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O ensino da oralidade versus decifração da escrita

CAPÍTULO 3 TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA: DESAFIOS NO

3.1 PRIMEIRO MOMENTO DA ANÁLISE: AMBIÊNCIA DA

3.1.5 O ensino da oralidade versus decifração da escrita

O ensino de inglês se valida ainda da concepção clássica de categorização, mesmo que pregue uma noção sociointeracional com pinceladas da criticidade. Os próprios documentos oficiais deixam transparecer em suas orientações o pensamento estrutural. As posições dos professores, ao se referirem aos fatores que causam a deficiência na aprendizagem do inglês, estão impregnadas de “certezas absolutas”. As intencionalidades, intenções e individualidades não são acenadas. A aprendizagem da língua é compreendida como representação simbólica, uma vez que a audição e a fala são compreendidas como decifração da escrita. A maioria dos professores do 1o ao 5o ano do Ensino Fundamental acreditam priorizar “a audição e a fala”. A figura 18 demonstra as habilidades que os professores acreditam estar enfatizando durante suas aulas; em seguida, se encontram os objetivos de uma aula, os quais contradizem as crenças dos docentes. Retrata o posicionamento dos professores para a pergunta “qual habilidade linguística você prioriza em suas aulas”? Conhecimento exógeno observável Conhecimento endógeno - inato

Concepção

Realista Concepção Mentalista VISÃO NOMINALISTA

Figura 18. Representação gráfica das habilidades linguísticas enfatizadas nos anos

iniciais.

O quadro parece retratar de forma satisfatória a condução das aulas. A ênfase está nas habilidades consideradas como “matrizes primárias da linguagem” (SANTAELLA, 2009, p. 79), fundamentais para o desenvolvimento da oralidade e, posteriormente, da leitura e da escrita. Porém, a transposição didática dos docentes aponta para outra forma de agir. Os objetivos abaixo demonstram que a oralidade ainda é compreendida como hábitos construídos por meio do condicionamento da repetição.

“Recitar o alfabeto”,

“Conhecer as letras do alfabeto e sua pronúncia”, “Repetir após a professora cada letra do alfabeto”, “Identificar o som de cada letra”,

“Reconhecer a pronúncia correta das letras”,

“Observar que na língua estrangeira os fonemas são diferentes daqueles da língua portuguesa” (PF1 – PE, 2011).

Os objetivos demonstram que a ênfase está, exclusivamente, na aprendizagem do princípio acrofônico98 das letras. Esse destaque no momento em que a criança se encontra aprendendo a ler e escrever em português pode trazer danos posteriores para a aprendizagem de ambas as

98 De acordo com Cagliari (1989), o princípio acrofônico se refere ao som inicial de cada letra. É o nome da letra, o som que aquele símbolo gráfico representa.

“R” rata

“R”

red

línguas. Isto tende a ocorrer porque os estudantes vão relacionar o som ao símbolo gráfico e, cada vez que este aparecer, a pronúncia ocorrerá da forma que foi gravado – som e letra. Ao ensinar dessa maneira estará sendo omitida a possibilidade de compreensão de que um mesmo símbolo gráfico pode representar diferentes sons – categorização funcional99 das letras como também pode culminar com a inibição na construção da consciência fonológica.

É um processo que leva o estudante a formatar a sonorização do português como referência para a LI, ou mesmo confundi-las entre si, uma vez que a criança ainda está na fase da alfabetização. Nesse período – em português – se dá muito realce na leitura, repetição e memorização do alfabeto, pois o estudante já domina o português e se comunica de forma efetiva. A linguagem visual acompanha a linguagem auditiva e oral por meio de figuras espalhadas pela sala, cujo som inicial dos nomes tem a ver com as letras do alfabeto.

A prática de recitação do alfabeto em português se repete de forma idêntica em inglês causando, muitas vezes, a transferência do som do português para o idioma estrangeiro. Um exemplo é o som do “R” /h/ no dialeto predominante do português. Este som é fricativo glotal e desvozeado100. Não ocorre fricção audível no trato vocal (SILVA, 2010). Essa articulação, ao ser feita em inglês, da mesma forma que em português pode trazer prejuízo na compreensão do significado da palavra. A figura 19 retrata exemplos de palavras escritas em português e inglês com “R” inicial.

“R” rata

Figura 19. Transposição da pronúncia do português para o inglês.

99 Segundo Massini-Cagliari (1999, p. 36), a categorização funcional das letras tem a ver com o valor que cada uma delas tem dentro do sistema de escrita. [...] O que determina que uma letra possa ser chamada de “A” não é apenas o seu aspecto gráfico, mas o fato de ela poder assumir, dentro do sistema da escrita do português, as posições que o sistema reserva para essa entidade abstrata “A”, ou seja, o valor de “A”.

100 Segundo Silva (2010), som desvozeado ou surdo – não há fricção nas cordas vocais ao pronunciá-lo.

Ao articular o “R” de “red” (vermelho) da mesma forma que pronuncia o “R” de “rata”, o falante, sem saber, produzirá outra palavra – “head” (cabeça). Deste modo, se não houver a preparação auditiva, no sentido de compreender as diferenças sonoras e a instrução correta na articulação do som, no momento da leitura e da fala em inglês, automaticamente, o aprendiz irá transferir a sonorização do português para o inglês.

Ao dar ênfase na recitação do alfabeto logo no início da aprendizagem da LE, o estudante grava o princípio acrofônico da letra e fica sem saber que aquele símbolo gráfico, em determinados casos, exerce outra função sonora, como pode ser visto no quadro 2 o exemplo das diferentes funções sonoras da letra “A”.

Letra do alfabeto Categorização gráfica Princípio acrofônico Som do nome da letra

Exemplos desse som em palavras

A, a /ei/ able, ape, age, aid, amen,

day

Quadro 2. Categorização gráfica e princípio acrofônico da vogal “A”.

O princípio acrofônico representa apenas um som do símbolo gráfico. Esse som representa o nome da letra. Cada símbolo gráfico exerce diferentes funções sonoras, dependendo de sua localização na palavra. É a categorização funcional das letras, conforme observado no quadro 3.

Letra do alfabeto Categorização gráfica Categorização funcional

Exemplos desse som em palavras

A a /ei / bake, cane, glade, hate, lake

A a /æ / bad, cap, hat, man, rat, van

A a /ɑ: / bar, car, farm, star, scarf

A a /e / care, scare, dare, bare

A a /ɒ / bald, fall, talk, walk, mall

Normalmente, ao apresentar o alfabeto existe apenas a preocupação com o princípio acrofônico das letras. Além disto, existe a compreensão errônea de que é o primeiro conteúdo a ser ensinado. As linguagens visual, sonora e verbal-escrita aparecem no mesmo lapso de tempo na tentativa de ilustrar a abstração do som e da letra. Esse excesso de imagem, som e escrita pode trazer complicações na compreensão da letra e do seu uso.

A prática dos docentes revela uma concepção do conhecimento representado internamente por meio de símbolos – na mente. É a concepção do mundo dividido em um número finito de categorias. Transparece a visão estrutural, que concebe a língua como um sistema de elementos estruturalmente relacionados para a codificação do sentido. O ensino centrado na repetição é uma forma disfarçada de valorização da oralidade e da audição. A ênfase, na verdade, permanece na escrita.

A escrita é uma representação da linguagem oral e tem por finalidade a leitura. Quem quiser ter acesso à mensagem do texto escrito [...] precisa transformar o escrito em oral através da leitura. [...] A escrita, na verdade, não passa de um uso sofisticado da própria linguagem oral, cristalizada na forma gráfica (MASSINI-CAGLIARI, 1999, p. 65).

Para Massini-Cagliari (1999), mesmo que a escrita, cujo objetivo é a leitura e, por isso resiste às mudanças e alterações, não se pode ignorar a necessidade de um ensino de línguas estrangeiras que priorize outras habilidades linguísticas anteriores à leitura e à escrita, ou seja, a compreensão sonora e a prática oral.

A natureza midiática da sociedade contemporânea propicia a hibridização de sistemas sígnicos, exigindo novas posturas no ato de ensinar, no entanto, o ensino da oralidade, quando acontece nas escolas, “é uma constituição isolada do verbal, do visual, do sonoro e dos processos sígnicos que eles geram” (SANTAELLA, 2009, p. 27).

Mesmo respondendo que a ênfase das aulas se dá na audição e na fala, os professores defendem a manutenção da escrita, mesmo tão precocemente, argumentando que “é necessário justificar para a direção da escola e para os pais as ações feitas em sala como forma de comprovar que, de fato, os estudantes estão aprendendo alguma coisa na LE” (PF1- NC, 2011). O registro visível da escrita concretiza a abstração da língua. A escrita permite que se veja o ato realizado e o tempo ocupado. Porém, não significa, necessariamente, que havendo o registro na escrita há aprendizagem. Pode ser simplesmente uma cópia, uma reprodução ou

atividades estruturais sem objetivo aplicável. O forte apelo ao estudo “sobre” a língua e não o estudo “da” língua é evidenciado nas atividades propostas, como se observa na sugestão de atividade por meio dos objetivos.

“Os nomes em inglês devem ser colocados em ordem alfabética”, “Observar se ocorrem mudanças nesta ordem quando comparadas à ordem alfabética da mesma palavra em português e se ela diferencia-se ou não do inglês” (PF1- PE, 2011).

Desde muito cedo se reduz os aprendizes às formalizações da língua, distanciando-os de aprender a se comunicar e a lidar com o seu movimento dinâmico no ciberespaço. Esta forma de ensinar tolhe o sujeito de incluir as experiências compartilhadas, por meio das trocas linguísticas no conhecimento em construção, porque não vai conseguir se comunicar, nem desenvolver “ações conjuntas” (KOCH; CUNHA-LIMA, 2005, 282).

Os professores se queixam das dificuldades para ministrar as aulas e justificam o fracasso da aprendizagem argumentando sobre a “falta de interesse dos alunos”. É compreensível que isso ocorra pelo distanciamento entre a vivência dos aprendizes – mergulhada em ações comunicativas no ciberespaço – com a prática docente fixada no mundo do papel e da escrita. A experiência dos aprendizes com a língua, fora da escola, se dá por meio de funções determinadas a desempenhar. Metáforas, sinais corporais e verbalizações permeiam as ações e relações complexas são construídas e o sentido é configurado. Sair desse contexto para as aulas, centradas em aspectos inflexíveis do idioma, como estrutura e compreensão de textos, trará, sem dúvida, a “falta de interesse dos alunos”.