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5- A EXPECTATIVA DA FAMÍLIA

5.1 O jovem na família

A família é fato de natureza universal com características de unidade biológica de reprodução, sendo considerado locus privilegiado e adequado ao desenvolvimento humano e social. É na convivência com a família, que o ser humano começa a dar sentido ao mundo, pela aquisição da linguagem, dos valores e das normas instituídas no interior de cada unidade familiar, em que se iniciam as experiências vividas, assim, a família adquire a condição de filtro por meio do qual se começa a enxergar e atribuir significado ao mundo.

Uma família não é apenas a união de pessoas por laços biológicos, mas, principalmente, pelos sentidos que se estabelecem nas relações, sem os quais essas relações acabam se arruinando, exatamente pela perda de sentido. É certo que se os laços de consangüinidade unem famílias é porque são em si importantes e significantes. Importantes e significantes também são os signos, os valores e as normas geradas no interior de cada

unidade familiar, uma vez que a família é o primeiro referencial que permeia a existência dos seres humanos.

Os signos e os valores familiares podem ser constantemente alterados pela contribuição que cada membro, numa ação individualizada, insere na família, em termos de experiências vivenciadas de forma singular na convivência cotidiana no mundo exterior ao do lar. É certo que muitas vezes esse fato é suficiente para gerar conflitos, principalmente quando essas experiências abalam a estrutura e os valores arraigados na família. Alguns jovens expressaram a angústia que os conflitos familiares causam:

Ah! Assim que eu posso perceber de vez em quando é as brigas com os pais. Eu vejo meus colegas, né, hoje eu briguei com meus pais, hoje eu não to bom não, eu briguei com minha mãe. Isso aí eles enfrentam muito, tanto que eu também enfrento. Tem dia que eu chego mal porque tive dificuldades com a família. (Bruno, 15 anos, 1º ano, metrópole).

A família constitui um conjunto de pessoas; cada uma destas ao conviver com outras pessoas, enriquece sua experiência pessoal, que é compartilhada e somada à dos demais membros da família. Nesse sentido, os jovens possuem uma característica marcante, pois buscam, fora do lar, outros referenciais para a construção de sua identidade.

Cada pessoa tem opiniões diferentes, formação diferente, conviver com essas diferenças é bom para o nosso próprio desenvolvimento. (Lauana, 16 anos, 2º ano, Metrópole).

É importante conviver com outros jovens porque trocamos idéias com pessoas que passam pelos mesmos problemas que nós, e temos a oportunidade de conhecer mundos e formas de pensar diferentes. (Telma, 17 anos, 3º ano, Metrópole).

É importante relacionar com pessoas da sua idade para saber como eles levam a vida e enfrentam os problemas, assim estamos conhecendo o mundo de outras pessoas e melhorando nosso jeito de ser. (Edson, 17 anos, 3º ano, Província)

Pelos depoimentos acima se comprova a necessidade do jovem em buscar, além da família, referenciais para constituição da sua identidade, encontrar, no outro, alguém que vivencia os mesmos problemas e que possui as mesmas expectativas. Conhecer como cada um enfrenta as dificuldades cotidianas o que pode significar a ruptura com seus padrões assimilados no lar e a incorporação de novas maneiras de olhar as dificuldades e enxergar o mundo.

Cada família constitui uma rede de relacionamentos com vínculos complexos e profundos que possibilita imprimir o “retrato” da família com a finalidade de que tudo isso possa permanecer durante várias gerações; dessa forma, criam-se os laços de pertença, que,

para Petrini (2003, p. 71), muitas vezes, foram motivos de opressão e abusos nas relações familiares.

No entanto, esses referenciais encontram nos jovens uma fronteira capaz de abalar as estruturas construídas para perpetuar esse “retrato” familiar, uma vez que encontram, fora da família, diferentes referenciais assimilados e incorporados na construção de suas identidades. Atualmente, esses referenciais são construídos também, dentro da própria casa, pela presença dos meios de comunicação, especificamente a televisão que consegue imprimir idéias, estilos de vida e consumo, que chegam aos jovens, incitando à rebeldia, à transgressão de limites, ao consumismo e à destruição de regras sociais. Nesse sentido, as regras construídas no interior da família são constantemente transgredidas e os valores familiares abalados; o lar, visto como lugar de afetividade e aconchego, transforma-se em campo de conflitos. Não só os jovens sofrem influência dos meios de comunicação, as famílias também são afetadas, uma vez que a mídia projeta “imagens de família muitas vezes atípicas e contribui decisivamente para a formação e difusão de novos valores e novos modelos de comportamento e convivência conjugal” (PETRINI, 2003, p. 75).

Longe dos olhares da família e no convívio com outros jovens, seja na escola, no trabalho ou no lazer, formam sua “turma” e nesta constroem uma identidade, maior do que no seio da própria família. Porém, quando questionados sobre o que é mais importante para eles sempre colocam a família em primeiro lugar:

Ah! Em primeiro lugar o valor a família, em segundo lugar curtir a vida, e sexo em terceiro, e também as amizades. (Bruno, 15anos, 1º ano, Metrópole).

Minha família em primeiro lugar, depois o estudo e as amizades. (Alisson, 17 anos, 3º ano, Província).

Minha família é mais importante, porque me apóia sempre, as amizades também são importantes, mas nem sempre podemos contar com elas, a família tá sempre do nosso lado. (Paulo, 16 anos, 2º ano, Província). Embora seja comum ouvir que os jovens perderam as referências familiares, os depoimentos acima demonstram que grande parte dos jovens mantém a família como principal eixo simbólico, como lugar de afetividade, embora no seu interior possa haver conflitos. O exemplo disso é o jovem Bruno, que afirma possuir conflito com a família, mas que a coloca em primeiro lugar na ordem de importância que atribui àquilo que está em seu entorno. Certamente, as referências, os valores e as tradições familiares estão incorporadas na constituição da identidade de cada um, criança, jovem ou adulto e isso demonstra o caráter sócio-histórico que a família possui.

Pesquisa do Instituto Cidadania indica que a família é a instituição em que os jovens mais confiam, 98% afirmam que confiam na família e 83% confiam totalmente. 72% citam a família como fator mais importante para o seu amadurecimento. A pesquisa aponta, também, que a mãe é a figura fundamental para os jovens; para 59% deles, a mãe é a pessoa a quem eles dão mais atenção no que diz.

Por certo, a tensão que existe entre os distintos discursos de cada membro da família está relacionada com focos de resistência à mudança, por parte dos pais, e de contestação a essa resistência por parte dos filhos. Sarti (2004) argumenta que a ausência em nossa sociedade de rituais que permitam simbolizar coletivamente o momento de mudança no estatuto social do sujeito faz com que a juventude passe a não corresponder a um lugar definido. A pesquisadora acrescenta ainda que:

Na ausência de rituais que instituam esse momento como uma preparação para uma nova posição social, legitimando o estado de liminaridade e de transição, o jovem vive seu lugar como o da contestação, como um ‘outro’ lado, em contraposição ao mundo adulto. Ele é uma não-mais- criança e um não-adulto e, freqüentemente, considerado um problema para o mundo adulto, o ‘aborrecente’. (SARTI, 2004, p. 124).

A família elabora uma noção ideal de filho, ordena os valores e a moral, sintetizando as aspirações que projetam para eles. Qualquer contestação a esses valores ou desobediência às normas instituídas é marcada por conflitos, exatamente pela falta de rituais de demarcação da fronteira entre a criança e o jovem e deste para o adulto, além da ausência de delimitação no papel que o jovem ocupa na família e na própria sociedade. O jovem, perdido em meio à angústia da falta de identidade na família e na sociedade, tende a contestar e não aceitar situações que o coloquem em compasso de espera. Muitas vezes, as contestações criam situações perturbadoras, para ele e para a família, como expressas no depoimento do jovem Bruno:

Ah! Eu tento escutar, porque eu sei que eles já passaram pela minha idade, eu tento escutar, bem assim, aprender, só que às vezes não entende a gente, aí a gente acaba brigando, se desentrosando, ou discute ou vira a cara. Só que assim, por parte da família, mais assim, eles fala e eu fico calado, mas quando eles não entendem, iche! Aí eu apelo, eu falo: não, porque você não deixa a gente ir em tal lugar? Por que não deixa a gente sair? _ Não, você ainda é moleque, você ainda é novo. _ Mas o que é que tem? Não tem nada a ver. Você também já passou por esse lado. Você ia gostar de ficar dentro de casa? Eu vejo assim né? Eu vejo que às vezes os pais são ranzinzas, não entende a gente. (Bruno, 15 anos, 1º ano, Metrópole).

Os adultos tendem a se sentirem como a geração preparada, como responsáveis por serem uma imagem clara para os jovens, como espelho nos quais os mais novos devem

refletir e, por isso, têm por incumbência a tarefa de prepará-los. Eisenstadt (1976, p.11) afirma que “os mais velhos, às vezes, assumem formas assustadoras e enfatizam que sem eles os adolescentes não podem se tornar adultos”. Isso porque temem não conseguir manter a autoridade e o respeito diante daqueles que ainda são carentes de direitos e de conhecimentos. Os jovens são constantemente cobrados a seguir os padrões estabelecidos pelos adultos, como sendo verdadeiros e únicos, qualquer contestação é motivo para tachá- lo de “rebeldes”, “revoltados”. Pelo depoimento de Bruno, percebe-se que eles não deslegitimam a autoridade e intervenção do adulto; o que não aceitam é autoritarismo e formas de comunicação pouco claras e sinceras que permitam o diálogo.

Os jovens são objeto de expectativas familiares, os pais traçam objetivos para os filhos, constroem expectativas, traçam os rumos dos jovens no universo adulto; dessa forma, a família já projeta o que espera de seus filhos. Para a maioria das famílias pobres, mesmo aquelas que não tiveram oportunidade de estudo, a escola representa a esperança de uma vida melhor do que as suas, de melhores oportunidades de trabalho e ascensão social.

O meu pai não teve estudo e ele fala: _olha a merda que eu tô hoje. Ele fala: _a merda que eu tô hoje; você não trata de estudar não, para você ver. Você vai ficar igual eu. Eu falo: _ não, e não acho ruim do senhor estar assim. Ele fala: _ mas eu podia estar melhor. Eu podia estar melhor, tal. Entendeu? Por isso ele briga quando eu falto. (Bruno, 15 anos, 1º ano, Metrópole).

Na projeção que os pais fazem para o futuro dos filhos, certamente, está a possibilidade da inserção no mercado de trabalho em condições melhores que as suas, por isso, a escolaridade é reivindicada como possibilidade de melhores condições de vida. No caso do jovem Bruno seu pai é um pequeno empresário, possui uma banca de pesponto, e presta serviço para outras empresas. Bruno, 15 anos, ajuda o pai e trabalha das 7 h. às 11 h. e estuda no período da tarde. O pai não é trabalhador assalariado, mas passa todas as dificuldades inerentes ao pequeno empresário e, ainda, vive na dependência dos trabalhos repassados pelas grandes empresas calçadistas, e o próprio filho reconhece as dificuldades do pai:

Eu penso assim, eu não gosto de estudar, mas será que vou ter o que meu pai tem? Será que o dinheiro que eu ganho lá na banca do meu pai vai dar pra mim viver? Será que meu pai vai continuar tendo serviço? Se vai ter serviço fixo, se as empresas vão continuar levando serviço para ele. Tenho medo de não estudar e ter menos que meu pai.

O pai, vendo-se em condições de pequeno empresário que vive a angústia da instabilidade, a preocupação em pagar as contas, a amarga sensação de incompetência, não

deseja que o filho passe pelas mesmas dificuldades; assim, projeta para ele uma profissão via escolaridade que lhe ofereça estabilidade e bons salários e, conseqüentemente, condições de ascensão social. Possuidor de uma inteligência viva, o jovem se vê em meio às dificuldades da família e o medo do futuro, uma vez que não gosta de estudar e não quer continuar estudando, sente dificuldade de traçar, na geografia do possível, projetos futuros com hipóteses concretas.

Naturalmente, ter estudo não garante trabalho, assim como ter emprego não é garantia de que vai continuar trabalhando, mas a escolaridade continua sendo uma pré- condição para acesso aos empregos com melhores remunerações.

A maioria das mães e dos pais entrevistados possui baixa escolaridade, apenas uma mãe possui ensino superior completo e um pai e uma mãe ensino médio completo, uma mãe com curso técnico (nível médio), todos os outros pais possuem ensino fundamental ou ensino médio incompleto. A maioria atribui as suas dificuldades de acesso a melhores empregos à falta de estudo “Estudo faz muita falta né?, se eu tivesse mais estudo talvez eu não seria apenas uma faxineira ou coisa assim, ou vendedora, igual sacoleira que eu fui” (Tânia, 45 anos, 4 filhos, 7ª série), por isso valorizam o estudo dos filhos e nele depositam grandes esperanças, embora reconheçam as dificuldades que os filhos devem enfrentar devido as deficientes condições do ensino fundamental e médio.