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O individualismo em um contexto de modernidade inacabada

Certamente as idades médias ao primeiro matrimônio e ao ter o primeiro filhos às quais nos referimos em tópico anterior – particularmente em uma sociedade tão desigual quanto a nossa – escondem uma grade diversidade de padrões segundo o segmento social de pertencimento.

As mudanças demográficas e institucionais tratadas neste capítulo retro-alimentam o processo de modernização brasileiro e ainda mais marcadamente o paulista. Em síntese, a teoria da modernização que está no cerne das discussões da segunda transição demográfica é também a força propulsora das principais mudanças na transição para a vida adulta.

Além das mudanças sociais e econômicas que formam, por assim dizer, o núcleo rígido da modernização, as mudanças na esfera dos valores são constantemente ressaltadas. Como vimos no capítulo anterior, sob a perspectiva dos valores, o individualismo é o consorte da modernidade. A difusão de valores individualistas funciona como elemento facilitador da modernização, ao mesmo tempo em que tais valores são reforçados por ela.

Contudo, assim como se costuma fazer distinções importantes entre a modernização da maneira como foi vivida pelos países centrais e a “modernização tardia ou inacabada” experimentada pelos países periféricos e semi-periféricos (GUERREIRO e ABRANTES,

2005), é útil indagar se há variações na expressão dos valores individualistas. Embora o desejo de auto-realização, de busca da felicidade individual e autonomia sejam compartilhados, a estrutura social, as possibilidades abertas à satisfação desses ideais e os mecanismos passíveis de serem acionados dentro desta realidade não são os mesmos. Haveria no contexto de modernização tardia formas sui generis de expressão dos valores individualistas? Acreditamos que esta pergunta é importante. Se o desejo de experimentação, de auto-conhecimento e a sensação de que ainda há algo mais por ser vivido, antes de dar o passo decisivo de entrada na vida adulta, é uma das facetas do adiamento da transição para a vida adulta nos países desenvolvidos (ao lado das dificuldades óbvias de inserção no mundo produtivo), como a lógica individualista operaria em contextos em que o arcaico e o moderno formam um estranho continuum, mais que uma rígida dicotomia?

Uma característica comum do processo de modernização nos países em que ele ocorre tardiamente é o fato de não atingir toda a sociedade de maneira uniforme (PIMENTA, 2005). Como a modernização nestes lugares se dá em grande medida em resposta a forças exógenas à sociedade – ou seja, em reação direta ou indireta ao capitalismo global, em uma espécie de rearranjo adaptativo, mais do que devido ao surgimento de uma nova racionalidade autóctone – o imperativo de modernizar-se se pauta na importação de uma racionalidade ocidental, sem que esta suprima de um só golpe o modus operandi da sociedade local.

O acesso à educação foi democratizado, mas a maioria das pessoas não conclui a educação básica. A reestruturação produtiva, com suas altas exigências de qualificação, gerou precarização e instabilidade no trabalho em todo o mundo. Mas, enquanto em outras partes a solução real para o problema tem sido o aumento do nível de qualificação da população, nossa modernidade tardia nos brinda com altos níveis de informalidade e mesmo a total exclusão do mercado de trabalho como arranjos permanentes na trajetória dos indivíduos. Por fim, também o tema das uniões consensuais é controverso, porque não podemos afirmar com segurança o quanto elas se devem a incorporação de valores individualistas ou se decorrem de tendências históricas, tendo havido apenas o acirramento de velhas condições sociais que sempre resultaram nesta forma de união. Por tudo isto, a

sensação é de que vivemos uma “modernidade inacabada” (GUERREIRO e ABRANTES, 2005).

No entanto, todas essas ponderações não são feitas com o intuito de negar a existência de comportamentos modernos entre nós. Como já dizia Madeira (1978: 453): “(...) os chamados ‘comportamentos modernos’ e sua ‘disseminação’ devem resultar muito pouco do papel dinâmico da modernidade em si, mas são alcançados nos processos desencadeados para generalização da ‘modernidade’”. De forma que a modernidade inacabada não exclui por definição todo e qualquer comportamento moderno. Pelo contrário, assumir dito comportamento é uma forma de aproximação do ideal de modernidade.

Para Machado (2001), o que vigora em nossa sociedade é a co-existência de dois códigos – o relacional hierárquico (fundado no princípio da reciprocidade e das obrigações) e o individualista (fundado na liberdade, igualdade de gênero e cidadania) – que permeia todos os segmentos sociais. No entanto, há diferentes formas de articulá-los ou mesmo de estabelecer certa proeminência de um sobre o outro, dependendo da posição e da situação social em que o indivíduo se encontre.

A visão de Machado (2001), ao perceber que os dois códigos sobrevivem em todos os segmentos sociais, inova em relação à bibliografia clássica sobre o tema (VELHO, 1981; DUARTE, 1986), que atribui os valores individualistas exclusivamente às camadas médias urbanas, enquanto as camadas trabalhadoras seguiriam o código relacional hierárquico. Segundo Salem (2006), alguns pesquisadores têm adotado uma “hipótese de contaminação” para explicar comportamentos aparentemente modernos em camadas populares. Em síntese, o que esses autores propõem é que os valores individualistas estariam atravessando as fronteiras de classe, ou seja, as camadas populares seriam “contagiadas” pelos valores individualistas das classes médias, seja por meio da mídia ou dos contatos estabelecidos na vida cotidiana, sobretudo nas relações de trabalho, onde os dois universos se encontram. Poderíamos supor que mesmo a escola poderia ter papel importante dentro desta hipótese de contaminação, pois nelas também há a possibilidade de encontro de indivíduos de origens distintas.

Contudo, por mais que esses valores se difundam e sejam cada vez mais compartilhados, as chances de vivenciá-los em sua plenitude são diversas. No momento da

transição para a vida adulta, isso pode produzir forte impacto sobre a forma e o ritmo das várias transições: saída da escola, entrada no mercado de trabalho, saída da casa dos pais, formação do par conjugal e nascimento do primeiro filho. A família certamente joga por vezes um papel ambíguo na transição para a vida adulta de seus jovens, ora exerce função de apoio, ora de obstáculo a sua autonomia, quando ela própria não pode prescindir da contribuição econômica do jovem ainda que de maneira complementar a do responsável pelo domicílio:

(...) no contexto brasileiro, as relações de dependência/independência familiares se dão em duas vias, isto é, na ausência de políticas públicas orientadas para o suporte da emancipação juvenil (excetuando-se talvez, e mesmo assim, com muitas restrições, a política de bolsas de estudos e pesquisa), os jovens brasileiros dependem basicamente do apoio familiar para poderem manter-se na escola, conseguir trabalho ou mesmo habitação (sendo muito comum que jovens recém casados de famílias pobres passem a coabitar sob o mesmo teto da família de origem); por outro lado, para as famílias de baixa renda, o trabalho do jovem é fundamental para a subsistência do agregado familiar (PIMENTA: 2007: 25-26).

Diante do cenário acima exposto, a transição para a vida adulta dos jovens em nossa sociedade tem se tornado progressivamente mais complexa. Na busca pessoal de conciliar o desejo de autonomia dentro de arranjos familiares que sabemos terem conformações múltiplas, e tendo de cumprir exigências do mercado de trabalho quase inalcançáveis, considerando o baixo nível da formação educacional média, a transição para a vida adulta só poderia se tornar cada vez mais heterogênea. Cada qual procura à sua maneira responder a estas diferentes demandas. Com isto, tem se multiplicado as trajetórias de transição possíveis, algumas delas expostas a grandes fragilidades. Realidades sociais distintas marcadas por estruturas de oportunidades distintas só podem gerar como produto padrões de transição para a vida adulta desiguais. Os próximos capítulos são dedicados a descrever tais padrões e o ritmo de passagem para a vida adulta que lhes são característicos, bem como mensurar as desigualdades entre os diferentes segmentos sociais da população jovem paulista.

Capítulo III

Fontes de dados e medidas empregadas no estudo

da transição para a vida adulta