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Nas seções anteriores realizamos basicamente um recorrido histórico sobre as mudanças na percepção sobre o curso da vida. Nesta seção sistematizamos como essas mudanças têm se traduzido em novos conceitos.

The Structure of the Life Course: Standardized? Individualized? Differentiated? (2005)5, talvez seja a obra que melhor retrata o estado da arte no momento atual. Há consenso entre os autores desta obra de que importantes transformações no curso da vida se fizeram sentir de maneira especial no final do século XX e início do século XXI. Mas para além da apresentação de questões clássicas dos estudos do curso da vida, nos oferecem um panorama das controvérsias atuais: Afinal, o que mudou no curso da vida? O que há realmente de novo?

Boa parte da teoria sobre o curso da vida se fundamenta de uma forma ou outra nos conceitos-chave de trajetória e transições. O próprio estudo da transição para a vida adulta não desfrutaria da importância que tem, se não fosse pela centralidade que se credita a esta transição no encadeamento dos acontecimentos futuros e no papel que desempenha na definição de posições sociais galgadas pelos indivíduos. Isso, graças à percepção de que é principalmente na juventude que se adquire as credenciais que abrem ou fecham campos de possibilidades na progressão do curso da vida. Como afirmam Garrido e Requena (1996: 9), a juventude, que em si pode ser entendida como um processo de transição à vida adulta, é uma espécie de “segundo nascimento” onde cada qual precisa definir, adquirir, marcar e consolidar posições e papéis sociais por si mesmo.

Enquanto o conceito de trajetória dá conta da dinâmica de longa duração do curso da vida (é o próprio desenrolar da linha da vida dos indivíduos), o conceito de transição dá conta de períodos de guinadas ou ajustes nesta trajetória. Transições são períodos mais curtos e circunscritos no tempo, mas nem por isso menos importantes. Transições sinalizam o fim e o início de etapas de uma trajetória (MACMILLAN, 2005).

De acordo com Macmillan (2005: 4), o principal eixo do debate atual deriva de evidências de que o curso de vida estruturado, fundado em um conjunto normativo de etapas ordenadas em um contínuo, cede espaço a “conformações novas e potencialmente problemáticas”. Isto se verifica na descompressão dos marcos da vida adulta (por exemplo, maior espaçamento temporal entre a saída da casa dos pais e o casamento); aumento da sobreposição dos papéis sociais (estudar e trabalhar ou aposentar-se e não se retirar

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MACMILLAN, R. (ed.). The structure of life course: Standardized? Individualized? Differentiated? Advances in life course research, vol. 9. Minneapolis: University of Minnesota, 2005.

completamente do mercado de trabalho); aumento da reversibilidade e instabilidade dos papéis sociais (o filho que retorna à casa paterna depois de ter tido a experiência de viver só ou em união conjugal) e desarticulação dos diferentes papéis que se tornam difíceis de conciliar ao longo das trajetórias individuais no decorrer da vida (sobretudo, as tensões entre vida familiar e profissional).

A tese da padronização e individualização – que a nosso ver se alinha completamente às colocações anteriormente feitas por Ariès (1978), Hareven (1999) e Debert (1999) – argumenta que, com o advento da industrialização e modernização, a organização da sociedade passa paulatinamente a se basear em indivíduos, e não em famílias e comunidades (BILLARI, 2001; FUSSELL, 2006). Na prática, isso significa que instituições como a escola, o mercado e o Estado agem diretamente sobre indivíduos classificados por idades. Contudo, essa tendência à padronização e à individualização seria constantemente complicada por flutuações econômicas, eventos históricos ou por desigualdades de gênero, raça e classe dentro de um mesmo grupo geracional (SHANAHAN, 2000).

Os trabalhos publicados em The Structure of the Life Course: Standardized? Individualized? Differentiated? (2005) dialogam diretamente com a tese da padronização e individualização, explorando os seus limites ou mesmo, em determinados casos, sua inadequação para o momento atual. O debate gravita em torno de conceitos dicotômicos sobre o que se passa com o curso da vida: padronização versus despadronização; institucionalização versus desinstitucionalização; homogeneização versus pluralização; e ainda diferenciação; e individualização.

Segundo Brückner e Mayer (2005: 32), “a padronização do curso da vida se refere a processos nos quais certos estados ou eventos específicos e a seqüência em que eles ocorrem se torna mais universal para uma dada população ou que seu timing torna-se mais uniforme”. Afirmar que o curso da vida é padronizado significa que na realidade há uma alta prevalência de determinados eventos que ocorrem em um mesmo timing e dentro de uma mesma seqüência para praticamente todos os indivíduos. A padronização está diretamente ligada à fixação de uma regularidade. Com a modernização (entendida como um conjunto de transformações que abarcam a urbanização, a transição demográfica, a universalização do sistema educacional, etc.) a regularidade se tornou tão difundida na

trajetória das pessoas que os limites formais de idade foram naturalizados (COUBÈS e ZENTENO, 2005). A despadronização dá conta justamente do fenômeno inverso, ou seja, da descompressão temporal dos eventos, quando se tornam mais desconectados, dispersos e se sucedem sem que se possa identificar uma ordem recorrente (BRÜCKNER e MAYER, 2005). A padronização descreve um cenário no qual a condição de estudante está relacionada à fase infanto-juvenil, quando os indivíduos são dependentes de seus pais e idealmente não trabalham; e a imagem do trabalhador é a do chefe de família com esposa e filhos e que encerrou sua carreira educacional. A despadronização dá conta do cenário no qual essas combinações de status escolar, ocupacional e conjugal que definem um e outro (e que guarda correspondência com idades fixas), se misturam, se confundem e levam a uma ampla gama de possibilidades alternativas.

Com a despadronização, uma trajetória de vida hegemônica como aquela em que os eventos se sucediam linearmente – saída da escola, entrada no mercado de trabalho, saída da casa dos pais, casamento e constituição de prole – perde o seu domínio antes quase absoluto. Surgem não só novas combinações destes eventos como se multiplicam estados intermediários em que o status do jovem muda, ele assume novas responsabilidades, mas ainda se diferencia do adulto. Por exemplo, entre a escola e o trabalho, há diversas modalidades de estágios; entre sair da casa dos pais e morar sozinho ou com cônjuge, há a experiência em repúblicas estudantis, dormitórios ou pensões. Entre estar solteiro ou casado, existe a prática intermediária de conservar um parceiro estável vivendo em casas separadas e do morar junto antes do casamento. Ocorre então aquilo que Brückner e Mayer (2005) nomeiam diferenciação, que é justamente o aumento do número de estados ou status ao longo do curso de vida.

A institucionalização do curso da vida (BRÜCKNER e MAYER, 2005) diz respeito às regras que orientam a estruturação do curso da vida. Trata-se, sobretudo, de marcos legais ou normativos. A legislação é sem dúvida o instrumento mais claro da institucionalização, quando estabelece uma faixa etária de escolaridade obrigatória, idades mínimas para o trabalho e a aposentadoria e também para o casamento. Dizer que o curso da vida está mais institucionalizado é reconhecer a influência ou mesmo a força de instituições (especialmente do Estado através da aplicação de legislações nacionais) nas trajetórias e

transições dos indivíduos daquela sociedade. A institucionalização sob certa ótica visa assegurar os direitos básicos dos cidadãos, mas o seu preço é a presença de um forte controle social sobre os indivíduos. A desinstitucionalização se aplica às realidades ou aspectos da vida nos quais os níveis de controle social tornam-se baixos. Os exemplos citados pelos autores vão desde a prática de alfabetização em casa, comum nos Estados Unidos, que retira o poder da instituição escolar sobre uma fase importante da formação infantil, até a prática de coabitação marital sem formalização da união, que representaria uma parcial desinstitucionalização do casamento ao prescindir da mediação de autoridades religiosas ou jurídicas.

A pluralização diz respeito ao aumento do número de estados observados ou possibilidades para uma população. O exemplo mais claro é o da pluralização das formas de família (BRÜCKNER e MAYER, 2005: 33). A pluralização de maneira ampla tem a ver com a maior heterogeneidade de trajetórias ou de estados possíveis, sendo o seu oposto, a homogeneização das experiências individuais.

A ampliação de possibilidades perfeitamente exeqüíveis gera maior heterogeneidade intragrupo etário. Quanto maior a heterogeneidade de combinações dos status escolar, laboral e familiar realizáveis, maior a complexidade do curso da vida e mais difícil se torna vislumbrar um padrão etário rígido para cada uma das transições. Isso sugere estar em curso um processo de crescente individualização. Brückner e Mayer (2005) se referem à individualização como conceito que designa a ocorrência de maior controle dos próprios indivíduos sobre os seus destinos.

À primeira vista pode-se imaginar que individualização, despadronização e desinstitucionalização formam um único pacote indissociável. No entanto há um paradoxo importante que vem sendo observado nos países industrializados: se por um lado a passagem para a vida adulta tem sido marcada pela individualização das trajetórias biográficas, por outro, têm proliferado também mecanismos de mediação institucional que procuram funcionar como facilitadores dessa transição. Podemos citar como exemplo, os programas estatais que buscam aproximar empresas e escolas. Ou seja, as instituições não desapareceram por completo, pelo contrário elas têm papel ativo e renovado na transição para a vida adulta.

Embora em um primeiro momento possa parecer claro que a individualização corresponde a uma forma de organização da vida mais livre e aberta a possibilidades que fogem a padrões normativos rígidos, ela também pode compactuar e mesmo reforçar desigualdades que colocam em xeque os limites dessa maior liberdade.

Mesmo no Brasil, onde essas discussões são postas mais tardiamente se comparado aos Estados Unidos e à Europa, está claro que atualmente vivemos um momento de maiores possibilidades de realização individual. Essas possibilidades representam para uma parcela da população oportunidades diferentes daquelas muito mais restritivas que caracterizaram o curso da vida de gerações anteriores. A universalização do sistema escolar, a participação feminina no mercado de trabalho e uma maior aceitação de uma pluralidade de formas de família são fatores que, conjugados, trabalham para flexibilizar o curso da vida, em especial o das novas gerações. Todavia, os constrangimentos não deixaram de existir. Talvez tenham se tornado menos claros, mas nem por isso, menos imperiosos. Uma coisa é supor que os indivíduos podem eleger livremente os caminhos de sua trajetória em um contexto de igualdade de oportunidades. A liberdade pode ceder lugar ao abandono à própria sorte em contextos onde a estrutura de oportunidades é restrita e desigual segundo as clivagens de gênero, cor e renda.