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O INTELECTUAL TRADICIONAL

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1 A FORMAÇÃO DOS INTELECTUAIS EM GRAMSCI

1.2 O INTELECTUAL TRADICIONAL

De acordo com Piotte (1972) Gramsci elabora o conceito de intelectual tradicional a partir da análise da formação dos intelectuais no mundo feudal e no mundo clássico.

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Esse conceito de intelectual tradicional foi especialmente importante para Gramsci na análise das lutas políticas que marcaram a passagem de um modo de produção a outro. O autor nunca se preocupou em precisar tal conceito, mas sim, em distinguir intelectual tradicional de intelectual orgânico.

A compreensão do conceito de intelectual tradicional passa necessariamente pelo estudo da “relación implicada por las diferentes revoluciones burguesas entre intelectual tradicional e intelectual orgánico.” (PIOTTE, 1972, p. 43)

O estabelecimento progressivo do modo de produção capitalista teve como consequência a ascensão da burguesia e destruição da sociedade feudal. Nesta passagem, a burguesia necessitava se confrontar com a classe aristocrática e também com o clero que se apresentava como independente das classes sociais e representante histórico de Cristo. Porém, durante toda a Idade Média, o clero exerceu, para proveito da aristocracia, uma função hegemônica na sociedade civil, controlando a educação e a mídia. Compartilhava também do direito à propriedade feudal e aos privilégios estatais. No entanto, o poder econômico reforçado pelo poder dos monarcas criou disputas e lutas pelo poder entre eles.

Observamos que a autoproclamada independência das classes sociais, pelo clero, não é verdadeira porque, na realidade, esconde sua origem de classe - intelectualidade orgânica da aristocracia na Idade Média – e uma posição de classe que historicamente poderia sofrer modificações, como por exemplo, sua ligação orgânica com a emergente burguesia – a nova classe dominante. Todavia, o clero possui um sentimento de solidariedade de casta o que lhes confere grande coesão, permitindo-lhe relativa independência das classes dominantes e consequente defesa dos seus interesses, podendo até mesmo, em algumas vezes, opor-se violentamente à classe dominante, o que mascara a sua posição de classe.

Para Gramsci (apud PIOTTE, 1972):

Una de las características sobresalientes de todo grupo em desarrollo hacia el poder es su lucha por conquistar y asimilar „ideológicamente‟ al intelectual tradicional, y esto se produce con mayor rapidez y eficacia cuando el grupo dado, pronta y simultaneámente crea sus própios intelectuales orgánicos. (p. 45,)

Apesar de análises dirigidas à ascensão da burguesia em alguns países como França, Inglaterra etc., Gramsci se preocupou especialmente em descrever e

analisar a luta da burguesia italiana para instaurar seu poder político e unificar o país, apontando as várias modalidades de lutas desenvolvidas a fim de submeter ou assimilar os tradicionais intelectuais representados pelo clero.

O autor ressalta que a burguesia italiana governou apenas pela coerção política e econômica, que, entre outras medidas de violência, institucionalizou o imposto sobre o consumo e que, não conseguindo criar suas camadas de intelectuais orgânicos, acabou ficando desprotegida frente aos intelectuais tradicionais.

Por sua vez, o clero controlava politicamente parte do território italiano e foi contra a unificação por medo de perder o controle do Estado, além disso, exercia uma hegemonia internacional que interessava economicamente à aristocracia. “La lucha hegemónica del clero contra la burguesía italiana se orientó em el sentido de impedir a ésta la constitución de capas de intelectuales orgânicos.” (PIOTTE, 1972, p. 48). Em outras palavras, o clero forçou a emigração dos que não queriam submeter-se e integrou os intelectuais burgueses em sua organização, não permitindo que se convertessem em agentes da burguesia italiana. Segundo o autor, para Gramsci, o poder dos intelectuais tradicionais, na Itália, foi o grande impedidor, naquele período, da constituição de uma nação italiana.

Para Piotte (1972), Gramsci opôs os intelectuais tradicionais criados no seio da pequena burguesia rural (juízes, advogados, médicos) aos intelectuais produzidos pela pequena burguesia urbana, os técnicos da indústria (intelectuais orgânicos da burguesia industrial), e que, com a evolução da indústria moderna, os intelectuais da burguesia rural perderam sua primazia e foram substituídos pelos técnicos. Assim, os intelectuais da pequena burguesia rural, que poderiam chegar a intelectuais orgânicos dos manufatureiros e comerciantes, ficaram numa posição intermediária entre o campesinato e a burguesia industrial que objetivava anexá-los.

A política adotada por Giovanni Giolitti9 impediu a incorporação destes intelectuais tradicionais ao campesinato. Se de um lado promoveu a incorporação “personalista” de alguns por meio de privilégios legais e financeiros, por outro, reprimiu violentamente os movimentos dos camponeses. Portanto, o fracasso do campesinato se deveu ao fato de não disporem de intelectuais orgânicos.

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Desta forma, Gramsci associa a distinção entre intelectual tradicional e intelectual orgânico ao problema da unificação do Norte e Sul da Itália. Esta região, essencialmente agrícola, produz intelectuais tradicionais, ao passo que o Norte, região eminentemente industrializada, produz intelectuais orgânicos da burguesia. Para apoderar-se do Estado e assegurar a unificação econômica, política e cultural do país, o proletariado do Norte deveria incorporar os intelectuais do Sul.

Para Gramsci, Benedetto Croce10 é o típico representante de uma categoria de intelectuais tradicionais compreendido entre os filósofos idealistas que se apresentaram como independentes das classes sociais e como representantes de uma continuidade histórica iniciada por Platão, mas que na realidade esconde uma posição de classe: ele é o ideólogo do liberalismo italiano e o mestre dos intelectuais liberais de seu país.

É preciso assinalar também que o idealismo do tipo Croceano era um movimento cultural do Sul que se opunha aos movimentos culturais positivistas e futuristas do Norte. A burguesia rural do Sul produzia, por conseguinte, duas classes de intelectuais tradicionais: os “notáveis”, que estavam integrados pela burguesia incorporada a seu aparato estatal, e os “pensadores”, camada que estava integrada pela burguesia, se não ao nível de organização, pelo menos ao nível de sua posição de classe.

Os notáveis e os idealistas criados pela pequena burguesia rural, assim como o clero, surgido da organização católica, representam, em relação aos intelectuais do proletariado, os intelectuais tradicionais.

Os intelectuais do proletariado ocupam uma posição especial no seio do modo de produção capitalista, pelo fato de que a classe trabalhadora é um produto deste modo de produção e que é chamada a destruir este para instaurar o comunismo.

Os técnicos – intelectuais orgânicos da burguesia – são, com relação aos intelectuais do proletariado, tendencialmente tradicionais. Enquanto a burguesia se acha em uma fase ascendente, não se pode dizer que seus intelectuais orgânicos são tradicionais com relação ao proletariado. Porém, desde o momento em que a burguesia perde seu papel progressivo, seus intelectuais são tradicionais. A

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possibilidade desta tendência está fundada sobre as características mesmas que distinguem o intelectual do proletariado do da burguesia. Assim como este não é mais que um técnico, o intelectual do proletariado possui uma concepção de mundo, o marxismo, que se fundamenta no trabalho como o elemento de uma atividade prática geral que transforma constantemente o mundo físico e social. Para Gramsci (apud Piotte, 1972) “el intelectual del proletariado, de la técnica-trabajo, llega a la técnica-ciencia y a la concepción humanista histórica, sin a qual se sigue siendo especialista e no se llega a dirigente (especialista + político).” (p. 52)

Sempre que a burguesia desempenha um papel progressivo na sociedade, pode, com mais facilidade que o proletariado – pelas posições que seu controle sobre o conjunto da sociedade permitem oferecer a estes intelectuais – assimilá-los e exercer, desta forma, sua hegemonia sobre a sociedade. Os intelectuais da classe historicamente progressiva, afirma Gramsci (apud PIOTTE, 1972), exercem, pois,

[...] una tal atracción que acaban por someter, en último análisis, como subordinados, a los intelectuales de los demás grupos sociales y, por tanto, llegan a crear un sistema de solidaridad entre todos los intelectuales, con vínculos de orden psicológico (vanidad, etc.) y a menudo de casta (técnico- jurídicos, corporativos, etc.) (p.53)

O caráter progressivo de uma classe se define, desse modo, por sua capacidade de absorver as forças produtivas e de ampliar seus quadros de intelectuais orgânicos. Entretanto, quando a burguesia se converte em obstáculo para o desenvolvimento da sociedade, os intelectuais tradicionais tendem a separar- se dela e a unir-se à classe trabalhadora. Desta forma, a burguesia perde sua hegemonia sobre a sociedade, agindo unicamente pela coerção, ou seja, ocorre uma desintegração do bloco ideológico, e o consentimento espontâneo das massas à direção burguesa é trocado pela coação “en formas cada vez menos disimuladas y indirectas, hasta llegar a las medidas de policía propiamente dichas y los golpes de Estado” (GRAMSCI apud PIOTTE, 1972, p. 54). Porém, não há que incorrer em uma interpretação “economicista”: o proletariado prepara esta crise constituindo progressivamente seus intelectuais orgânicos, arrancando-os paulatinamente dos intelectuais tradicionais daqueles “antagonistas” da influência burguesa.

Piotte (1972) critica o posicionamento de Bon e Burnier, que tentam demonstrar, no mesmo período histórico, a não validade da distinção entre

intelectuais tradicionais e intelectuais orgânicos em Gramsci. Afirmam, estes dois autores, que no período da III República, na Itália, os intelectuais tradicionais exerceram a função de intelectuais orgânicos da burguesia e que só depois da Segunda Guerra é que foram substituídos pelos tecnocratas e técnicos, questionando, assim, a aplicação do conceito de intelectuais tradicionais em Gramsci.

Piotte (1972) afirma também que os intelectuais tradicionais italianos daquela época possuíam atributos contraditórios, eram provenientes da zona rural no sul e defendiam formas arcaicas de industrialização, mas ao mesmo tempo poderiam ser considerados verdadeiros intelectuais orgânicos, uma vez que exerciam funções políticas a serviço da burguesia, fato esse reconhecido por Gramsci quando afirma que os técnicos não possuem nenhuma função política. Para Bon e Burnier (apud PIOTTE, 1972): “ꜟEsta distinción es tan poco clara para el autor que cada vez que intenta definir el “hombre nuevo”, el intelectual orgânico del proletariado, lo definirá no con relación a los intelectuales orgânicos de la burguesia, sino com relación a los notables!” (p. 55)

Utilizando o conceito de intelectual tradicional para analisar as diferentes estratificações no seio de um mesmo modo de produção, Gramsci dá grande amplitude a este conceito identificando com eles todos os intelectuais que estavam ou estão organicamente ligados às classes desaparecidas ou em vias de desaparecimento. O termo “tradicionais” serve, assim, para determinar as camadas intelectuais que a classe historicamente progressista deve assimilar para exercer a hegemonia sobre o conjunto das classes sociais constitutivas da sociedade.

O conceito de intelectual tradicional, que designa os intelectuais que sobrevivem ao desaparecimento do modo de produção no qual haviam surgido, é bastante preciso. Assim, a passagem de produção do modo feudal ao modo de produção capitalista, designa com precisão o clero e constitui um instrumento de análise para estudar as lutas ocorridas entre os intelectuais da burguesia e os da aristocracia.

No livro “Diário de um pároco de aldeia”, um jovem padre é enviado para uma pequena paróquia, na região de Ambricourt, uma pequena aldeia do norte da França. Aos poucos o pároco vai conhecendo de perto toda a miséria humana com seus angustiantes problemas, o sentido do sofrimento, a consciência do mal, o livre

arbítrio. Ele descreve a sua chegada à sua paróquia no norte de França e sua luta pela transformação das pessoas que se mostram descrentes, cínicas e pragmáticas. Para tanto, busca apoio de outros padres, mas percebe um profundo fosso na compreensão da realidade, principalmente, na missão da Igreja. Notadamente, seus colegas se colocam ao lado daqueles que consideram como “cidadãos laboriosos, que tiveram tanta dificuldade para se erguer, são nossa melhor referência diante de uma sociedade materialista, tomam parte nas despesas do culto, e nos dão também nossos padres [...]” (BERNANOS, 1999, p. 87)

É interessante notar a forma como argumentam a favor dessa aliança com os burgueses emergentes, dessa nova classe com a qual se unem até mesmo em defesa dos seus próprios interesses “Mas ora! Se nos roubam, ao menos nos respeitam. Isso cria entre eles e nós uma espécie de solidariedade social, que pode ser lamentada ou não, mas que existe, e tudo aquilo que existe deve ser utilizado para o bem.”. (ibid., p. 88)

Um dos personagens dessa obra, o deão de Blangermont, afirma ainda que:

Conheci um tempo em que essa modesta burguesia trabalhadora, poupadora, que ainda constitui a riqueza e a grandeza de nosso querido país, sofria quase que totalmente a influência da imprensa ruim. Hoje, quando sente que os frutos do seu trabalho estão ameaçados por elementos de desordem, ela compreende que a era das ilusões generosas já passou, e que não há apoio mais sólido para a sociedade do que a Igreja. (p. 84)

Nesta citação podemos observar claramente uma utilização ideológica da imprensa por parte dos intelectuais tradicionais, que se aliam às burguesias emergentes, objetivando preservar o posicionamento do clero e, consequentemente, da Igreja.

Buscamos em Bernanos (1999) a compreensão de como o intelectual tradicional se transforma em intelectual orgânico com modos novos de defesa da classe burguesa. Ou seja, o intelectual tradicional ao defender os interesses da aristocracia na sociedade burguesa, não repete simplesmente os interesses da classe dominante antiga, mas sim, necessita reapresentar aqueles interesses atribuindo à aristocracia virtudes não observáveis na burguesia.

Podemos observar que os intelectuais tradicionais não só eram muito ligados à aristocracia como também à monarquia e como Bernanos era reconhecidamente

um monarquista, notamos em seu livro a clara utilização do pensamento católico francês difundido e disseminado tanto pelos intelectuais ligados ao clero quanto pelos monarquistas ali descritos.

A defesa dos interesses da antiga classe dominante pode ser percebida em passagens, cujos personagens deixam implícito que os valores por eles defendidos são capazes de trazer certa estabilidade à sociedade moderna, que é uma sociedade caótica, com tendências a conflitos, ou seja, a aristocracia e a monarquia são capazes de instaurar certa paz porque possuem algo de protetor.

Na aldeia ali descrita aparece a figura do marquês como o protetor de toda a aldeia e quando o padre vai visitá-lo, o faz com a maior deferência e respeito. O marquês e a marquesa eram figuras veneradas pelos camponeses naquela aldeia da Provence, tanto que a escolha da dama de companhia da marquesa era um grande evento, pois a escolha deveria recair sobre uma filha de camponeses, pequenos proprietários, com educação católica. Para a menina escolhida como dama de companhia essa era uma honra estamental, pois passaria a viver no castelo fazendo companhia à marquesa.

Notamos nesse contexto, a aristocracia não quer mais passar aquela ideia de poder exercido pela força, mas a ideia de que é um grupo que se faz respeitar pelas suas virtudes morais.

Essa literatura católica francesa tem o papel de reabilitar o aristocrata, rever a imagem do aristocrata caçador de raposas que não se preocupa em estragar as plantações dos camponeses.

Com esta breve descrição do livro, queremos apontar para o fato de que, não é simplesmente dizer que o intelectual tradicional repete mecanicamente os interesses da classe dominante antiga, mas que, na realidade, ele tem de resgatar esses interesses e apresentá-los de outra maneira.

A obra em questão serve também como parâmetro de literatura francesa para apontar o quanto essa literatura católica teve peso e foi altamente valorizada naquele país, fato esse desconsiderado por Gramsci ao apontar como principal literatura francesa o pensamento burguês.

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