

Se voltarmos para o capítulo anterior, notaremos que a introdução da música no sistema escolar público não se deu desde o início do processo de institucionalização da escola na Colômbia. Lembremo-nos de que o método de Lancaster foi implementado na Grã-Colômbia, como norteador do ensino nas escolas elementares e Normais a partir do ano de 1821, por meio da Lei n.º 8, com o objetivo de oferecer instrução básica, com a escrita e cálculo.

A introdução do método de Pestalozzi na escola pública colombiana está diretamente relacionada às mudanças sociais, políticas e econômicas do período entre 1853 a 1875. Com a chegada ao poder do partido liberal, foi realizada uma série de reformas e transformações na organização do país e, para esse trabalho, foi particularmente importante o decreto de 1870, que propunha reformas na educação, com profundas reformulações nos programas de ensino para os diversos níveis de formação.

Após esse decreto, o sistema escolar ficou divido em:

 Escolas primárias elementares, médias superiores – dedicadas à formação dos jovens colombianos.

 Escolas Normais – voltadas à formação dos professores das escolas primárias.

 Escola Central – destinadas à formação dos professores das escolas Normais;

Com essa nova organização, a música começou a fazer parte do cotidiano das escolas primárias (elementares, médias superiores), por meio da disciplina, canto; e também do plano de estudos da escola Central com as disciplinas música e canto.

São curiosos tais termos – música e canto – empregados para se referir às atividades musicais nos planos de estudo da escola Central, já que entendemos atualmente como música toda a atividade que se refira à organização dos sons e silêncio, não fazendo distinção, por isso, ao canto, como vemos nesse plano de estudos.

Uma hipótese para essa divisão seria uma referência ao entendimento medieval sobre a música, como nos mostra Abreu (ABREU, 2018, p. 132–133):

A Igreja, buscando assegurar sua identidade e hegemonia cultural, passou a investir na sistematização da sua prática musical como um dos elementos necessários para este fim. Uma vez que a música prática fazia parte do cotidiano eclesiástico o estudo da música deixou de permanecer com um viés unicamente filosófico e especulativo para aprofundar-se nos princípios teóricos da prática musical do canto e do instrumento. A tradição puramente especulativa de música, então, deslocar-se-ia para as primeiras universidades sendo estudada como disciplina teorética (DYER, 2009), ao passo que o ensino prático da música começaria a se estruturar em ambientes como bispados e monastérios.

Assim sendo, a influência da Igreja pode ajudar a entender algumas coincidências históricas ocorridas na Colômbia. Por um lado, essa instituição foi ativa nesse território desde o período colonial, compondo inclusive o governo conservador em períodos pós- independência. Por outro, com a admissão do método intuitivo, a teoria da música acabou perdendo espaço, sendo deslocada somente para a escola Central, o degrau mais alto de formação docente da época.

A responsabilidade pela implementação das novas perspectivas escolares após o decreto de 1870 coube aos pedagogos que chegaram à Colômbia na primeira missão pedagógica alemã, cujos objetivos eram: a aplicação da metodologia de Pestalozzi, a elaboração de um material de apoio para o ensino primário e o estabelecimento de Escolas Normais em cada estado.

Um dos autores responsáveis pelos textos sobre música e também pela divulgação de Pestalozzi foi Alberto Blume, considerado um dos mais notáveis pedagogos da primeira missão alemã. Fazem parte de suas publicações, textos dedicados

ao ensino nas escolas primárias e outros materiais, como cancioneiros, composições para voz e instrumento, dentre outros.

Os textos de Blume foram publicados em diversas revistas editadas no país, tais como:El pestalozziano (1875); Revista Escuela Primaria (1893); El Maestro de Escuela

(1889). Suas obras por muitas décadas serviram de material de apoio para o

desenvolvimento das aulas de canto e música nas escolas colombianas, e seus escritos eram disponibilizados nas bibliotecas das instituições educativas.

O canto assumiria seu espaço nessa nova configuração de escola com uma carga horaria máxima de três horas por semana, já que, segundo Blume (1889), “a música e o canto são disciplinas que não requerem constante aperfeiçoamento, além de não ter aplicação direta na vida prática do aluno”.

A parte inicial dessa afirmação – “a música e o canto são disciplinas que não requerem constante aperfeiçoamento” – reflete bem o papel do canto nas escolas primárias. Necessário se faz, então, analisá-la para compreendermos as motivações para a introdução dessa matéria nos programas das escolas públicas.

Por um lado, o desenvolvimento da música durante o século XIX, que atingiu diferentes partes do mundo, legitimada como ideal local, se alinhava a uma elite conservadora.

Podemos observar isso pela fundação da Academia Nacional de Música, em 1882 – inspirada nos modelos do conservatório de Paris, e da Espanha – e da Schola

Cantorum32, que adotava um sistema de instrução musical centrado na música

instrumental, que favorecia os estudantes “talentosos”. Segundo pontua Perdomo (1963), num primeiro momento a academia recebia seus alunos mediante carta de recomendação, depois com a mudança do nome de Academia para Conservatório, a seleção passou a ser por intermédio de “concurso de admissão”, realizado com a participação de uma banca, formada pelo diretor, pelo professor do instrumento ao qual aspirava o estudante e por dois professores mais indicados pelo diretor.

Seguindo os modelos das instituições europeias, a instituição passou a privilegiar o ensino do canto, da teoria musical, da prática instrumental, assim como o ensino de conhecimento musical europeu. Segundo Barriga (2014), a teoria e o solfejo eram

32 Uma schola cantorum é uma escola de canto coral e um coro de jovens para acompanhar as funções

religiosas da Igreja Católica. A primeira schola cantorum foi fundada pelo Papa Silvestre I (c. 334). Desta derivou a escola romana do Laterano e escolas análogas nas igrejas de todo o mundo católico. O nome foi adotado também pelas escolas laicas, dentre as quais a mais famosa foi a Schola Cantorum de Paris, fundada em 1894 por Vincent d'Indy, o qual a transformou em uma escola de composição.

disciplinas obrigatórias para todos os alunos; a harmonia era obrigatória para os alunos de piano e órgão, que eram obrigados a frequentar as aulas de contraponto. Dentre as atividades complementares, os alunos deveriam exercer a função de correpetidor e participar da orquestra da Academia e do coro do Teatro Colón.

Por outro lado, essa legitimação da música tradicional ocidental, por meio da fundação da Academia, impulsionava uma diferenciação do conhecimento musical, relegando as manifestações tradicionais locais à periferia, afastando-as, portanto, das escolas. Se considerarmos as instituições escolares públicas, fica claro que a pedagogia acadêmica referencial não estaria à disposição para essa classe social. Portanto, diante desse perfil musical colombiano, é possível retomar e reformular a primeira parte da frase de Blume (1889): “a música e o canto [do e para o povo] não requerem constante aperfeiçoamento [pois não estão aptos ao conhecimento europeizado dessa arte],[...]”.

A segunda parte da frase –“além de não ter aplicação direta na vida prática do aluno” – aponta para o perfil da escola pública e as divisões de classe. Nesse período, o objetivo da educação pública era transmitir conhecimentos considerados úteis e suficientes para o cotidiano do povo, por isso as disciplinas mais importantes estariam ligadas à leitura, à escrita e ao cálculo. Sendo assim, como dissemos no capitulo 3, Blume reproduz a proposta pedagógica de Pestalozzi: “uma atitude ideológica de adequação da educação do povo àquilo que fosse necessário a seu cotidiano. Sendo por isso sua concepção educacional orientada pela experiência prática”.

Diante disso, a frase de Blume revela que, apesar de o governo liberal ter fomentado a chegada da primeira missão alemã e realizado inúmeras reformas na educação, ainda sofria severas influências da própria época. Portanto sua frase pode ser lida: “a música e o canto [do e para o povo] não requerem constante aperfeiçoamento [pois não estão aptos ao conhecimento europeizado dessa arte], além de não ter aplicação direta na vida prática do aluno [pois a escola que frequenta o instrui para a vida social de sua classe operária]”.

Muito embora Blume e a elite local tenham reproduzido a ideologia da época, podemos observar sua frase sob a perspectiva da pedagogia vigente, a de Pestalozzi, que nos permite produzir um comentário relacionando as disciplinas musicais às suas propostas.

Percebemos que pode haver certa coincidência entre a frase destacada e a proposta pedagógica de Pestalozzi, pois, para ele, a criança se utiliza de seus sentidos durante o processo de aprendizagem, o que, por consequência, acaba excluindo a

necessidade do trabalho mecânico e memorístico que o aprendizado musical (instrumental) tradicionalmente requer.

Contudo, cumpre destacar que há uma diferença entre a proposta de Pestalozzi de educação dos sentidos e o que se discute atualmente sobre educação do sensível. Na proposta pedagógica de Pestalozzi cada sentido da criança é entendido separadamente e, por isso, deveria ser desenvolvido por meio do trabalho educativo. Dessa forma a música, e em especial o canto, ajudaria no desenvolvimento da audição do estudante. Essa característica revela as influências do pensamento do século XIX e se diferencia da educação do sensível, que propõe fazer frente à educação oficial desumanizante, baseada em verdades absolutas e que menospreza os saberes sensíveis, como nos indica (MÉSZÁROS 1981, p. 181 apud SOARES, 2015, p. 46):

Marx se opõe vigorosamente à tradição idealista que atribui um lugar inferior ao mundo sensível e, consequentemente, também a arte. “Para o olho” escreve ele “um objeto é algo diferente do que para o ouvido. A peculiaridade de cada sentido essencial é precisamente sua essência particular e, portanto, também o modo particular de sua objetivação, de ser vivo objetivamente real. Assim, o homem se afirmar no mundo objetivo não só no ato de pensar, mas com todos os seus sentidos”.

Isso posto, devemos considerar em nosso trabalho a discussão sobre a educação do sensível para constatar as transformações do ensino de música na educação pública e enriquecer a discussão sobre a educação musical colombiana. Para isso, podemos nos orientar, além da bibliografia, também pela análise de algumas fontes, dentre elas: o Plan

Zerda e o Guia para la enseñanza en las escuelas, abordados a seguir.