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A pobreza, a educação e a realidade social dos alunos e alunos das escolas do Piauí: significados e sentidos produzidos pelos cursistas

No documento Pobreza, Desigualdades e Educação Volume I (páginas 140-147)

sobre essa relação

De acordo com Vigotski (2000), a maneira de compreender, sentir e agir dos seres humanos, ao mesmo tempo em que traduz modos de significar a realidade sócio-histórica, também evidencia uma produção sócio-histórica. O que isso quer dizer?

Nas palavras de Vigotski (2000), quer dizer que toda atividade humana é significada, e essa significação é resultado da relação desse ser humano com a realidade. Portanto, se o modo de significar a realidade é constituído na relação social, a transformação dessa significação também resulta da nossa relação com o social.

Significados são modos de compreender a realidade histórica. Segundo Marques e Carvalho (2015, p. 19),

O significado da palavra é, ao mesmo tempo, fenômeno do pensamento e do discurso, o que significa a unidade da palavra com o pensamento. No campo semântico, corresponde a relações que a palavra encerra. No campo psicológico, são generalizações, conceitos que são partilhados, construídos e reconstruídos historicamente pelos homens que dividem a mesma cultura. Em outras palavras, é o que possibilita a comunicação entre os homens.

São os significados partilhados que revelam de forma mais imediata como nós compreendemos a realidade, mas eles não mostram como essen- cialmente nós sentimos essa realidade. De acordo com Vigotski (2009), é pela expressão dos significados, a forma mais imediata da nossa consciência, que chegamos a conhecer o sentido, aquilo que de fato a coisa representa para nós, o modo como nos afeta, nos motiva. Ainda de acordo com Marques e Carvalho (2015, p. 20),

O pensamento nunca é igual ao significado direto das palavras. O signifi- cado medeia o pensamento em sua caminhada rumo à expressão verbal, mediatizado pelos sentidos. Nessa direção, entendemos o sentido como fenômeno do pensamento e do discurso mediatizado pelas motivações que subverte o significado.

As significações são, portanto, o resultado dialético da relação en- tre significado e sentido, aquilo que representa a expressão de como

compreendemos e sentimos a realidade, o modo como interpretamos o mundo e os processos.

Imbuídos desses pressupostos, sustentamos nossas ações durante a re- alização do curso de especialização em Educação, Pobreza e Desigualdade Social. Demos início às ações formativas do curso conhecendo as significa- ções sociais produzidas pelos cursistas sobre as determinações que a po- breza ocasiona na vida das pessoas, sobretudo na vida escolar de crianças, adolescentes e jovens vinculados ao Programa Bolsa Família.

O acesso a essas significações dava-se sempre por meio de relatórios que os tutores enviavam para a coordenação do curso ao final de cada mó- dulo. Essas significações eram produzidas por meio de entrevistas semies- truturadas, realizadas ao final da atividade de reflexão-ação desenvolvida na conclusão de cada módulo, por meio de encontros presenciais. O excerto a seguir reproduz um momento de reflexão-ação em que um dos cursistas relata o que viu e sentiu ao realizar a atividade proposta pelo tutor:

O encontro presencial ocorrido no dia 21 de novembro de 2015 mar- cou o encerramento do Módulo I com a apresentação da atividade de reflexão-ação. A atividade propunha um envolvimento do cursista com a realidade de crianças, adolescentes e jovens que vivem em condições de pobreza ou extrema pobreza visando à apropriação de elementos que possibilitassem a realização de uma análise do espaço social onde esses sujeitos vivem para, a partir dessa experiência, compreender como as condições de vida podem interferir no comportamento dos alunos na sala de aula. Essa atividade ocorreu em três etapas: elaboração de um roteiro para uma entrevista informal a ser feita com a família escolhida; realização da entrevista na casa da família com observação do espaço e das condições objetivas e subjetivas de vida do(a) aluno(a); e apresenta- ção e relato da entrevista para os tutores no encontro de fechamento do módulo. A seguir, apresentamos a narrativa de um dos cursistas com as reflexões críticas acerca da realidade: "Quando eu estava pensando em fazer a pesquisa de campo, eu não tive dúvidas quanto ao aluno que eu iria visitar. Queria muito conhecer a família desse menino para entender por que ele era tão terrível em sala de aula. Eu sempre imaginava que ele estava ali na escola apenas para garantir a frequência e não perder o Bolsa Família. Sempre achei que ele não queria nada na vida. Então era o momento de eu confirmar minha tese. Hoje eu me envergonho de todas as coisas que fiz, pensei e disse com aquele menino. Hoje eu o vejo como um sobrevivente de uma tragédia. Todos os dias penso nele. Em como ele está, se já comeu, se está na rua. Hoje eu sei que, com a vida que ele leva, de tanta miséria material e afetiva, dificilmente a escola teria algum

valor. Ele precisa sobreviver" (relato de um cursista durante a atividade de reflexão-ação realizada em 21/11/2015).

As significações expressas na narrativa não são prerrogativa apenas des- se cursista. Muitos chegaram ao curso de especialização reproduzindo esses mesmos discursos, afetados pelo que grande parte da sociedade idealiza em relação aos alunos e alunas pobres que frequentam as escolas públi- cas do nosso estado. A grande maioria das crianças, adolescentes e jovens assistidos pelo Bolsa Família carrega o estigma de "não quererem nada", de "estarem na escola apenas para não serem penalizados com a perda do beneficio". Essas significações estão no social, são partilhadas e reprodu- zidas socialmente, por isso formam singularidades e, portanto, modos de agir dessas singularidades, confirmando o pensamento marxista de que os homens são a unidade na diversidade, a síntese das relações que encarnam (MARX, 2011).

Por outro lado, a experiência relatada também põe em evidência que é por meio das experiências sociais que podemos constituir movimentos de transformação do modo de significar essas realidades. Saviani (2004) chama nossa atenção para o fato de que, em se tratando de educação, precisamos ser capazes de sair da realidade empírica e penetrar a realidade concreta. Foi exatamente esse movimento que o cursista realizou, isto é, ele conse- guiu alterar sua visão da realidade, porque deixou de olhar apenas o aluno empírico (sala de aula) e conheceu o aluno concreto (vida real). Sendo assim, tal experiência social só reforça a necessidade de investirmos em mais ações dessa natureza, para que tenhamos uma mudança efetiva da realidade.

Com relação à análise de aproveitamento dos cursistas no decorrer dos módulos e das atividades de reflexão-ação, alguns excertos a seguir trazem significações dos tutores sobre o movimento de transformação das significa- ções produzidas pelo grupo:

Os cursistas consideram que o curso ajuda a compreender na prática como ocorrem os fenômenos de exclusão, como o viés cultural, eco- nômico, político e social também incidem fortemente no processo educacional. A apresentação dos resultados de pesquisa durante os encontros presenciais do curso são momentos também de intensa troca de saberes e experiências, em que se produz um amplo debate, se pode avançar intelectualmente no sentido da formação dos próprios cursistas enquanto profissionais conscientes do seu papel transformador na socie- dade (Tutora Léia Soares).

A principal crítica que ouvia dos cursistas era com relação aos progra- mas de transferência de renda do governo federal, sobretudo o Bolsa Família, alguns inclusive o denominavam de "Bolsa Preguiça". Após a atividade-reflexão do Módulo I, percebi certas mudanças no pensamento dos cursistas quanto a esse tipo de programa. Essa turma é composta basicamente de professores da rede pública de ensino e de assistentes sociais. Foi interessante ver que os professores da rede pública de ensino é quem detinham esse típico pensamento e que com o decorrer das leituras e discussões estão mudando suas opiniões, tanto em relação à pobreza, aos programas, ao papel da educação etc. (Tutora Tarianna). Os relatos das tutoras fortalece a convicção de que estamos no caminho certo ao propormos movimentos de reflexão crítica acerca da realidade. Uma reflexão que não pode se dar no vazio, mas mediada pela realidade que envolve aspectos da vida das pessoas as quais historicamente são mar- cadas pela exclusão social, ocasionada pela miséria que tira dessas pessoas qualquer possibilidade de existência social, cultural, afetiva, enfim, humana.

De modo geral, avaliamos que o curso de especialização em Educação, Pobreza e Desigualdade Social, por meio das atividades formativas, possibi- litou alguns movimentos:

1 – Os cursistas foram provocados a refletir sobre as concepções que norteiam o tratamento dado a crianças e jovens nas escolas brasileiras, so- bre os estereótipos constituídos acerca do "ser pobre" e de depender de programas sociais como o Bolsa Família. e, ainda, passaram a compreender quais os determinantes históricos que levam a sociedade a acreditar na na- turalização da pobreza e da desigualdade social.

2 – Eles reconheceram que o curso foi de suma importância, pois tratou de questões que ajudaram no enfrentamento das dificuldades e dos precon- ceitos instalados nas instituições sociais, sobretudo em relação aos pobres.

3 – O conteúdo dos módulos, as discussões dos fóruns e as atividades de reflexão-ação constituíram-se como instrumentos de aprendizagem que não só possibilitam o ganho de conhecimento, mas o desejo de intervir na realidade. Isso foi observado nos relatos dos cursistas, no modo como se posicionaram e na busca de alternativas possíveis de transformar a realidade social.

4 – O curso estimulou a reflexão crítica dos cursistas, pois estes passaram a fazer relação do que estavam aprendendo com a sua própria história de vida. Alunos que durante sua infância e juventude vivenciaram a pobreza, por meio das reflexões e dos debates propostos no curso de especialização,

foram levados a compreender o que viveram e como isso acabou determi- nando suas escolhas e trajetórias de vida profissional.

5 – Muitos cursistas relataram histórias de suas próprias vidas, de como viam a pobreza antes e como eles viam ao final do curso. Se antes conside- ravam a pobreza somente como um problema individualizado e natural, de responsabilidade do sujeito, hoje compreendem sua natureza histórica e sua relação com a estrutura social. Se antes reproduziam discursos moralistas sem nenhum fundamento teórico, como "as pessoas são pobres porque querem" ou "esses programas só servem para criar preguiçosos", hoje assu- mem um discurso mais politizado e mais consciente.

6 – Os cursistas reconheceram ainda que o curso EPDS é uma ferramenta educacional também em Educação em Direitos Humanos, uma vez que edu- ca para o desenvolvimento de atitudes cidadãs e, consequentemente, para a transformação da realidade de pessoas que vivem em situação de pobreza e extrema pobreza, com enfoque na Educação como meio de emancipação e empoderamento das famílias vítimas de injustiça social.

Todos esses ganhos revelam transformações no modo de compreender, sentir e agir na realidade. O que os cursistas demonstram é que produzi- ram novas significações sociais sobre a relação entre o social e o individual, rompendo com visões simplistas, naturalizantes e acríticas. Esse processo é identificado por Vigotski (1996) como perejivânies; melhor dizendo, esses cursistas vivenciaram situações sociais de desenvolvimento que potencial- mente podem alterar sua relação com a realidade. Trazendo isso para a edu- cação, é possível que esses profissionais desenvolvam práticas educativas inclusivas, uma vez que romperam com uma visão de mundo do qual não se viam como parte, portanto, não se viam como responsáveis pela produção dessa realidade.

De acordo com Vigotski (1996, 2009), perejivânies são processos de trans- formação que resultam da nossa relação com os outros, com situações de vida. São muito potentes, porque alteram nossa cognição e nossa emoção. Marques e Carvalho (2017) analisam como as perejivânies são produzidas na mediação com o social e por que são tão potentes:

A relação do homem com o mundo e com os outros é sempre uma rela- ção afetiva produtora de sentido. Os sentidos são produzidos em virtude dos afetos constituídos nas vivências de cada ser humano. Entendemos com isso que são os afetos que colocam os indivíduos em situação de atividade ou de passividade, porque são os afetos que determinam a

qualidade do sentido produzido pelo indivíduo na relação com a rea- lidade. Queremos dizer que enquanto para uns uma vivência pode ser sentida de forma positiva, para outros a mesma situação pode ser vivida de forma negativa. Isso acontece porque cada pessoa produz um sentido para aquilo que vive, cada pessoa sente de forma única e constrói sua relação com dado fenômeno de forma única, mas sempre mediado pelo social e pelo significado historicamente constituído (MARQUES; CARVA- LHO, 2017, p. 7, grifos das autoras).

Consideramos que situações formativas nas quais vivenciamos coleti- vamente momentos de aprendizagem e crescimento profissional, como foi proporcionado no curso de especialização em Educação, Pobreza e Desi- gualdade Social desenvolvido na UFPI, são sempre propícias para a produ- ção de novas perejivânies, porque alteram nossos sentidos. Isso pode ser percebido no relato a seguir:

É incrível como esse curso mudou minha visão. Eu sabia... Já tinha visto alguma coisa na universidade sobre isso... de que a pobreza interfere na aprendizagem... Mas, pra mim, tudo isso era "balela"... Pra mim, o menino não tinha interesse, e a culpa era da família. Quando eu comecei a estudar os módulos, comecei a ver as coisas de forma diferente e daí fui fazer a pesquisa da atividade de reflexão-ação... Escolhi um desses meninos que a gente considera que são os piores... Foi aquele choque! Eu vi que estava errada. Meu Deus, eu fiquei com tanta vergonha! (Relato de uma cursista no encontro presencial em fevereiro de 2016, Módulo II). Foram muitas as experiências desenvolvidas no percurso desse projeto de formação continuada. Experiências que envolveram vivências de aprendi- zagem ao longo de cinco módulos constituídos de temáticas que articularam a discussão acerca da relação entre pobreza, desigualdade social e temas diversos que serviram para confirmar a verdade de que o preconceito com que a sociedade lida com a realidade da pobreza e da desigualdade social ainda é muito grande, mas que também é possível alterar essa realidade.

É importante ressaltar que no âmbito do curso de especialização foi pos- sível a realização de duas pesquisas envolvendo os cursistas matriculados. Essas pesquisas foram realizadas sob a responsabilidade das professoras pesquisadoras Josélia Saraiva e Silva e Norma Patricya Lopes Soares. As pesquisadoras relataram que os objetivos das pesquisas eram analisar o conteúdo e a estrutura da representação social de pobreza partilhada pelos professores da Educação Básica das escolas estaduais que atendem alunos

inscritos no Programa Bolsa Família; identificar os professores e as escolas estaduais de Educação Básica que atendem alunos inscritos no programa Bolsa Família; conhecer a representação de pobreza e assistência social articulada pelos professores da Educação Básica matriculados no curso de especialização em Educação, Pobreza e Desigualdade Social (lato sensu) ofertado pela Universidade Federal do Piauí.

Como metodologia, as pesquisadoras escolheram a realização de pes- quisa bibliográfica em livros, revistas e na internet para coletar dados acerca do tema educação e pobreza; aplicação de questionários socioeconômicos a 132 cursistas do curso de especialização em Educação, Pobreza e Desi- gualdade Social; aplicação de Teste de Associação Livre de Palavras (Talp), no início do curso, a 132 cursistas e, no final do curso, a 63 concludentes; realização de tratamento de dados utilizando software Excel e Evoc, este último específico para tratar dados do Talp; análise de dados utilizando a técnica de análise categorial de conteúdo.

As pesquisadoras apontaram como dificuldades para realização da pes- quisa o fato de o curso de especialização ter sido realizado na modalidade de educação a distância, o que dificultou o acesso dos pesquisadores aos sujeitos da investigação. Outro ponto a se destacar diz respeito ao curto espaço de tempo para explorar os dados coletados de maneira mais apro- fundada. As pesquisadoras ressaltaram a relevância da pesquisa, a princípio pelo tema, que consideraram muito importante para a reflexão dos envol- vidos na tarefa de educar as camadas populares, e, também, pela possi- bilidade de associação à execução de uma investigação com a realização de um processo formativo de professores. Como principais resultados da pesquisa, é possível inferir pelo relatório apresentado pelas pesquisado- ras que estes foram divididos em quatro eixos: 1) Perfil socioprofissional de alunos/as da especialização Educação, Pobreza e Desigualdade Social, da Universidade Federal do Piauí, polos de Floriano, Parnaíba e Teresina; 2) Professores de escolas atendidas pelo Programa Bolsa Família: caracte- rísticas socioeconômicas e profissionais; 3) Representação social de criança pobre entre professores da Educação Básica no estado do Piauí; 4) Pobreza e representações sociais: alinhavando formação continuada e trabalho pro- fissional na assistência social. A seguir, apresentamos parte dos resultados da pesquisa que tratou de evidenciar as representações sociais da pobreza e suas implicações na vida dos atores que dela participaram.

Um recorte da representação social de criança pobre entre

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