• Nenhum resultado encontrado

3.2 Conteúdos da vida

3.2.2 O trabalho dos jovens

Para os jovens, o ingresso no mundo do trabalho se apresenta como uma forma de “rito de passagem” da juventude ao mundo adulto, sendo que para os jovens das camadas mais pobres, assim como para suas famílias, a formação educacional e, principalmente, o trabalho significa a possibilidade de fugir da pobreza, de construir projetos de futuro, assim como, a oportunidade de socialização, de aquisição de dignidade, de autonomia e liberdade.

No universo dessa pesquisa, poucos alunos afirmaram não trabalhar, porém, manifestam desejo de fazê-lo e tecem críticas aos motivos pelos quais justificam estar fora do mercado de trabalho. Alguns afirmam que não trabalham por ainda não terem a idade mínima exigida por lei e, outros, face à falta de oportunidade dada aos iniciantes, por não terem a experiência que o mercado de trabalho exige.

No Brasil, até recentemente, a criança e o jovem estavam sem qualquer proteção legal em relação a sua inserção e permanência no mercado de trabalho. Essa preocupação começa a surgir nas discussões que precedem a elaboração da Constituição de 1988. Em março de 1988, foi criado o Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-

Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente – Fórum DCA, cujo objetivo era o de fazer chegar de forma organizada aos parlamentares constituintes, uma idéia até então inédita no Brasil: combater a violência estrutural e cotidiana contra a infância e a adolescência, por meio de legislação. Como resultado dessa mobilização, a Assembléia Nacional Constituinte vai aprovar e fazer constar na Constituição Federal o Título VIII, capítulo VII, artigo 227, dedicado aos direitos e à proteção da criança e do adolescente. O art.7 da Constituição, dedicado aos direitos dos trabalhadores, destaca no inciso XXXIII: “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 (dezoito) e de qualquer trabalho a menores de 16 (dezesseis) anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 (quatorze) anos”. Em outubro de 1999, foi enviada ao Congresso Nacional para sua apreciação, a Convenção 138, datada de 1973 (aprovada e ratificada pelo Brasil em dezembro de 1999), e a Convenção 182, de 1999 (aprovada pelo Congresso em 12 de setembro de 2000, que entrou em vigor em fevereiro de 2001), ambas elaboradas pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, e que tratam do trabalho de crianças e jovens adolescentes. A Convenção 138 proíbe todo e qualquer trabalho até os quinze anos, e a Convenção 182 prioriza o combate ao que se chama de “piores formas de trabalho infantil”.

Apesar da existência de legislação que protege a criança e o jovem adolescente do trabalho, muitos jovens abordados por este estudo e que se encontram abaixo da idade mínima permitida pela legislação afirmam exercer algum trabalho. As meninas, geralmente, realizam trabalhos domésticos (babá, doméstica, confeiteira), porém, outras atividades também são exercidas por elas: vendedoras e atividades ligadas à produção de calçado. Todos os meninos com idade entre 14 e 15 anos, que afirmam trabalhar, realizam atividades ligadas ao setor calçadista: colador de peças, revisor de peças e serviços gerais. A jornada de trabalho para essa faixa etária gira em torno de três a cinco horas diárias, ou seja, entre quinze e, vinte e cinco horas semanais. É uma jornada menor do que a dos jovens acima dos dezesseis anos e dos adultos, mas em se tratando de jovens em idade escolar, esse número não pode ser desprezado, ainda mais se for levado em conta que não se trata de atividades eventuais ou irregulares.

Comumente trabalham para parentes, amigos ou vizinhos e os rendimentos apontados são muito baixo, inferiores a meio salário mínimo. Esse quadro denota como o mercado de trabalho dos jovens é precário, com presença significativa de jovens ocupados sem contrato de trabalho e proteção das leis trabalhistas. Pochmann (2004, p. 231) argumenta que “ao ingressar muito cedo no mercado de trabalho, o fazem com baixa

escolaridade, ocupando vagas de menor remuneração, quase sempre conjugadas com posições de subordinação no interior da hierarquia do trabalho”.

Essa é uma realidade que atinge os jovens em todas as regiões brasileiras. Pesquisa realizada pelo Instituto Cidadania, com Projeto Juventude40, aponta que entre os jovens que trabalham, 78% são assalariados, mas a maioria em situação de informalidade (40,5%). Acrescenta, ainda, que um número grande de jovens trabalha sem receber nada (16,3%).

Mesmo com rendimentos tão baixos esses jovens utilizam essa pequena quantia para consumos pessoais, tais como roupas, calçados, perfumaria e, alguns, ainda ajudam nas despesas de casa. Dessa forma, pode-se afirmar que uma parcela da reprodução familiar fica por conta de seu trabalho, isso conduz ao que Frigotto (2004, p.181) chama de “processo de adultização precoce”. Processo contrário ocorre com os filhos das famílias de classes médias e ricas, que prolongam a juventude, uma vez que sua inserção no mercado de trabalho é postergada, em virtude do alongamento dos estudos, atendendo às exigências da sociedade do conhecimento por melhor escolaridade. Geralmente, o ingresso no mercado de trabalho vai ocorrer após os 25 anos de idade e, em atividades de melhor remuneração e em postos de direção na hierarquia do trabalho.

Certamente, o número de jovens com idade inferior à permitida pela legislação exercendo atividades de trabalho, principalmente no setor de calçados, seria maior em Franca, se não fosse a atuação do Instituto Pró-criança41

Mesmo afirmando que gostam do trabalho, e que não gostariam de deixá-lo, e ainda, demonstrando preferência pelo trabalho em relação à escola, parte-se da hipótese de que um jovem fora da escola, ou sem tempo para estudar ou praticar alguma atividade física, constituir-se-á pessoa prejudicada em seu desenvolvimento, principalmente se for considerado que a educação é parte fundamental da preparação para a vida adulta. O que se

40 Instituto Cidadania – Projeto Juventude, Documento de conclusão – versão inicial para discussão,

complementação e ajuste. São Paulo, 2004.

41 O Instituto Pró-Criança foi criado em 1995, depois de denúncias internacionais de que a indústria

calçadista de Franca utilizava mão-de-obra infantil. Compradores internacionais colocaram como condição para a compra de calçados em Franca, a erradicação do trabalho infantil. Para combater o trabalho de crianças e adolescentes o Sindicato da Indústria de Calçados de Franca, a Associação de Comércio e Indústria de Franca e Diretoria Regional CIESP/FIESP, fundaram o Instituto Pró-Criança. Hoje, o Instituto conta com 58 empresas associadas, 42 são indústrias de calçados que produzem para exportação (essas empresas correspondem a 10% das indústrias de calçados da cidade, mas representam 70% das exportações). Segundo o Presidente do Instituto Pró-Criança e também Presidente do Sindicato da Indústria de Calçados de Franca, Elcio Jacometi, a pretensão não é erradicar o trabalho infantil, mesmo desejando, mas a pretensão maior é criar obstáculos para a inserção de menores de 16 anos no trabalho de manufatura de calçados. Para dar credibilidade ao Programa, o Instituto, em parceria com a UNI-FACEF – Centro Universitário UNI- FACEF, realiza semestralmente auditoria em indústrias e prestadores de serviços. As ações do Instituto estão focalizadas nos prestadores de serviços, uma vez que na indústria não há trabalho de menores. O Instituto atende e encaminha para diferentes cursos filhos dos prestadores de serviços. Em 2002 atendeu 529 crianças e adolescentes, em 2003 foram 690 e, em 2004, 644.

faz necessário é uma política educacional que abra a possibilidade de tempo integral à permanência do jovem na escola, com espaços apropriados para pesquisa (biblioteca, computadores, laboratórios), espaços para praticar esporte, aprender línguas, música, informática, enfim, o essencial para reconhecer o jovem como sujeito de direitos.

Os jovens que afirmam não trabalhar porque não têm experiência e, dessa forma, não são aceitos no mercado de trabalho, representam o alto grau de dificuldade de sua inserção no trabalho e, ainda, enfrentam um difícil paradoxo, porque se não têm experiência não conseguem emprego, não conseguindo, não podem adquirir experiência, não sendo, pois, possível adquirir a credencial que garante o acesso ao mercado de trabalho. Na cidade de Franca, com a intensificação do processo de terceirização da atividade calçadista, o aprendizado dessas atividades começa no próprio lar, com parentes ou vizinhos. Dessa forma, a inserção dos jovens no setor de calçados é facilitada, mas conseguir trabalho em outras atividades torna-se mais difícil pela falta de experiência. Muitos jovens afirmaram que iniciaram suas atividades laborais com calçados e esperavam, depois, conseguir outro tipo de trabalho, mas com o passar do tempo perceberam as dificuldades em ingressar em outras atividades.

Os jovens desse estudo, quando indagados sobre o maior problema que atinge a juventude foram categóricos ao afirmar que é a falta de oportunidade no mercado de trabalho. Muitos afirmam que gostariam de trabalhar, mas que ninguém oferece oportunidade para aqueles que não possuem experiência.

Embora as considerações acima de que jovens em idade inferior à permitida pela legislação exerçam atividades no mercado de trabalho, o número de jovens abordados por esse estudo, em idade igual ou superior à permitida pela legislação e que gostariam de trabalhar, é superior àqueles com idade inferior à 16 anos, que ainda não poderiam trabalhar, mas trabalham.

Milhões de jovens em todo o Brasil, entre eles os estudantes do ensino médio, travam diariamente lutas para obterem vagas no mercado de trabalho. Pesquisa realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos – DIEESE, sobre a Situação do Trabalho no Brasil nos anos 9042 aponta que o desemprego juvenil ultrapassou em 1999 a marca de 30%, em todas as regiões metropolitanas, o que evidencia a dificuldade de inserção dos jovens no mercado de trabalho. A pesquisa considerou como jovens os indivíduos com idade igual ou superior a 16 anos e inferior a 25 anos, isto é,

42 Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos – DIEESE. A situação do trabalho

aqueles compreendidos na faixa etária entre 16 e 24 anos. O limite inferior, ou seja, a idade de 16 anos, refere-se à idade mínima legal para ingresso no mercado de trabalho, e 24 anos, a idade considerada limite para o que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, considere como jovem.

A maioria dos alunos investigados no presente estudo estuda e trabalha, permanecendo mais tempo nas atividades trabalhistas do que na escola; o número de horas trabalhadas fica entre cinco e nove horas, e a permanência na escola, para os alunos do diurno, é de cinco horas, e oficialmente de quatro horas para o noturno. Oficialmente porque as escolas criam de forma extra-oficial um horário alternativo, levando em conta as dificuldades dos alunos para retornarem à suas casas. Na escola Metrópole a diretora afirma que os alunos são moradores de bairros distantes e necessitam tomar ônibus para retornar aos lares, e que os ônibus passam nas proximidades da escola antes das 23 horas. Assim, convencionou-se que as aulas terminariam às 22horas e 40 minutos. Na escola Província, o diretor afirma que atende à solicitação dos pais pela afirmação de que o bairro é perigoso e, portanto, quanto mais cedo saírem da escola maior será a segurança para retornarem aos lares, tendo em vista que as aulas encerram-se às 22horas e 40 minutos.

Quando indagados sobre as razões de trabalharem, duas respostas predominaram. A primeira, e mais freqüente, é que trabalham para ajudar a família, a outra, para conquistar sua independência financeira.

A renda familiar baixa, como apontado na Tabela 10, em conseqüência da remuneração do pai e/ou da mãe situar-se em patamares muito baixos, não ganhando o suficiente para manter seus filhos fora do trabalho, acaba por conduzir os jovens ao desempenho de atividades trabalhistas e permitir que acumulem, em dupla jornada, trabalho e escola, com benefício do primeiro em detrimento do segundo. Os salários dos jovens vão compor a renda familiar e, ainda, a renda pessoal, uma vez que é com os seus ganhos que vão adquirir roupas, calçados, cobrir os gastos com lazer, aquisição de material escolar, cursos de língua ou de informática.

O fato de não depender financeiramente da família, faz com que o jovem sinta-se com mais liberdade e autonomia, pois torna-se porta-voz de uma ideologia que pensa o trabalho como uma atividade boa e adequada, independente da atividade que realiza e como a realiza. Em suas respostas, ressaltam que “o trabalho dignifica o homem e o torna mais independente”, “quem trabalha aprende a valorizar as coisas”, que o “trabalho é necessidade de todo ser humano” e, ainda, “trabalhar é conquistar a cidadania”.

Certamente, as afirmações dos jovens acerca da importância do trabalho refletem os séculos de construção de uma ideologia do trabalho, que considera essa atividade como a mais nobre exercida pelo homem, como o remédio para todos os males, como a prevenção contra as más influências, como exercício de aquisição da responsabilidade, como a única forma legítima de aquisição de riqueza e acesso aos meios de vida.

Essa é uma ideologia que elimina das pessoas o senso crítico a respeito do trabalho, uma vez que tira a possibilidade de questionar se é bom para qualquer pessoa, independentemente da natureza leve ou penosa, inofensiva ou perigosa, saudável ou insalubre do trabalho. Não aponta aqueles que podem e devem trabalhar e para quem o trabalho deve ser optativo ou proibido, como idosos, doentes, crianças e jovens estudantes.

Portanto, se o trabalho fosse exatamente o que proclama essa ideologia, todos os jovens, até mesmo os filhos das famílias com alta renda estariam trabalhando, ou, trabalhando e estudando. No entanto, são os pobres que lançam mão do argumento moral do trabalho, e o elegem como instrumento de sobrevivência, uma vez que relegam a escola ao segundo plano e estigmatizam o futuro adulto. Estudo realizado por Sarti a respeito da moral dos pobres sobre o trabalho sustenta a afirmação acima:

É através do trabalho, então, que demonstram não serem pobres: através de sua honestidade, sua disposição de vencer, tornam-se, por esses atributos morais, iguais a eles. Vencer aqui não significa necessariamente ascender socialmente, mas se afirmar pelo valor positivo do trabalho. Ao lado da negatividade contida na noção de ser pobre, a noção de ser

trabalhador dá ao pobre uma dimensão positiva, inscrita no significado moral atribuído ao trabalho, a partir de uma concepção da ordem do mundo social que requalifica as relações de trabalho sob o capital. [...] O valor moral atribuído ao trabalho compensa as desigualdades socialmente dadas, na medida em que é construído dentro de outro referencial simbólico, diferente daquele que o desqualifica socialmente. (SARTI, 2003, p. 89).

A aquisição desses valores morais sobre o trabalho faz com que as populações de baixa renda encarem o trabalho como prioridade em suas vidas, dessa forma, a escola deixa de ser atividade fundamental na formação do ser humano. Para essas populações, o trabalho se constitui como “uma dádiva, que compensa as desigualdades sociais”, ou, no sentido segundo, o qual “[...] o valor do trabalho se define dentro de uma lógica em que conta não apenas o cálculo econômico, mas o benefício moral que retiram desta atividade” (SARTI, 2003, p. 90), sendo, dessa maneira, preferível manter-se no emprego que na escola.

Trabalhar também possui o significado da afirmação da sua identidade, do reconhecimento da família como gratidão aos sacrifícios que ela fez para o criar, ajudar nas

despesas da casa significa retribuir os pais. Trabalhar traduz-se em ter acesso a bens de consumo que vão padronizar os comportamentos que definem suas marcas como jovem.

A substituição da escola pelo trabalho, ou uma dedicação maior ao trabalho em vez da escola, acaba por tirar de muitos jovens a oportunidade de construir um futuro melhor. Ao invés de ser um instrumento de capacitação, como aparece na própria fala dos jovens, o trabalho, quando ocupa o lugar da escola, acaba tornando-se mais uma forma de reprodução e aprofundamento da desigualdade social.

Todos os jovens abordados por esse estudo que trabalham, afirmam gostar do seu trabalho, e os motivos que os levam a gostar do que fazem são os mais variados: porque é tranqüilo, não atrapalha os estudos, é fácil, o ambiente é agradável, a possibilidade de conviver com outras pessoas, faz o que gosta, entre outros. Também as atividades que realizam são muito diversas, mas a maioria trabalha com atividades relacionadas à produção de calçados, seguidas por vendedores de loja e caixa de supermercado. Contudo, ao responder se gostariam de ter outro trabalho, a quase totalidade respondeu que sim. Ao indicar outro trabalho que gostariam de ter, nenhum aponta a indústria calçadista, pelo contrário, manifestam forte rejeição e desejo de estar fora dela. As atividades contempladas na preferência dos jovens são as vinculadas ao uso da informática.