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CAPÍTULO 1. DIREITOS HUMANOS, MODERNIDADE E ESTADO DE

1.3. MODERNIDADE: ESTADO DE DIREITO E DIREITOS HUMANOS

1.3.2. Os Direitos Humanos sob um breve olhar a partir da “exterioridade”

O tema da dignidade humana costuma gerar grandes polêmicas. Uma delas é o questionamento de quem está habilitado e legitimado a “impor” padrões universais do que seja dignidade humana e conseqüentemente direitos humanos

Podemos nos questionar, mais uma vez, a título de problematização do modelo ocidental de direitos humanos: quais têm sido as alternativas propostas face a este modelo único “ocidental”, historicamente colocado? Não corremos o risco de cair no mesmo erro do passado, quando um modelo foi implantado ou imposto de forma a se fazer acreditar único, sendo, no caso brasileiro, defendido pelas elites coloniais e pelas elites locais? Passados 500 anos de imposição do “modelo único” legalista, quais propostas alternativas apresentam-se, para se falar apenas do que diz respeito aos direitos humanos fundamentais?

Constata-se, historicamente, que as violações aos direitos humanos tiveram lugar desde o início da colonização brasileira. As vítimas ou alvos destas violações, eram, no início os povos negros e indígenas, aos quais se somariam mais tarde, a já etnicamente misturada população brasileira (as chamadas camadas ou classes populares). Direitos humanos só existiam realmente para os senhores e grandes proprietários, brancos europeus ou de descendência européia. Na verdade, o que ocorreu na “conquista” do Brasil foi uma verdadeira “conquista” da vida de seus povos. Vale aqui citar o pensamento de D. Pedro Casaldáliga:

A conquista foi simultaneamente político-econômica e espiritual-cristã (ou católica, mais especificamente). Foram invadidas e conquistadas ao mesmo

145 Novamente aparece a discussão em torno do desencantamento e secularização modernos. Entender a

fundamentação dos direitos humanos, como de ordem racional, tem implicações importantes, em face do desafios colocados pela biotecnologia. Esta nova esfera científica (racionalizante e “desencantadora”) pode levar também a uma perda de sentido na própria essência da dignidade humana, especialmente, a dignidade humana fundada em bases canônicas e religiosas (não rara em matéria de direitos humanos e bioética). Este tema será melhor tratado no quarto capítulo deste trabalho. (Sobre isto ver. PIERUCCI, Antônio Flávio.O

tempo as terras dos povos indígenas e as entranhas das mesmas, as florestas e sua fauna, as águas e o ar, os mitos, os corpos, as almas, as vidas, a vida.146 Pensar na possibilidade de reconhecer a dignidade e autonomia dos supracitados era algo inimaginável, pois desde o início a colonização foi pautada pela ignorância de um direito original, costumeiro e pela implantação de um sistema normativo que garantisse a expansão lusitana. A consolidação desse ordenamento formalista e dogmático fundou-se inicialmente no idealismo jusnaturalista (contando com o apoio da igreja católica) e, posteriormente, na exegese positivista.

Quem sabe um conceito com bases universais sobre a espécie humana não teria sido mais eficaz na proteção de negros e índios à época da colonização. De certa forma, estas experiências históricas, assim como as práticas eugênicas no decorrer do século XX, têm sua importância na medida em que não sejam mais repetidas.

A historiografia oficial desconhecia completamente a existência do direito das várias nações indígenas, antes mesmo da colonização, bem como do pluralismo jurídico comunitário dos quilombos e reduções jesuíticas. Em relação a isto proclama Antônio Carlos Wolkmer:

As raízes e a evolução das instituições jurídicas só poderão realmente ser compreendidas na dinâmica das contradições e do processo de relações recíprocas, quer sob o reflexo de um passado colonial patrimonialista e escravocrata, quer sob o impacto presente da dominação social de uma elite agrária, da hegemonia ideológica de um liberalismo conservador e da submissão econômica aos Estados Centrais do capitalismo avançado.147 Esta mesma herança colonial lançou bases profundas sobre a cultura nacional influenciando o desenvolvimento posterior da sociedade brasileira, tanto no Império

146Dom Pedro Casaldáliga.Rever o Deus anunciado, In.RAMPINELLI, Waldir José & OURIQUES, Nildo

Domingos (orgs).Os 500 anos - A conquista interminável. Petrópolis: Vozes, 1999, p.47.

147 Desde o início da colonização portuguesa no Brasil pode-se dizer que o papel desempenhado pelos

“operadores hegemônicos da justiça oficial, considerando a estrutura econômica marcada por práticas mercantilistas e escravistas, bem como por uma montagem político administrativa semifeudal, patrimonialista e elitista, cuja dinâmica histórica nega o direito do ‘Outro’ (filho nativo da terra) para incorporar e impor o direito alienígena colonizador. Assim, para que este ordenamento funcionasse formalmente foi necessário um aparato institucionalizado composto de atores profissionais (juizes, ouvidores, escrivães e instâncias processuais (Administração da Justiça, Tribunal da Relação, Casa da Suplicação, etc).” (In: WOLMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.36).

como na República, sendo não rara também nos dias de hoje. É justamente neste contexto, que se insere o liberalismo brasileiro, o qual, “desde os primórdios de sua adaptação e incorporação, teve de conviver com uma estrutura político-administrativa patrimonialista e conservadora, e com uma dominação econômica escravagista das elites agrárias.”148

A história do direito no Brasil está marcada, como assevera Wolkmer, pela ambigüidade de “formas liberais, sobre estruturas de conteúdo oligárquico”, o conteúdo conservador sob aparência de formas democráticas. A melhor expressão desta ambigüidade é, sem dúvida, a aceitação de escravidão, no “Brasil liberal”. Trata-se de uma verdadeira cultura liberal, patrimonialista, e dominadora, ocultada sob os discursos democráticos e sociais. Assim é, que também nos tempos atuais, grandes parcelas da população brasileira têm sido “excluídas de cidadania”.149

Enquanto na Europa florescia o mercantilismo e a luta contra o feudalismo, nas colônias florescia a escravidão. Desde o início a nossa formação social foi marcada pela polarização: imensos latifúndios - utilização de mão de obra escrava (primeiro de índios e depois de negros).150

No passado, em nome de supostamente deter o monopólio da verdade, os europeus praticaram o genocídio contra os povos indígenas e pretenderam que fosse legítimo o colonialismo. Isto estende-se aos dias de hoje, uma vez que os Estados Unidos e a Europa desrespeitarão a autonomia de destino de cada povo se tentarem, mais uma vez, impor “sua verdade”, “sua economia”, “seu modo de vida”, “seus direitos humanos”. Nesta direção, afirma Henrique Dussel, que a América Latina, desde o início, “ficará marcada por esse legalismo perfeito em teoria e, na realidade dos fatos, pela injustiça e a inadequação à lei”.151(grifo nosso).

148 Wolkmer ressalta a diferença entre “liberalismo europeu, como ideologia revolucionária articulada por

novos setores emergentes e forjados na luta contra os privilégios da nobreza, e o liberalismo brasileiro canalizado e adequado para servir de suporte aos interesses das oligarquias, dos grandes proprietários de terra e do clientelismo vinculado ao monarquismo imperial.” (In. WOLKMER. História do Direito no

Brasil. p.75).

149Cf. WOLMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil.

150PERRONE-MOISÉS, Beatriz.Índios livres e Índios Escravos.(Os princípios da legislação indigenista

do período colonial – século XVI a XVIII) In. CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.120).

Sobre isto, merece destaque o pensamento de Taribo Esquiel Obrerón152. Para este autor haveria três fatores de deformação do direito, pelo europeu na América: 1- a esperança de se fazerem ricos logo, despertou a sua avareza, passando por cima da lei e oprimindo o índio; 2- a distância da autoridade reguladora tornava difícil castigar os excessos, facilitando os enganos; 3- a docilidade e obediência incondicional do índio que se era bravo na luta armada, não opunha resistência na vida civil, e ainda oferecia sua cooperação para frustrar as intenções das leis feitas para beneficiá-lo.153

Como procura demonstrar Jesus Antônio de La Torre Rangel, a legalidade advinda do direito positivo, marcado pela ascensão da ideologia liberal individualista, não representou, em relação aos povos indígenas, grandes avanços. Atenta o autor para o fato de que “o reconhecimento das desigualdades sociais pela ideologia e pelo direito da dominação hispânica foi deslocado para uma ideologia e um direito que consideram todos livres e iguais, social, jurídica e politicamente”.154