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O novo formato do processo negocial entre o Governo e a RENAMO

No documento Forças armadas na segurança interna (páginas 180-187)

Secção V Síntese comparativa

SISTEMA POLÍTICO MOÇAMBICANO

4. O novo formato do processo negocial entre o Governo e a RENAMO

No dia 3 de fevereiro de 2017, o Presidente da República, na cerimónia das festividades do dia dos heróis nacionais, declarou o fim das negociações com RENAMO, no formato que vinham sendo levadas a cabo desde 2013. Pois, era um grupo imenso constituído por doze membros, mediadores internacionais e observadores nacionais e internacionais. Portanto, tratou-se de abdicar daquele grupo mais vasto, que não produzia resultados concretos para a Paz.

A 6 de Fevereiro de 2017, o Presidente da República anunciou um novo formato de negociações. O novo formato tinha sido acordado entre o Presidente da República e o Líder da RENAMO, do qual constava a criação de duas comissões de trabalho, compostas cada por quatro membros.

A criação das duas comissões teve como base as questões de fundo que dividiam o Governo e a RENAMO. Assim, uma das questões de fundo eram os aspectos da governação, partilha do poder, como sempre pretendeu a RENAMO e a segunda questão ligava-se ao clamor da RENAMO de integrar os seus homens armados nas Forças de Defesa e Segurança.

Para o primeiro tema, criou-se a comissão de descentralização203; e para o segundo tema a comissão dos assuntos militares.

Ao longo do ano de 2017, o Presidente da República, no seu empenho pela Paz, deslocou-se por várias vezes à Serra da Gorongosa ao encontro do Líder da RENAMO para acertar vários aspectos do processo negocial, aspecto bastante saudado ao nível da comunidade moçambicana e internacional, o que constituía a demonstração inequívoca de alcance da paz.

203

A comissão de descentralização era composta por Albano Macie, autor desta tese de doutoramento, e Eduardo Chiziane, ambos Docente da Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane.

Com o curso do processo negocial, o Líder da RENAMO declarou indefinidamente a cessação das incursões militares e ataques a pessoas e bens.

Um ano depois, a 7 de fevereiro, o Presidente da República, através de uma comunicação à Nação, anunciou os consensos alcançados no âmbito da descentralização, depositando uma Proposta de Lei de Revisão Pontual da Constituição à Assembleia da República.

No dia 3 de maio de 2018, o Líder da RENAMO, Afonso Dlhakama, perdeu a vida na Serra da Gorongosa, vítima de doença.

O País, em particular, o Presidente Nyusi, Presidente da República, perdia um actor fundamental no processo negocial e começavam a pairar momentos de incertezas, pois o texto constitucional ainda não tinha sido aprovado pela Assembleia da República.

No funeral do Líder da RENAMO, o Presidente da República mostrou-se aberto para continuar a dialogar com a nova liderança da RENAMO. Com efeito, fruto dessa abertura, a 23 de maio de 2018, foi aprovada pelo Parlamento a Proposta de Lei de Revisão da Constituição, incorporando a nova filosofia da descentralização.

Em linhas gerais, a descentralização acordada assentou nos seguintes objectivos fundamentais:

i) Aprofundamento da unidade nacional e da democracia; ii) Reforço da boa governação;

iii) Promoção do empoderamento local; iv) Redução da pobreza;

v) Garantir a paz, unidade nacional e integridade territorial da República de Moçambique a fim de salvaguardar o bem-estar do Povo Moçambicano.

Os objectivos traçados permitiram melhor delimitar os contornos da descentralização. Em primeiro lugar, era preciso tirar fora da reflexão todas as matérias que não podiam ser objecto de descentralização, entre elas, as que

dizem respeito à soberania do Estado; que se referem à definição e execução da política nacional e outras que permitiriam consolidar o Estado Unitário e evitar os desequilíbrios regionais. Assim, não podiam ser objecto de debate o seguinte:

- O princípio da Unidade Nacional, Republicano e do Estado Unitário; - O princípio segundo o qual Moçambique é um Estado soberano, uno, indivisível e inalienável;

– O princípio de prevalência do interesse nacional e da realização da política unitária do Estado;

– A reserva aos órgãos centrais das funções de soberania, a normação de matérias de âmbito da lei e a definição de políticas nacionais;

– A reserva exclusiva aos órgãos centrais das funções de representação do Estado;

- A realização da política unitária do Estado; - A definição e organização do território;

- A defesa nacional, a ordem pública, a fiscalização das fronteiras, a emissão de moeda;

- As relações diplomáticas; - Os recursos minerais e energia; - A criação e alteração dos impostos;

- Os recursos naturais situados no solo e no subsolo, nas águas interiores, no mar territorial, na plataforma continental e na zona exclusiva.

Assim, a matéria objecto de descentralização ficou circunscrita no seguinte:

- Agricultura, pescas, pecuária, silvicultura, segurança alimentar e nutricional;

- Gestão de terra;

- Transportes públicos, na área não atribuída às autarquias;

- Gestão e protecção do meio ambiente, florestas, fauna bravia e áreas de conservação;

- Saúde no âmbito de cuidados primários;

- Educação, no âmbito do ensino primário, do ensino geral e de formação técnico profissional básica; turismo, folclore, artesanato e feiras locais;

- Hotelaria, não podendo ultrapassar o nível de três estrelas; - Promoção do investimento local;

- Água e saneamento; - Indústria e comércio;

- Estradas e pontes, que correspondam ao interesse local, provincial e distrital;

- Prevenção e combate às calamidades naturais; - Promoção do desenvolvimento local;

- Planeamento e ordenamento territorial; - Desenvolvimento rural e comunitário.

Sobre estas matérias, desenvolveu-se o princípio de subsidiariedade entre os órgãos centrais e os órgãos descentralizados e do gradualismo na concessão de poderes ao nível local.

O princípio da subsidiariedade consistiu no que nos domínios em que os órgãos descentralizados não têm competência exclusiva, o princípio da subsidiariedade visa proteger a capacidade de decisão, intervenção e acção do Estado e legitimar a intervenção do Governo, se os objectivos de uma acção não puderem ser suficientemente alcançados pelos órgãos descentralizados.

O princípio da subsidiariedade serve também de critério regulador do exercício das competências não exclusivas do Estado. Assim, exclui a intervenção do Estado, através do Governo e seus órgãos de representação local, quando uma matéria pode ser regulamentada de modo eficaz pelos órgãos de governação descentralizada, quer através das assembleias provinciais, distritais, quer através dos próprios órgãos executivos criados no âmbito da descentralização.

O significado e a finalidade do princípio da subsidiariedade residem na concessão de um determinado grau de autonomia aos órgãos descentralizados, nomeadamente, a administrativa, financeira e patrimonial. Isto implica, portanto, uma repartição clara de atribuições e funções entre diversos níveis de poder, princípio que constituiu a base institucional da legislação sobre a descentralização.

Através da concretização das autonomias administrativas, poderão ser adstritos às assembleias provinciais e distritais poderes regulamentares limitados pela Constituição, leis e regulamentos centrais.

O princípio do gradualismo significou o seguinte:

 As atribuições e competências serão reconhecidas ou transferidas de forma gradual aos órgãos de governação descentralizada;

 Um conjunto de matérias (decisões) a cargo dos órgãos descentralizados, porque sensível, será submetido à aprovação pelos órgãos centrais de tutela, para que a sua aplicação tenha eficácia;

 A tutela administrativa começará por ser um pouco mais intensa, devendo abrandar com o tempo e com a experiência adquirida no processo de governação descentralizada.

Delimitadas as questões de fundo, criaram-se os seguintes órgãos para o exercício de funções descentralizadas:

- Um órgão executivo provincial, dirigido por um Governador de Província que responde politicamente perante a assembleia provincial, sendo o cabeça de lista do partido político, coligação de partidos políticos ou grupos de cidadãos eleitores que obtiver a maioria de votos para a assembleia provincial;

- Ao nível do distrito, a descentralização implicou a necessidade de criação de uma assembleia distrital, numa perspectiva do gradualismo com

prazos claramente definidos. O executivo distrital passará, em 2024, a ser dirigido por um Administrador de Distrito que responde politicamente perante a assembleia distrital, sendo o cabeça de lista do partido político, coligação de partidos políticos ou grupos de cidadãos eleitores que obtiver a maioria de votos para a assembleia provincial;

- Ao nível autárquico, órgãos já existentes, o presidente da autarquia, ao invés de ser eleito directamente como ocorria até então, passou a ser o cabeça de lista do partido político, coligação de partidos políticos ou grupos de cidadãos eleitores que obtiver a maioria de votos para a assembleia autárquica;

- Os órgãos executivos da província, do distrito e das autarquias locais podem ser demitidos pelas respectivas assembleias, por motivos políticos, ou por violação da Constituição e demais leis.

- O Governador e o Administrador podem ser demitidos pelo Presidente da República, quando violarem gravemente a Constituição ou cometerem infracções no âmbito da gestão financeira.

- As assembleias provinciais, distritais e autárquicas também podem ser dissolvidas pelo Governo, como órgão de tutela, nos casos de violação grave da Constituição, das leis ou de impedirem a prossecução das atribuições dos órgãos.

- Quer a demissão dos órgãos executivos, quer a dissolução das assembleias provinciais, distritais e autárquicas são objecto de fiscalização jurisdicional pelo Conselho Constitucional.

Em relação aos assuntos militares, as negociações decorrem ainda num bom ritmo, com vista a integração social dos homens armados da RENAMO. Quanto à descentralização segue-se o processo de materialização da Constituição.

Em conclusão, este espaço demonstrou o longo processo político que Moçambique vive desde a assinatura dos AGP, processo de construção do Estado de Direito Democrático com as vicissitudes que lhe são inerentes. O processo político moçambicano gira fundamentalmente em torno de dois partidos políticos dominantes, a FRELIMO, no poder, e a RENAMO, na oposição, tendo como arma de pressão do partido no poder, os seus homens armados, o que torna morta

a letra e o espírito do artigo 77 da Constituição, segundo o qual: ―É vedado aos

partidos políticos preconizar ou recorrer à violência para alterar a ordem política e social do país”.

Secção II

O funcionamento do sistema de governo moçambicano

No documento Forças armadas na segurança interna (páginas 180-187)