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O material didático-pedagógico

No documento Pobreza, Desigualdades e Educação Volume I (páginas 186-194)

A discussão sobre a construção de um material didático para um curso EaD é extensa na literatura (ROSALIN; CRUZ; MATTOS, 2017). No campo da forma, espera-se que esse material dialogue com as diversas possibilidades do campo digital, trabalhando com vídeos, mídias, hiperlinks e elementos interativos, não se constituindo apenas de livros que foram escaneados ou textos disponibilizados em plataformas digitais. Segundo alguns autores do

campo de estudo da EaD, um material bem elaborado permite o desenvolvi- mento de uma aprendizagem não linear, motivando e dando mais autonomia ao estudante. Seguindo essa tendência, o MEC, ao disponibilizar o material para o curso de especialização, afirma:

O material didático do Curso de Especialização Educação Pobreza e Desigualdade Social foi desenvolvido para ser um grande mosaico de recursos digitais, a fim de oferecer ao(à) cursista um processo de apren- dizagem esteticamente agradável, divertido e surpreendente, mas que também estimule uma postura crítica, investigativa e autônoma. Dessa forma, permite o uso didático de uma série de linguagens: vídeos, anima- ções, sons, falas, fotos, ilustrações, infográficos, elementos interativos etc. (BRASIL, 2015, grifo no original).

No entanto, sabemos que forma-conteúdo se constituem como uma unidade dialética. Portanto, por mais maravilhoso que seja um material no seu campo visual-estético, ele só poderá de fato "motivar", "desenvolver autonomia", "formar pensamento crítico" se o conteúdo que vincula permitir que isso ocorra. De nada adianta um material em 3D se as concepções que ele traz forem unidimensionais, reprodutoras do status quo e com uma críti- ca que não vai nas raízes dos problemas que pretende apresentar.

Entendemos que o material apresentado para o curso, no que tange à forma, consegue ser impecável. Cumpre o que promete no site, apresenta, nos cinco módulos que compõem o curso, um formato dinâmico, com alta interatividade e excelentes qualidades gráficas. O que faremos aqui, portan- to, é discutir, em linhas gerais, o conteúdo de cada módulo do curso para mostrar que o que foi apresentado traz potencialidades, mas, em grande medida, é lacunar e reproduz um discurso fraturado e contraditório que foi, dentro dos limites, tensionado pela iniciativa EPDS da UFBA.

De acordo com o projeto político-pedagógico, o módulo introdutório previa na sua ementa dois objetivos gerais: i) explicitar as relações entre pro- dução social da pobreza, desigualdades sociais, étnicas, raciais, de gênero, de espaço (urbano rural) e educação; e ii) sensibilizar os(as) profissionais da Educação Básica sobre essas relações e as exigências trazidas por elas para as políticas educacionais e para os currículos de formação da Educação Bá- sica (BRASIL, 2014, p. 37).

Em grande medida, o material apresentado cumpre seu objetivo de desnaturalizar a pobreza. Ao discutir que ser pobre não é uma condição individual, indolência ou preguiça da população historicamente excluída, o

material apresenta-se como um avanço em relação ao senso comum que ainda permeia o modo como as pessoas empobrecidas são vistas. No entan- to, cabe destacar que nos objetivos do módulo introdutório a palavra classe, como categoria de análise para discutir pobreza, desaparece. Ainda que se fale em questões políticas amplas e até de medidas assistencialistas, o mó- dulo furta-se de discutir aspectos relacionados às raízes da pobreza e a sua necessidade de existência e recrudescimento em um contexto neoliberal.

Desse modo, trabalhamos aqui no EPDS da UFBA com textos comple- mentares (YANNOULAS; ASSIS; MONTEIRO, 2012; ASSIS; YANNOULAS, 2012; MONTAÑO, 2012) que incorporassem a questão de classe nas discus- sões sobre pobreza. Tínhamos clareza que isso precisava ser feito no início e, portanto, no módulo introdutório, para que as cursistas entendessem o cerne e a importância da relação entre os conceitos de classe e pobreza. Desse modo, o módulo introdutório não poderia terminar sem que fosse exaustivamente trabalhada a ideia de que:

A desigualdade no capitalismo não se resolve apenas com uma socializa- ção parcial da riqueza, mas com a eliminação das classes e da exploração do trabalho pelo capital, ou seja, com a superação da ordem capitalista. O sistema capitalista é um sistema estrutural e irremediavelmente desigual: supõe a "exploração" de uma classe por outra; apropriação pelo capi- talista do valor produzido pelo trabalhador; subalternização das massas pelo comando econômico/político/ideocultural do capital; expulsão de massa de trabalhadores excedentes ou obsoletos para as necessidades do desenvolvimento e da acumulação capitalistas (MONTAÑO, 2012, p. 285).

Para além do material oferecido pelo MEC, o módulo introdutório tam- bém trouxe para discussão como a mídia trabalha a questão da pobreza, mostrando como os veículos de comunicação exploram a pobreza. A discus- são tangenciou elementos sobre o preconceito linguístico, e, concordando com Bagno e Rangel (2005), foi defendido no curso que "todas as línguas e todas as variedades de língua se equivalem no que diz respeito a suas com- plexidades estruturais e a seus recursos expressivos" (BAGNO; RANGEL, 2005, p. 78). Para os autores, não existem línguas ou variedades linguísticas "primitivas", nem línguas ou variedades linguísticas "inferiores" a outras, supostamente mais "desenvolvidas". Nesse aspecto, foi trabalhada com as cursistas a necessidade de respeitar as variedades linguísticas e, ao mesmo tempo, garantir aos seus falantes o direito ao pleno conhecimento e domínio

das formas linguísticas "eleitas" como de prestígio (VIÉGAS; OLIVEIRA; MESSEDER NETO, 2017). Durante o curso, lembramos nossas cursistas que a língua não é um instrumento neutro, nem a língua materna que aprendemos no cotidiano da vida, nem a língua que aprendemos na escola. A língua (e suas variedades em conflito) é, também, instrumento de dominação e exclu- são, preconceito e discriminação, principalmente quando se trata de uma pessoa pobre.

No campo educativo, começamos a tensionar neste módulo a ideia de que a escola seria capaz de resolver todos os problemas educativos. Essa ideia foi resgatada em outros momentos do curso, mas, como tal assertiva tem raízes firmes no ideário educacional, o professor formador resolveu que esse tema precisava ser colocado em pauta. Uma vez que a discussão de que a desigualdade e a pobreza são inerentes à sociedade de classe já tinha sido feita, foi possível mostrar que o papel da escola não seria de redentora da pobreza, que só poderia desaparecer com a superação do sistema atual.

No módulo I, intitulado Pobreza e Cidadania, mais uma vez encontramos ideias interessantes no que tange a vários aspectos. Rompendo com a ideia de que o programa Bolsa Família não é assistencialista e atentando para o fato de que muitas vezes o beneficiário do programa é tratado com precon- ceito por gestores, assistentes sociais, professores, agentes do governo, o módulo predispõe-se a discutir cidadania de modo ampliado, mostrando como a pobreza é multifatorial e tem impacto nas diversas formas de acesso a informações/serviços públicos e privados das famílias empobrecidas do país. O material toca, ainda que rapidamente, nos marcadores de raça e gênero da pobreza e discute sobre a violência física e simbólica do Estado, mostrando assim que a cidadania não é garantida a todos os sujeitos e tem sido historicamente negada à classe empobrecida.

Mas, se o módulo traz nas suas linhas questões importantes de serem debatidas, um olhar mais de perto mostra que é preciso ter cuidado com alguns elementos apresentados no texto. Na ânsia de, por exemplo, mostrar que os pobres não são preguiçosos ou incapazes, os autores lançam mão de uma pesquisa de um economista sul-coreano e afirmam:

é impossível atribuir unicamente a determinadas características individu- ais a produção de riqueza (ou de pobreza). O economista sul-coreano e professor em Cambridge Ha-Joon Chang, no livro 23 coisas que não nos contaram sobre o capitalismo, menciona vários fenômenos que desmen- tem essa ideia. Um deles é o fato de que os(as) pobres muitas vezes são

muito mais dotados(as) de espírito empreendedor do que os membros da classe média ou alta e, apesar disso, não conseguem sair da pobreza por causas estruturais, ou seja, pela falta de oportunidades concretas de trabalho em seu lugar de residência, pela falta de infraestrutura etc. (REGO; PINZANI, 2015, p. 44).1

Assim, para justificar que a pobreza não é um problema individual, os autores sustentam em suas pesquisas que existe um certo "espírito empre- endedor" no pobre que não aflora por questões estruturais. Isso é naturali- zação do capital! Isso significa atribuir uma inescapabilidade desse modo de produção. É acreditar que, dadas as oportunidades concretas de trabalho, o pobre poderá aplicar de maneira adequada o seu espírito capitalista inato e assim produzir sua riqueza. Diante das considerações do módulo introdutó- rio e o debate da categoria classe, foi discutido com as cursistas que não se trata de achar no pobre características que o incluam no sistema excludente, mas de tensionar via organizações sociais (sindicatos, partidos, fóruns etc.) o próprio sistema.

Ainda nesse módulo, levando em conta a realidade da Bahia, a temá- tica sobre o trabalho infantil e as relações complexas com a escola foram bem debatidas. Para isso foram usados textos complementares (ALMEIDA, 2009; BORGES, 2014; BRANDÃO; PEREIRA; DALT, 2013; FATTORELLI, 2015) que ajudaram a entender o papel do serviço social e das políticas públicas no sentido de ajudar essa criança a não ter seu direito à infância negado, apontando os limites desses profissionais e das próprias políticas públicas nessa sociedade desigual.

O módulo II, Pobreza, Direitos Humanos, Justiça e Educação, foi consi- derado no nosso curso como um módulo com uma alta precisão conceitual e bem estruturado didaticamente. A discussão sobre a pobreza como violação de direitos foi amplamente debatida, e a ideia de que os direitos humanos não estão garantidos, mas que precisam ser cotidianamente reafirmados foi uma temática central desse módulo.

Se o esqueleto desse módulo era firme, a opção do EPDS da UFBA foi encher essa discussão de carne. Optamos, portanto, em trabalhar junto ao módulo conceitos cruciais quando se fala de violação de direitos humanos. Racismo estrutural e genocídio do povo negro foi um tema tratado com mui- ta veemência nesse módulo. A prática do Estado de executar corpos negros 1 Os termos em negrito são expressões que possuíam hiperlinks no texto original, e os

e o modo racista de funcionamento institucional da polícia foram trazidos à baila, mostrando que:

A atividade policial produz um número maior de vítimas letais do que de feridos, envolvendo um grande número de execuções que podem ser demonstradas pelas várias perfurações nos corpos, o direcionamento dos disparos para áreas vitais e o excesso de casos em que há incidência de tiro pelas costas (FLAUZINA, 2006, p. 115).

Falar de um estado racista e violador de direitos humanos significou também uma discussão sobre como essa guerra às drogas tem se mostrado mais um modo de extermínio de corpos negros brasileiro. Esse debate não poderia ser omitido ou suavizado quando se trata sobre pobreza e justiça.

O módulo III apresenta problemas graves no que tange a uma perspec- tiva crítica de educação. Apresenta um tópico chamado "Desigualdade es- colar, cultura escolar e movimentos sociais" e dentro dele, sem fazer nenhu- ma ressalva, traz um tópico que diz "uma escola que acolha a diversidade" (LEITE, 2015). No discurso aparente de uma escola que precisa acolher a diversidade, o material coloca a pobreza como algo do campo do diverso, do diferente que precisa ser respeitado. Não questiona a origem dessa di- ferença. No final das contas, nesse movimento, transforma desigualdade em diversidade, cabendo ao professor, apenas ao professor, criar meios para acolher essas pessoas que são "diferentes". Temos acordo que a escola precisa acolher a diferença e precisa pensar como lidar com os alunos de contexto empobrecido, mas isso não significa que a pobreza tem que ser pensada e naturalizada como mais um elemento do campo da diferença. A pobreza, nos tempos em que vivemos, é estrutural e precisa ser encarada como possível de ser superada, e não apenas como um elemento que nos torna diferentes.

O material ainda acaba defendendo uma escola centrada no cotidiano alienado, que, no final das contas, inviabiliza a apropriação dos conhecimen- tos que ajudem o estudante a entender o mundo para além dos limites dos cárceres da nossa vida imediata. Ao trazer o vídeo "Quando sinto que já sei" para o material didático, temos o reforço da defesa de uma escola centrada nos interesses imediatos da criança e da ingênua crença de que os proble- mas escolares são, em grande medida, metodológicos e bastaria mudarmos a forma de organização (tirar as cadeiras, trabalhar na roda de conversa) ou entupir o ambiente com parafernalha tecnológica (transformando a escola

em um ambiente mais moderno, do século XXI) que esse espaço poderia ser enriquecedor e formador de uma suposta cidadania que torna o aluno apto ao seu contexto social.

Não se trata de ser contra novas formas de ensinar ou mesmo o uso de tecnologias mais modernas nos espaços educacionais. O que temos defen- dido é que a mudança da forma não poderá sozinha resolver os problemas educacionais. Para fazer uma prática significativa é preciso a construção de novas formas/conteúdos que questionem a lógica do capital, e isso passa por oferecer ao estudante um conhecimento que o ajude a tensionar o seu cotidiano alienado e permita que ele domine aquilo que os dominantes do- minam (SAVIANI, 2008), assim, tendo mais instrumentos culturais para fazer valer seus direitos e caminhar em direção à sociedade emancipada.

A síntese do módulo aponta para uma pergunta: do que a escola pre- cisa? A resposta, da autora, embora traga elementos interessantes para o debate (território, democracia, movimento social, experiência social), furta- -se a dizer que a escola e quaisquer outros segmentos precisam mesmo é de uma revolução social. Sem mexermos no modo que reproduzimos nossa existência, sem movermos a base capitalista, a educação estará impossibi- litada de atuar no limite da sua função. Até lá, o que defendemos é que a escola precisa ajudar na construção de uma consciência de classe do sujeito que não se dá de modo espontâneo.

Na contramão do ideário trazido pelo módulo, trabalhamos aspectos críticos relacionados ao cenário neoliberal e sua influência na educação, dis- cutindo e tensionando as perspectivas que trabalham o desenvolvimento de competências e habilidades, oferecendo para os estudantes textos críticos de Dermeval Saviani (2008), Newton Duarte (2007, 2016), Maria Helena Souza Patto (1990, 2005). Passamos para uma discussão sobre medicalização dos processos escolares, defendendo que os problemas de alta complexidade não podem ser reduzidos a questões individuais ou a grupos específicos (família, comunidade, professores, alunos), tentando mostrar que as marcas da pobreza escolar não se resolverão na escola (SOUZA, 2006; OLIVEIRA; HARAYAMA; VIEGAS, 2016). No terceiro momento, foram discutidas as al- ternativas para um trabalho escolar que não duvide da capacidade cogni- tiva do pobre nem proponha um ensino aligeirado, mas que possa ofere- cer ferramentas para que o sujeito possa pensar a realidade de modo não naturalizado (DUARTE, 2016; ROSSLER, 2004; SANTOS; GOBBI; MARSIGLIA, 2015). A reforma do Ensino Médio e o projeto "Escola sem Partido" foram

amplamente debatidos nesse módulo, mostrando o viés liberal presente em cada um e seus prejuízos para a classe trabalhadora (FRIGOTTO, 2017).

O módulo IV segue o mesmo princípio do módulo III. Pensando um cur- rículo "para o pobre", o módulo mais uma vez pinta com cores vibrantes o discurso de respeito às diferenças (a pobreza é vista nessa relação com a di- ferença). O currículo é esvaziado, pensado a partir de contextos específicos, para que o sujeito faça transformações da "sua" realidade (nada de uma con- cepção de mudança geral do sistema ou uma articulação com movimento de rompimento da sociedade de classe). A triste tese central desse módulo revela-se, no nosso entender, no tópico 3: "o direito de saber-se pobre". Veja que não se trata do direito do pobre ao saber, mas o direito de "saber-se pobre". E o direito ao saber não pertence ao pobre? Ainda que com um discurso sedutor, o módulo nega, em última instância, o direito dos sujeitos a um conhecimento sistematizado acumulado ao longo da humanidade e passa a defender uma concepção de conhecimento ensimesmado.

O curso assumiu outra concepção de currículo. Para isso, todo o movi- mento de crítica do material didático deu-se com uma leitura radical sobre teóricos que apontam para o direito do pobre ao saber. Saber sistematizado que o ajudará não a saber-se pobre, mas a entender que a humanidade pro- duziu riqueza e bens materiais suficientes para que a sociedade de classe não mais existisse e a categoria pobreza não precisasse mais existir. Um cur- rículo que assuma a necessidade de um entendimento da realidade social global (e não, simplesmente, transformações locais) e que ajude os sujeitos na instrumentalização para a transformação da realidade (e não, simples- mente, da sua).

Para isso, foram trabalhadas referências de Gaudêncio Frigotto (1995, 2006), mais uma vez Dermeval Saviani (2008, 2011), Vivian Ugá (2004) e Le- ontiev (2004), tentando mostrar elementos para pensar o currículo a partir de um viés da luta de classe e tensionando as concepções pós-modernas presentes no material ofertado.

No entanto, se o material fora pensado pelos professores formadores do ponto de vista de seu conteúdo, entendemos que era preciso garantir seu caráter pedagógico à luz do formato semipresencial. A fim disso, havia na equipe uma professora especialista em EaD, com a função de dar apoio pedagógico ao ambiente virtual, trabalhando em parceria com o técnico de ambiente virtual.

No documento Pobreza, Desigualdades e Educação Volume I (páginas 186-194)