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Na relação entre ensino médio e formação

Durante três anos o aluno freqüenta o ensino médio, cuja organização curricular, de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, Parecer CEB nº 15/98 e os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, está dividida em três áreas: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, Ciência da Natureza, Matemática e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias, com a finalidade de tornar a educação média tecnológica, com a intenção de associar “formação geral para o trabalho e formação geral do educando” (BRASIL, 1999a, p. 99).

No entanto, na mediação entre o que é pretendido e a prática, o resultado é completamente diferente do que a priori fora proposto. É certo que a escola de ensino médio não é garantia de futuro melhor, mas ela se constitui em possibilidade de aquisição de futuro em melhores condições. Nesse sentido, os professores expressam a relação que estabelecem entre ensino médio e formação.

Eu acho que para o trabalho, um pouco né? Ela dá estrutura para o aluno conseguir um trabalho mas precisaria de ter um ensino técnico aliado ao ensino médio para preparar o aluno pro trabalho porque hoje fazer uma faculdade particular são poucos que têm condições e uma faculdade pública é difícil, é muito concorrida, então se existisse aliado ao ensino médio um ensino técnico preparando o jovem para o trabalho, ou pelo menos direcionando ele né? Hoje as escolas de ensino técnico, que eu vejo, inclusive dou aula em escola de ensino técnico, elas estão lotadas, são jovens que terminaram o ensino médio e tentam arrumar um trabalho, não conseguiram, aí verificaram que precisariam de ter uma especialização e eles estão lá, fazendo um curso técnico. Eles não têm condições de fazer um curso universitário, mas em compensação hoje o mercado valoriza muito o ensino técnico, porque hoje uma pessoa que tem uma universidade é um profissional caro, então muitas vezes eles tão colocando pessoas de nível técnico. Então é um mercado garantido. Se você tiver um curso técnico, com certeza você vai arrumar um trabalho. (Rita, 39 anos, professora de Matemática, da escola Província).

Olha, a escola pública de ensino médio, está tentando preparar o aluno para a vida, mas assim está muito difícil porque nós professores, ainda não encontramos esse caminho, né? A gente fica perdida entre preparar para a vida, preparar para o vestibular, preparar para concursos, eu acho que a gente está ainda nesse impasse aí né? Você trabalha com projetos mais relacionados à vida cotidiana deles ou você trabalha com conteúdo por que você quer que o menino, também se ele quiser, que ele entre

numa boa faculdade, então eu acho que ele não prepara nem para uma coisa nem para outra. Eu acho que ela precisa centrar mais e encontrar esse caminho, saber o que ela quer. A maioria dos professores ainda está preocupada com a questão do conteúdo né? E por outro lado você nem acaba cobrando muito também porque no final não te deixam cobrar. Você tem que deixar que o menino siga o caminho dele assim como quer as leis que estão regendo a educação. (Eliane, 43 anos, professora de Biologia, da escola Província).

A fala das professoras confirma o que outros professores afirmaram e também os alunos reclamaram, o ensino médio em sua forma atual imprime pequena importância na formação do jovem. A professora Rita expõe a necessidade do ensino médio ser articulado ao ensino técnico, como forma de capacitar o jovem para a realização de profissões de nível técnico, com menor remuneração, e lembra as dificuldades que os alunos, provenientes das classes mais pobres e que freqüentam o ensino médio público, possuem para ingressar num curso superior. Kuenzer, ao analisar a reforma do ensino médio e mostrar o seu caráter terminal e excludente, uma vez que as habilidades e atitudes propostas são asseguradas apenas com a educação básica, aponta também a que e a quem se destina o ensino superior:

O cenário da profissionalização no Ensino Superior, para os concluintes do Ensino Médio propedêutico e elitizado, lembra mais um grande shopping onde quem mais tem, inclusive tempo, mais compra, para enfrentar os desafios da competitividade. O espaço para o trabalho disciplinado e metódico que a relação com o conhecimento exige, no processo de construção de significados e de produção científica, fica postergado para outro nível, ainda mais elitizado: o da pós-graduação. (KUENZER, 2000, p. 26).

Em relação a manter um ensino médio articulado ao profissionalizante, que a professora Rita fala, refere-se ao sistema anterior à implantação da reforma do ensino médio e do ensino profissionalizante, em que o aluno optava pelo ensino médio de formação geral ou ensino profissional, que aliava formação geral e profissional. Com relação a essa mudança Kuenzer expõe:

Pensar, pois, em oferecer um Ensino Médio de uma única modalidade, em substituição aos distintos ramos de ensino técnico que vinham sendo oferecidos para atender às demandas do taylorismo/fordismo, é tão inadequado quanto manter a estrutura que existia até agora, com um ramo de educação geral e outro de educação profissional. (KUENZER, 2000, p. 27-28).

Dessa forma, o ensino médio, ao contrário do que dizem os que elaboraram sua reforma, tende a acentuar as desigualdades sociais, em vez de possibilitar a equidade, porque o jovem que freqüenta o ensino médio não consegue realizar concomitantemente o

ensino médio e o ensino técnico, alguns porque trabalham, outros, por falta de condições financeiras. Conseqüentemente, o ensino médio torna-se etapa final da escolarização ou, há um prolongamento dos estudos, pois quando de sua conclusão poderá fazer em outra instituição um curso técnico. Nesse caso, haverá postergação de sua inserção no mundo do trabalho e, ainda assim, em atividades precárias, como disse a professora Rita, de menor remuneração, na informalidade, atividades estas que com certeza lhe garantirão a sobrevivência, mas que estão longe de garantir um mínimo de dignidade e cidadania. Para Gramsci (1968, p.136), “este tipo de escola, preocupada em satisfazer os interesses práticos imediatos do mercado, foi louvada como democrática, quando na realidade, não só foi destinada a perpetuar as diferenças sociais como ainda a cristalizá-las”.

Também se faz necessário salientar que estas atividades recebem menor remuneração, não porque são desprovidas de trabalho intelectual, mas sim, porque o próprio capital tem demonstrado historicamente perpetuar as desigualdades sociais. Todo trabalho, até mesmo o mais mecânico que se utiliza grandemente de força muscular, com menor qualificação técnica, exige um mínimo de atividade intelectual criadora, seria dizer que “todos os homens são intelectuais, mas nem todos têm na sociedade a função de intelectuais” (GRAMSCI, 2000, v.2, p.18).

Ao fazer essa afirmação, não significa que o jovem estudante do ensino médio deva se conformar em realizar atividades de menor qualificação técnica, mas, pelo contrário, deve exigir formação que lhe permita sair da miséria social e da ignorância cultural a que está submetido devido a sua origem de classe. Isso significa também não aceitar, como pensa a professora Eliane ao dizer que “Você tem que deixar que o menino siga o caminho dele, assim como quer as leis que estão regendo a educação”, porque nos documentos oficiais da reforma do ensino médio, a educação tem a conotação apenas de ensino, ou mais especificamente, de “treinamento”, de “adestramento”. Formar o cidadão é educar, em sua plenitude, para o desenvolvimento da inteligência, da leitura, da escrita, é desenvolver as aptidões culturais, artísticas e corporais.

Diante desse quadro, pode-se afirmar que diferentemente dos intelectuais que elaboraram a reforma do ensino médio, e que podem ser denominados na perspectiva gramsciana como intelectuais orgânicos, os professores que atuam no ensino médio são apenas os intelectuais “funcionários”, eles trabalham e defendem os valores da instituição (Estado) e, portanto, da classe dominante, e não os valores, interesses e necessidades da sociedade. Dessa forma, eles veiculam conceito abstrato de jovem, uma vez que a sua preocupação é capacitar as novas gerações para a sociedade civil, para o setor privado,

respondendo aos projetos da classe hegemônica, conforme já analisado nos documentos da reforma do ensino médio, e negligenciando a formação do jovem na sua omnilateralidade.

Percebe-se que se torna fácil utilizar o sistema educacional para impor a hegemonia capitalista, uma vez que as próprias relações educacionais constituem o próprio núcleo de hegemonia ou, conforme observa Gramsci, a educação equivale simplesmente às operações fundamentais da hegemonia:

[...] a relação entre professor e aluno é uma relação ativa, de vinculações recíprocas, e que, portanto, todo professor é sempre aluno e todo aluno, professor. Mas a relação pedagógica não pode ser limitada às relações especificamente “escolares” [...]. Esta relação existe em toda sociedade no seu conjunto e em todo indivíduo com relação aos outros indivíduos, entre camadas intelectuais e não intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos de exercito. Toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma relação pedagógica [...]. (GRAMSCI, 2000, V. 1, p. 399).

Portanto, qualquer análise da hegemonia necessariamente implica num exame das atividades e das instituições educacionais, porque nem as complexidades da hegemonia nem a acepção da educação podem ser entendidas enquanto se pensar a educação apenas em termos de “relações escolares”.