• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3. BIOTECNOLOGIA X BIOÉTICA: UMA APROXIMAÇÃO

3.1. O SURGIMENTO DA BIOÉTICA

3.1.3. O Pluralismo ético

Como visto anteriormente, a Bioética, em que pese alguns dogmatismos, tem se desenvolvido a partir de diversas contribuições diferentes344. Neste sentido, a característica plural vem à tona. Em decorrência do pluralismo ético moderno contemporâneo, apresentam-se dificuldades de se estabelecer normas jurídicas, objetivas, de bioética. Para H. Tristan Engelhardt Jr345, “o pensamento ético tradicional ainda não se apercebeu das profundas mudanças nos códigos de valores em nossa sociedade”. Para este autor, a “moralidade secular” atual (conceito utilizado por ele, para designar a fragmentação das perspectivas éticas modernas), é fruto de perdas de fé e mudanças na ética e na convicção ocidental, o que tem ocorrido, a partir da heresia de Martinho Lutero. “Já não se podia aspirar a um ponto de vista moral único, baseado na fé;

sociedade, principalmente aqueles religiosos e mais dogmáticos, têm traçado uma visão perturbadora, pessimista e apocalíptica da relação entre a ciência e a vida humana neste final de século. Um dos documentos mais respeitáveis surgidos nos últimos anos e que contempla a discussão bioética – a Encíclica

Evangelium Vitae, do Papa João Paulo II – desenvolve esta linha de pensamento.” Este autor esclarece

ainda que atualmente têm aflorado dois tipos radicalmente diversos de “bioética” (a que denomina “endeusamento” versus “demonização” da ciência): “De um lado, existe uma radical bioética racional e

justificativa através da qual ‘tudo aquilo que pode ser feito, deve ser feito’. No extremo oposto, cresce uma tendência conservadora baseada no medo de que nosso futuro seja invadido por tecnologias ameaçadoras,

levando seus defensores à procura de um culpado, erroneamente identificado na matriz das novas técnicas, na própria ciência.” (In. GARRAFA, Volnei.Bioética e Ciência – Até onde avançar sem agredir, p. 104-5).

344Uma das contribuições vem sem dúvida da religião. No caso brasileiro e latino, em geral esta influência

se dá por vias do cristianismo, mais precisamente, por meio da Igreja Católica. Em que pese aspectos muitas vezes dogmáticos, cumpre lembrar que, em alguns períodos históricos, a Igreja Católica optou, sim, em favor de imensos setores social e economicamente excluídos. Neste sentido parece ser o “alerta” de Márcio Fabri dos Anjos: “Por outro lado, quem se importa com os pobres, os mais fracos e necessitados? A superação das desigualdades sociais poderia talvez ser resolvida pela supressão de um lado dos desiguais. Não faltam propostas mais ou menos explícitas neste sentido. Por isso, uma das contribuições mais vigorosas da Teologia para a bioética é certamente o desenvolvimento de uma mística pela qual o semelhante é visto com amor. Então, as desigualdades se tornam um clamor. A Bioética recupera sua capacidade de indignação diante dos contrastes que estamos habituados a ver sem solução. O amor, que a impulsiona, busca eficácia de transformação social. E a Bioética se faz com razão e coração.” (In. ANJOS, Márcio Fabri dos.Bioética nas desigualdades sociais. In. GARRAFA, Volnei ; COSTA, Sérgio Ibiapina F; OSELKA, Gabriel. (orgs.)A Bioética no século XXI, p. 63).

345ENGELHARDT, Jr. H. Tristan.Fundamentos da Bioética. São Paulo: Loyola, 1998. Este autor, médico

e bioeticista de Houston/EUA, propõem que a Bioética funciona como uma lógica do pluralismo, como um instrumento para a negociação pacífica das instituições morais.

governado por uma única autoridade moral-religiosa suprema, a Igreja”346. OIluminismo e posteriormente o Romantismo, tentaram substituir a moralidade religiosa, por uma moralidade ancorada naRazão.

Podemos perceber, no atual estágio da modernidade, que o projeto moderno de uniformização e padronização moral da sociedade, por meio do argumento racional, não logrou sucesso. A filosofia moderna não foi capaz de colmatar as lacunas deixadas pelo colapso da hegemonia do pensamento cristão ocidental. Ao contrário de uma filosofia única universal, acabou criando uma série de filosofias e éticas concorrentes. Assim a característica de nosso tempo é a diversidade moral.

Parece que tal pluralismo moral é de fato irreversível nada mais restando do que aceitar a convivência pacífica dos diferentes grupos ou comunidades morais, orientando-se sob o princípio da tolerância. A mesma tolerância que outrora serviu de instrumento para celebrar a paz entre crentes de distintas denominações (ordens) religiosas, é agora chamada para celebrar a convivência entre distintas comunidades morais.347

Tristam Engelhardt criou dois conceitos a respeito desta temática:

Estranhos morais são pessoas que não compartilham premissas ou regras morais de evidência e inferência suficientes para resolver as controvérsias morais por meio de uma sadia argumentação racional, ou não têm um compromisso comum com os indivíduos e instituições dotados de autoridade para resolvê-las [...]. Amigos morais são aqueles que compartilham uma moralidade essencial, de maneira que podem resolver as controvérsias morais por meio de um argumento moral sadio recorrendo a uma autoridade com reconhecida jurisdição. (grifo nosso).348

Embora tenha se constituído em quase um ícone do pluralismo bioético, Tristan Engelhardt, também recebe críticas consistentes, que merecem ser analisadas349. Uma delas provém de Camilo Tale:

346ENGELHARDT, Jr. H. Tristan.Fundamentos da Bioética, p. 31-2. 347ENGELHARDT, Jr. H. Tristam.Fundamentos da Bioética, p.32. 348ENGELHARDT, Jr. H. Tristam.Fundamentos da Bioética, p.32.

349 Citamos também uma interessante reflexão feita por Débora Diniz, referenciada por Volnei Garrafa, ao

prefaciar a edição brasileira ,Fundamentos de Bioética, de Engelhardt: “A pluralidade existe, é boa e deve ser presevada. O conflito, no entanto, surge ao aparecerem as diferenças. O que o gera é a intolerância diante da diferença. Ou, nas palavras de Engelhardt, o que gera o conflito é a intolerância diante do

Si es imposible estatuir algo que sea aceptado por todos, como reconoce Engelhardt, entonces necesariamente se han de imponer reglas que unos aprueban y otros no. Así, por ej. O bien la ley debe permitir que los padres eliminen a sus hijos antes del nacimiento, o bien la ley debe prohibir y castigar esa acción. Hay quienes aprueban y defienden lo primero y quienes aprueban y defienden lo segundo. Qué acuerdo puede lograrse al respecto? Es forzoso que, cualquiera de estas alternativas dicotómicas que se siga, será consentida con respecto a las ideas de unos y será impuesta con respecto a las ideas de los otros.350

Um dos marcos históricos da bioética, talvez o maior deles, delineia-se no fim da primeira metade do século XX, quando veio ao conhecimento global, as intervenções desumanas de “médicos e pesquisadores” alemães durante o regime nazista351. O

exercício da liberdade; no seu entendimento, a solução para o conflito é simples: a possibilidade de manutenção da diferença por meio da tolerância e da liberdade. Sua preocupação não está no resultado do conflito, mas naquilo que o gera. Este modelo de pluralidade/conflito/tolerância/liberdade não consegue esconder as raízes anarquistas do autor; e é exatamente neste ponto que ele mais provoca repulsas. Com um coerência lógica impecável (tal qual um bom positivista), afirma, por exemplo [...], que a compra e venda de órgãos é legítima. O exercício da liberdade justifica comportamentos considerados estranhos para um padrão comportamental posto como referência moral. Apesar de este ser um dos momentos mais sublimes da argumentação de Engelhardt, é também o mais frágil, pois não consegue lidar com os jogos de poder que limitam o exercício do valor ‘liberdade’. A liberdade não é um dom inerente aos seres humanos nem estes sabem utilizá-la para além dos constrangimentos sociais. Engelhardt parece ignorar propositadamente Foucault. Mais ainda, Nietzsche. Esta idéia de liberdade isenta dos limites sociais para exercê-la é impossível de ser transposta para o mundo real; no entanto, enquanto modelo lógico para apreensão do mundo real, é genial. Seu objetivo silencioso durante grande parte da argumentação constitui uma idéia profundamente original de liberdade. Em alguma medida, é prudente salientar, o modelo teórico que adotou o defende da crítica sobre a fragilidade de sua transposição para o mundo concreto, uma vez que ele não fala do indivíduo (ao menos neste livro), mas de liberdade da/na diferença, diferença esta basicamente sustentada por indivíduos inseridos dentro de grupos sociais, como no exemplo clássico dos Testemunhas de Jeová, que não aceitam transfusões sangüíneas.” (In. ENGELHARDT, Jr. H. T. Fundamentos da

Bioética, p. 9-10).

350 In. TALE, Camilo. Examen de los principios de la bioética contemporánea predominante. Buenos

Aires: Universidad Católica Argentina - Sapientia, 1998, p. 437. Este mesmo autor critica ainda a idéia de “ética mínima” defendida por Engelhardt (“the minimum notion of ethics as a means for peaceable negotiating moral disputes”). Para Camilo Tale, há um caráter preconceituoso “nesta tesitura, pues asume sin fundamento la premisa de que debe permitirse la liberdad de las acciones y prohibirse sólo ciertos extremos, por lo cual queda descalificada a la hora de desarrollar una disciplina de conocimiento y de buscar con seriedad las elecciones éticamente debidas” (In. TALE, Camilo.Examen de los principios de la

bioética contemporánea predominante, p. 438).

351Em que pese a avaliação moral e bioética, podemos constatar aqui também a presença da secularização

moderna. De fato, Hitler causou escândalos, porque levou às últimas conseqüências o processo de secularização e perda de sentido, decorrente da ciência moderna. Diversos experimentos e “pesquisas” foram feitas sob o regime nazista, incluindo também os seres humanos (no caso, julgados, “inferiores”).

julgamento de Nuremberg, “revelou ao mundo os abusos realizados em nome da ciência e da tecnologia contra a humanidade nos campos de concentração de prisioneiros”.352

Contudo, apesar do alerta dado pelos abusos do regime nazista, em nome da ciência e da tecnologia, o ritmo do desenvolvimento científico só acelerou.

Para Reinaldo Pereira e Silva, o avanço tecnocientífico “continua favorecendo uma desarmonia ainda maior entre os seus novos implementos e os interesses do homem em situação de vulnerabilidade”. Para este autor “os novos problemas éticos do século XX surgem a partir do momento em que a medicina, então centrada no cuidado para com o paciente, se envolve visceralmente com a tecnologia biomédica, isto é, com a cura a qualquer preço, enquanto conhecimento aplicado”.353

Para Jean Bernard, um dos principais estudiosos de bioética, duas revoluções são as reais responsáveis pelo advento da abordagem bioética: a revolução biológica que assegura ao homem (ou está em vias de lhe assegurar) o domínio sobre a reprodução, sobre a hereditariedade e sobre o sistema nervoso, e a revolução terapêutica, que diz respeito à aplicação dos novos implementos tecnocientíficos nas esferas da prevenção, do tratamento e da pesquisa clínica.354

Ainda no que respeita a um necessário pluralismo bioético podemos destacar o posicionamento da Associação Internacional de Bioética (IAB-International Association of Bioethics), criada em 1992, em Amsterdã, por iniciativa de Peter Singer e Daniel Wikler. Esta entidade, que visa propiciar o avanço da bioética em todo o mundo, conglomerando diversos países, adota uma postura marcadamente pluralista e tolerante. Apesar de ser composta , majoritariamente, por países ocidentais (inclusive os EUA), “a IAB não endossa nenhuma posição específica na área da Bioética, mas visa tão-somente promover a total troca de opiniões sob todas as perspectivas. Não há posição oficial da IAG em relação a nenhum assunto, exceto a tolerância diante da diversidade.”355

352 Assim, em termos positivistas – dogmáticos, pode-se “falar que a protobioética tem como marco a

promulgação do Código de Nuremberg (1947)”. (In. SILVA, Reinaldo Pereira e.Reflexões éticas sobre o

estatuto da vida. p.196).

353SILVA, Reinaldo Pereira e.Reflexões éticas sobre o estatuto da vida. p.195.

354 Cf. SILVA, Reinaldo Pereira e. Reflexões éticas sobre o estatuto da vida. p.196. Sobre isto ver Jean

Bernard. (De la biologie à l´éthique). Da biologia à ética. Trad. De Regina Castilho. Campinas: Psy II, 1994, p.29.

355Estas são palavras de Alastair V. Campbell, professor de ética na Medicina da Universidade de Bristol e

presidente da IAB (International Association of Bioethics). In. Uma visão internacional da bioética. In. GARRAFA, Volnei ; COSTA, Sérgio Ibiapina F; OSELKA, Gabriel (orgs.).A Bioética no século XXI,

3.2. UMA APROXIMAÇÃO BIOÉTICA - DIREITOS HUMANOS