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CAPÍTULO 3. BIOTECNOLOGIA X BIOÉTICA: UMA APROXIMAÇÃO

3.2. UMA APROXIMAÇÃO BIOÉTICA DIREITOS HUMANOS

É aceito no meio jurídico o entendimento de que é justamente a existência de lacuna jurídica (ausência de norma específica para determinado caso) que possibilita a demonstração da completude do ordenamento jurídico em seu conjunto. Isto, porque é justamente diante uma ausência normativa, que se dá à aplicação dos princípios gerais do direito e da analogia, perfazendo-se a chamada “colmatação” do sistema jurídico, que desta forma está sempre completo, ainda que ausentes as normas específicas.356

A polêmica que se apresenta é que os avanços da biotecnologia, expressados, sobretudo, pelas novas tecnologias reprodutivas, têm levado ao colapso de princípios e axiomas jurídicos tidos como inquestionáveis, tais como a regramater semper certa est, a presunção de paternidade do marido, a presunção de direito sobre a duração da gravidez (de 180 a 300 dias), o princípio da inalienabilidade do estado civil, a consangüinidade do parentesco e das ordens genealógicas, entre muitos outros.

Maria Celeste Santos alerta para os problemas suscitados pela engenharia genética357:

a) Questiona-se o direito do homem para mudar a natureza. Que efeitos produzirão estes novos seres transgênicos, vegetais ou animais?;

p.26. Imbuído de um ideal de tolerância, pluralismo e respeito à diversidade ou aos “estranhos morais” (como diria Engelhardt), Alastair Campbell enumera ainda dois problemas com os quais se depararia esta visão mais ampla de bioética. O primeiro problema diz respeito ao dogmatismo e à intolerância política e religiosa. O segundo problema refere-se ao que ele denomina de “neocolonialismo” da bioética.

O primeiro problema , de cunho mundial, perpassa os diversos “fundamentalismos” existentes, desde o islâmico até o cristão. O autor conclui, otimisticamente que “apesar de diversos tipos de intolerância poderem vir a ser um problema, até agora isso ainda não demonstrou ser um empecilho para a livre troca de idéias sobre bioética”. Em relação ao segundo problema, que parece também, atualmente superado, o autor refere-se ao predomínio havido até recentemente da visão Norte americana de bioética, de cunho principialista, sobre as demais bioéticas existentes no mundo. (In. CAMPBELL, Alastair. Uma visão

internacional da bioética, p. 33-34).

356Por completude, adotamos o entendimento de Norberto Bobbio, como sendo a propriedade pela qual um

ordenamento tem uma norma para regular qualquer caso. Completude seria a ausência de lacunas. (Cf. BOBBIO, Norberto.Teoria do Ordenamento Jurídico. São Paulo: Pólis, 1989, p.115).

b) Também podemos interrogar sobre o direito do homem a perturbar e modificar o meio ambiente, e para criar artificialmente “parques jurássicos” que terminem por ameaçar sua própria existência;

c) Pode-se indagar a respeito da propriedade sobre tecidos, células e órgãos de um indivíduo e de um direito de participar das utilidades produzidas pela comercialização de produtos farmacêuticos obtidos pela manipulação genética de células que foram extraídas como parte de tratamentos terapêuticos;

d) Discute-se questões mais polêmicas ainda, como a possibilidade de modificar o código genético completo do ser humano. Alega-se ser aceitável no caso de correção de defeito ou anormalidade genética. Mas quem determina as anormalidades nesta matéria? O limite entre finalidade terapêutica e eugenia pode ser de difícil precisão; e) Talvez o núcleo do problema moral e jurídico dos avanços médicos e científicos, seja o desafio apresentado pelas técnicas de reprodução assistida, como a engenharia genética, que incluem a manipulação de embriões.

Desta forma, antes de falarmos propriamente de positivismo jurídico e ordenamento jurídico estatal, fica clara a pertinência da bioética, no propósito de restaurar a importância axiológica dos princípios de direito.

Entendemos que para uma boa aplicação do direito positivo, dois aspectos são essenciais: a fundamentação filosófica - ética e a fundamentação sociológica - política. Em relação aos desafios societários trazidos pela biotecnologia ao direito moderno, a bioética tem grande relevância quanto ao primeiro fundamento e as ciências sociais quanto ao segundo fundamento.

3.2.2. A discussão bioética e sua influência no Direito

Atualmente, diante da evolução da medicina e das ciências biomédicas, bem como, conseqüentemente, o surgimento da Bioética, faz-se necessária e fundamental a presença do Direito. No Brasil, no dizer de Renato Sérgio Balão Cordeiro, “somos

consumidores de inovações biotecnológicas, equipamentos e produtos e percebemos uma defasagem enorme da reflexão ética sobre estes processos e produtos”.358

Podemos dizer que o desenvolvimento de uma bioética, e sua tutela jurídica, exige de nós, profissionais e estudiosos, pesquisadores e alunos, uma discussão histórica do poder da ciência numa economia de mercado (que tende ao crescimento), de maneira a resgatar a noção de dignidade humana e permitir que a sociedade torne-se parceira crítica de todas estas questões.359

Diante da “aparente” imobilidade de nosso ordenamento jurídico, frente a uma visão mais crítica e participativa aos assuntos desta natureza360, torna-se primordial a relação existente entre a Bioética e o Direito361, podendo este último, utilizar-se dos princípios bioéticos, a fim de entender e procurar melhor responder às inúmeras indagações resultantes do desenvolvimento tecnológico e biológico. Face a isto, destacam-se as questões que envolvem, de maneira definitiva, a violabilidade do patrimônio genético humano, fruto da manipulação de células germinais, que podem vir a alterar espécies inteiras e até mesmo toda a humanidade.362

Segundo Eduardo de Oliveira Leite: “as questões relativas à bioética vêm, naturalmente, eivadas de complexidade porque, ao contrário de outras áreas do

358CORDEIRO, Renato Sérgio Balão. A responsabilidade institucional.A moralidade dos atos científicos.

Rio de Janeiro: Ministério da Saúde/Fiocruz – Fundação Osvaldo Cruz, 1999, p.13;Apud: LEITE, Eduardo de Oliveira. O direito, a ciência e as leis bioéticas. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (org.).

Biodireito: Ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p.99.

359 Cf. CORDEIRO, Renato Sérgio Balão. A responsabilidade institucional. A moralidade dos atos

científicos. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde/Fiocruz – Fundação Osvaldo Cruz, 1999, p.13; Apud:

LEITE, Eduardo de Oliveira.O direito, a ciência e as leis bioéticas. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (org.).Biodireito: Ciência da vida, os novos desafios. p.99.

360Importante lembrarmos que o Novo Código Civil Brasileiro– Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002,

não tratou de assuntos importantes como, por exemplo, a inseminação artificial, eugenia e clonagem.

361

Sobre este tema, consultamos autores como: SILVA, Reinaldo Pereria eBiodireito: Um nova fronteira

para os direitos humanos; FABRIZ, Daury César. Bioética e Direitos Fundamentais; BARRETO, Vicente. Bioética, Biodireito e Direitos Humanos; Consultamos também, NOSTRE, Guilherme Alfredo de Moraes. Bioética e Biodireito – Aspetcos jurídico-penais da manipulação de embriões, do aborto e da eutanásia.

Dissertação de Mestrado em Direito, USP, São Paulo, 2001; MATEO, Ramón Martin.Bioética y Derecho. Barcelona: Editorial Ariel, 1987.

362Neste sentido, Adriana Diaféria apresenta-nos uma visão negativa, ao dizer que: “Hoje em dia a genética

molecular moderna ou engenharia genética, ramo da biotecnologia, nos propõe meios de agir sobre o patrimônio hereditário a fim de enriquecê-lo com características novas, para criar um “super-homem” genético (seria o tratamento em células germinais humanas, que possuem os genes responsáveis pelo conteúdo hereditário do indivíduo). E isso seria um processo de seleção às avessas que traria problemas gravíssimos para as gerações futuras”(grifo nosso). Cf. DIAFÉRIA, Adriana.Clonagem, aspectos jurídicos

conhecimento, que podem se esgotar em uma visão reducionista, são também questões científicas, filosóficas, econômicas e jurídicas. A interdisciplinaridade é a tônica”.363

O ser humano, considerado como pessoa ou como coletividade, tornou-se objeto de manipulação e passou a ser projeto e não sujeito de direito. Todo este desenvolvimento, a que nos referimos anteriormente, tornou frágeis e de certa forma, fora de contexto, todas as antropologias, que sempre serviram de parâmetro às reflexões preliminares da Ética e do Direito. Mas o ser humano, “independente do estágio de evolução científica que se encontre, continua sendo ser humano, na sua mais integral e perfeita constituição”, portanto, todos os “atos praticados sobre o ser humano, quer embrionário, quer adulto, não podem ser considerados, em níveis distintos, como pretendem certos segmentos científicos, ou com total liberdade, e sem nenhum controle”.364Concluindo, Eduardo de Oliveira Leite acrescenta:

A existência e o papel desempenhado pelos comitês de ética já demonstrou que o Direito não pode se impor por si mesmo; ou seja, a legitimidade jurídica é mediatizada pelo debate com os cientistas. O direito se constrói em relação a suas descobertas, mas também a partir dos riscos que as novas técnicas criam para a condição humana. É da interferência dos dois mundos, o científico de um lado (leia-se, biomédico) e o jurídico do outro, que, através de um processo lento, demorado e cauteloso, vão se determinando condutas, posturas e eventuais sanções aceitas por toda a comunidade humana. Relativamente aos riscos científicos oriundos das novas descobertas e das novas tecnologias, a experiência tem demonstrado que as normas da bioética são, primeiro, normas deontológicas, ou éticas – produzidas pelas organizações representativas dos cientistas e dos médicos – para, somente num segundo momento, ingressarem no terreno jurídico, na esfera da norma de cogência. A autonomia jurídica que sempre caracterizou a construção do Direito vê-se, pela primeira vez na história da humanidade, transferida para uma posição secundária, situação inédita a qual jamais algum jurista poderia supor a ocorrência. (grifo nosso).365

363 Cf. LEITE, Eduardo de Oliveira.O direito, a ciência e as leis bioéticas. In: SANTOS, Maria Celeste

Cordeiro Leite (org.).Biodireito: Ciência da vida, os novos desafios. p.116.

364De acordo com Eduardo de Oliveira Leite a legitimidade da Ciência apóia-se sobre fundamentos que lhe

são próprios e que decorrem essencialmente da qualidade da pesquisa. “A liberdade da pesquisa é, por vezes, considerada, notadamente nos países anglo-saxões, como um princípio tão fundamental que justificaria uma autonomia total da ciência no seio da sociedade (e que explica, atualmente, a não submissão da Inglaterra às regras mundiais que proíbem a clonagem humana)”. Cf. LEITE, Eduardo de Oliveira. O direito, a ciência e as leis bioéticas. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (org.).

Biodireito: Ciência da vida, os novos desafios. p.105.

365O Direito, como ciência jurídica que é, encontra-se inserido “no processo das ciências em geral, vivendo

O discurso bioético não se refere diretamente à questão das normas. Refere-se, sim, como reflexão, a algumas indagações como as seguintes: “como assegurar o domínio social da produção, difusão e utilização das novas tecnologias de vida? [...] que nova concepção de homem se deverá consagrar socialmente?”.366

A interdisciplinaridade do tema, centra-se no fato, de que não resta dúvida que foi o desenvolvimento explosivo da biotecnologia na área biomédica, o causador da renovação do pensamento ético das questões daí oriundas, pois, médicos, juristas, filósofos, estudantes, leigos e demais profissionais integrantes da sociedade, foram compelidos a sentarem juntos a fim de discutirem uma possível tomada de decisão centrada em prol da coletividade.367Vários dos conflitos atualmente vividos, decorrem da averiguação relativa ao aperfeiçoamento de novas tecnologias, ao serviço da vida ou da saúde, que colocaram em cheque “as referências e medidas habituais e os fundamentos da moral e da deontologia que figuravam nos códigos jurídicos que regulavam a conduta humana”.368

Uma perspectiva interessante da relação bioética - biodireito, é apresentada por Bruno Torquato de Oliveira Naves. Este autor procura relacionar os termos “zetética” e “dogmática” com o debate biojurídico. Acaba por concluir que, embora dotado de dogmaticidade, o Direito, especialmente, o Biodireito, contém valores sociais em suas

exploratório, ora mais jusnaturalista, prestigiando valores fundamentais, todavia o Direto – e, conseqüentemente, os operadores do Direito - têm uma vantagem sobre as demais ciências – é dotado de caráter normativo e, portando, coercitivo, tendo em seu dispor, no Brasil, uma Constituição que fixou o princípio da dignidade da pessoa humana como anteparo das investidas “técnicas” dos economistas, médicos, biólogos, físicos, sociólogos e até mesmo de juristas que atinjam, o supra-princípio absoluto, que é a dignidade humana”. Cf. LEITE, Eduardo de Oliveira. O direito, a ciência e as leis bioéticas. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (org.).Biodireito: Ciência da vida, os novos desafios. p.117-118.

366

Cf. LEITE, Eduardo de Oliveira.O direito, a ciência e as leis bioéticas. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (org.).Biodireito: Ciência da vida, os novos desafios. p.109.

367 No dizer de Volnei Garrafa: “A modernidade da Bioética está, exatamente, em libertar-se dos

paternalismos que se confundem com beneficência. Historicamente, a humanidade vem carregando o peso do maniqueísmo entre o “certo” e o “errado”, entre o “bem” e o “mal”, entre o “justo” e o “injusto”. Para a Bioética laica, o que é bem, certo ou justo para uma comunidade moral não é bem, certo ou justo para outra, já que suas moralidades (mores: costumes) podem ser diversas. Dessa maneira, em vez de pautar-se em proibições, vetos, limitações, normatizações ou mesmo em mandamentos, ela atua afirmativamente, positivamente. Para ela, portanto, a essência é a liberdade, porém, com compromisso, com responsabilidade”. Cf. GARRAFA, Volnei. Transgênicos, ética e controle social.O mundo da saúde. p.286 – 289.

368 Cf. LEITE, Eduardo de Oliveira.O direito, a ciência e as leis bioéticas. In: SANTOS, Maria Celeste

normas. Para o autor, a diferença entre Biodireito e Bioética, não está nas diferenças de conteúdo, mas sim no método de abordagem do problema.369