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O processo de alfabetização: o perfil dos alunos na escrita e na leitura

4. DO CONTEXTO AOS SUJEITOS

4.2 A INFLUÊNCIA DO PERFIL DOS ALUNOS NA PRÁTICA PEDAGÓGICA

4.2.1 O processo de alfabetização: o perfil dos alunos na escrita e na leitura

As particularidades da turma ditas pela professora Conceição também dizem respeito à especificidade de cada criança e à diversidade de alunos, quando se trata no nível de leitura e escrita. Essa diversidade é evidenciada quando mapeamos o nível de escrita e de leitura do alunado. O Quadro 6 apresenta o nível dos alunos de acordo com um material elaborado pela própria professora (Anexo A), e por nossas vivências na turma durante a investigação.

Quadro 6 – Nível de leitura e escrita dos alunos

Alunos Idade Nível de escrita

(FERREIRO, 1995)

Nível de leitura (FRITH, 1985)

Machado 9 anos Silábico Alfabético Logográfico Ruth 10 anos Silábico Alfabético Logográfico Lygia 10 anos Alfabético Alfabético Carlos 8 anos Alfabético Ortográfico Clarice* 8 anos Silábico Logográfico Guimarães 8 anos Alfabético Ortográfico

Cecília 11 anos Alfabético Alfabético André 8 anos Silábico Logográfico Monteiro 11 anos Alfabético Alfabético

Eva 9 anos Alfabético Ortográfico José 11 anos Alfabético Ortográfico Graciliano 10 anos Alfabético Ortográfico Luís 10 anos Alfabético Ortográfico

Chico 10 anos Silábico Logográfico Marina 8 anos Alfabético Ortográfico

Hilda 11 anos Alfabético Ortográfico

Fonte: elaboração do autor.

Para descrever o nível de escrita e leitura da turma, nos apoiamos na sistematização proposta por Ferreiro (1995) e por Frith (1985), respectivamente. Antes de darmos continuidade à discussão, é fundamental esclarecer que trabalhamos com as perspectivas vigotskianas para discutir aprendizagem, conforme já exposto neste trabalho. Porém, excepcionalmente para descrição dos níveis de escrita dos alunos, utilizaremos da esquematização da Ferreiro (1995), que se apoia nos estudos piagetianos, uma vez que consideramos o instrumento pedagógico utilizado pela professora para mapear as crianças (Anexo A). Ressaltamos, ainda, que as peculiaridades da leitura e escrita de Clarice serão descritas em outra seção.

De acordo com Soares (2016, p. 62), a psicogênese da língua escrita, proposta por Ferreiro (1995), se baseia “no processo cognitivo da criança em sua progressiva aproximação ao princípio alfabético da escrita, ou seja, o objeto de conhecimento é a escrita como um sistema de representação”. Nesse sistema o conhecimento é acumulativo, ou seja, de um nível para o outro a criança se apropria cada vez mais do sistema de representação.

Dentre os níveis de representação da escrita na perspectiva da psicogênese, Soares (2016) descreve cinco: entre o desenho e a escrita, pré-silábico, silábico, silábico-alfabético, alfabético. É fundamental considerar que, apesar de apresentarmos uma linearidade, a aprendizagem é um processo dinâmico, com altos e baixos que precisam ser considerados. Discutiremos brevemente cada um dos níveis da psicogênese da língua escrita.

No primeiro nível, a criança consegue entender a diferença entre as duas modalidades básicas de representação gráfica, o desenho e a escrita. Nesse nível o “uso de grafismos que imitam as formas básicas da escrita: linhas onduladas – garatujas, se o modelo é a escrita cursiva, linhas curtas e retas, ou combinação entre elas, se o modelo é a escrita de impressa” (SOARES, 2016, p. 65). Em nosso caso, todas as crianças na sala de aula investigada já passaram por esse nível.

O segundo nível, o pré-silábico, se caracteriza pelo “uso de letras sem correspondência com seus valores sonoros e sem correspondência com suas propriedades sonoras da palavra (número de sílabas)” (SOARES, 2016, p. 65). Ou seja, nesse nível, a criança já apropriada da lógica de representação da língua, buscar “escrever” a partir de representações gráficas que não possuem conversão sonora. Mais uma vez, não há crianças em nossa pesquisa nesse nível.

O terceiro nível descrito por Soares (2016) é o silábico, que se baseia no “uso de uma letra para cada sílaba da palavra, inicialmente letras reunidas de forma aleatória, sem correspondência com a propriedade sonora das sílabas”, ou seja, sem valor sonoro. Para Grossi (1990, p. 30), “o que define o nível silábico é a segmentação quantitativa das palavras em tantos sinais gráficos quantas são as vezes que se abre a boca para pronunciá-las”. Temos três crianças em nível silábico na nossa investigação, porém todas já com valor sonoro, inclusive Clarice.

O nível silábico com valor sonoro diz respeito às construções escritas, que se caracterizam com “letras com valor sonoro representando um dos fonemas da sílaba” (SOARES, 2016, p. 65). Ou seja, nesse momento da escrita, as crianças já buscam fazer as devidas correspondências grafema-fonema. A respeito Ferreiro (1995, p. 30) postula:

[...] desde o ponto de vista qualitativo, durante o subnível silábico, as crianças podem passar a procurar letras semelhantes para escrever “sons” semelhantes das palavras. A correspondência som/letra resultante não é a correspondência convencional, mas, pela primeira vez, as crianças começam a entender que a representação escrita ligada à escrita alfabética deve enfocar quase que exclusivamente o padrão sonoro das palavras.

Em nossa investigação, encontramos três crianças silábicas com valor sonoro, todas com oito anos de idade, a menina Clarice, nossa aluna com DI, e os meninos Chico e André. É interessante destacar que, mesmo estando no mesmo nível, as crianças têm suas especificidades, por exemplo, a dificuldade de Clarice em diferenciar o fonema do T do fonema do D, o que não acontece com os meninos, ou a dificuldade de André em memorizar todas as letras do alfabeto. Para exemplificar, a Figura 10 é o registro de uma atividade de Chico.

Figura 10 – Escrita de Chico: pré-silábico com valor sonoro

O enunciado da questão, que foi copiado do quadro, dizia: “O que você aprendeu na aula sobre alimentação?”, com referência a uma aula anterior ministrada por um nutricionista. Com isso, destacamos que o garoto não conseguiu copiar integralmente o enunciado. A proposta da atividade era que fosse feito um pequeno texto sobre a aula, mas o garoto apenas produziu uma lista de palavras com frutas vistas durante a exposição do nutricionista, alguns nomes podendo ser entendidos, tais como uva, abacate, abacaxi, e outros não.

O quarto nível de escrita apresentando por Soares (2016, p. 65) é o silábico-alfabético, descrito como “passagem da hipótese silábica para a alfabética, quando a sílaba começa a ser analisada em suas unidades menores (fonemas) e combinam-se, na escrita de uma palavra, letras representando uma sílaba e letras já representando os fonemas da sílaba”. Ou seja, nesse nível as crianças ainda apresentam resquícios da escrita silábica, porém, já convertem integralmente uns fonemas da sílaba em seus respectivos grafemas.

No nível silábico-alfabético de escrita, havia duas crianças durante o período da pesquisa, o menino de nove anos, Machado, e a menina de dez anos, a Ruth. Para exemplifica- lo, apresentamos na Figura 11 a escrita de Ruth, na mesma atividade apresentada anteriormente na escrita de Chico.

Figura 11 – Escrita de Ruth: silábico

Fonte: registro do autor.

Notemos que a menina escreve o anunciado integral da questão, a escrita alfabética predomina em seu registro, porém, em alguns momentos oscila com a escrita silábica, como no momento em que busca registrar na quinta linha: “a goiaba é gostosa e fonte de uma vitamina”, e escreve “A goiaba e gotoso i e fode e uma vitamina”, trocando a representação do “de” por apenas “e”.

O quinto e último nível da psicogênese da língua escrita é o alfabético, que se caracteriza como “o final do processo de compreensão do sistema de escrita” (SOARES, 2016, p. 66). Ferreiro (1995, p. 30) explica que a criança chega ao nível alfabético:

Quando as crianças alcançam, finalmente, o terceiro subnível, o da hipótese alfabética, já entenderam a natureza intrínseca do sistema alfabético, mas ainda não podem lidar com todos os traços ortográficos próprios da linguagem (tais como: marcas de pontuação, espaços em branco, representação poligráfica de fonemas, letras maiúsculas e minúsculas). Entenderam, apenas, que a similaridade de som implica uma similaridade de letras, bem como que uma diferença no som implica letras diferentes. Assim, elas escrevem de acordo com esse princípio, isto é, o princípio fundamental de qualquer sistema alfabético de escrita.

O nível alfabético é o que predomina na turma participante da investigação. Esse nível pode ser subdividido novamente em mais dois, não ortográfico e ortográfico. O momento não ortográfico se caracteriza quando a criança entende o princípio alfabético, porém ainda não se apropriou das regras ortográficas da língua, como o caso Lygia, exemplificado na Figura 12:

Figura 12 – Escrita de Lygia: alfabética não ortográfica

Fonte: registro do autor.

Notemos que, apesar de a garota seguir a lógica da escrita alfabética com primor, sua mostra de escrita não apresenta as regras ortográficas de pontuação, acentuação, coesão e coerência textual, os próximos passos que precisam ser dados em seu processo de alfabetização. Por último, a escrita alfabética ortográfica, além se seguir o princípio alfabético, faz uso das normas ortográficas em sua escrita, como é o caso da Marina, exemplificado pela Figura 13.

Figura 13 – Escrita de Marina: alfabética ortográfica

Fonte: registro do autor.

É importante observar a que a criança em sua escrita, além de fazer uso do princípio alfabético, respeitando as devidas conversões de fonemas em grafemas, também faz uso das regras ortográficas de acentuação, pontuação e coesão textual, marcas necessárias que caracterizam esse nível de escrita. É fundamental destacar que Marina apenas exemplifica o nível de escrita, porém, as crianças nesse mesmo nível têm suas diferenciações, que precisam ser levadas em consideração no momento da prática pedagógica.

Quando se trata do nível de leitura da turma, nos apropriamos da sistematização feita por Frith (1985), que inicialmente buscou mapear o nível de leitura da pessoa com dislexia, mas posteriormente seu trabalho foi difundido para compreender a habilidade de leitura de qualquer criança. Soares (2016, p. 73) explica que a autora “divide o desenvolvimento da leitura em três fases, identificadas pelas estratégias que a criança usa em cada uma delas”. São elas: as habilidades logográficas; as habilidades alfabéticas; e as habilidades ortográficas.

O primeiro dos níveis, explicados por Frith (1985), é o que completa as habilidades logográficas, nesse momento a criança não necessariamente faz uso das conversões grafema- fonema, mas se baseia em suas experiências prévias e em sua memória, para conhecer elementos presentes no objeto e produzir uma leitura a partir disso. A própria autora explica:

Logographic skill refer to the instant recognition of familiar words. Salient graphic features may act as important cues in this process. Latter order is largely ignored and phonological factors are entirely secondary, in other words the child pronounces the word after he or she will refuse to respond. However, the child will often be prepared to guess on the basis of contextual or pragmatic cues (FRITH, 1985, p. 306).

Em outras palavras, Soares (2016, p. 73) explica que, nas habilidades logográficas, “a criança reconhece imediatamente palavras familiares, com base em aspectos gráficos salientes ou em pistas contextuais e pragmáticas; a ordem das letras e sua correspondência fonológica são completamente ignoradas”. Cinco dos alunos participantes da turma estavam nesse nível de leitura durante a investigação, o episódio a seguir exemplifica a leitura de três desses alunos em um momento da aula de língua portuguesa, em que as crianças deveriam ler em círculo suas fichas de leitura, que haviam levado para casa no diária anterior e lido previamente:

Alunos como a [Ruth] e a [Clarice], conheciam e tinham memorizado os textos de suas fichas, no caso, duas músicas (o hino nacional e “o sapo cururu”, respectivamente), sendo assim, elas não se preocupavam em ler, mas apenas em falar em voz alta o que já conheciam do texto, simulando que estivessem lendo. Determinados discentes buscavam alguns elementos da ficha, construíam uma história e a apresentavam como se estivesse lendo o texto escrito. Como por exemplo, o [Chico], que tinha em sua ficha um texto sobre a cultura indígena na atualidade e seus comportamentos no cotidiano, tendo apenas o menino lido a imagem, alguns elementos do texto e fantasiado, contou que as crianças de aldeias indígenas são furadas nos rostos ainda muito novas para se colocar uma espécie de piercing (DIÁRIO DE CAMPO, DIA 5 – EPISÓDIO 2: “Fichas de leitura”).

É necessário destacar que as crianças utilizaram exatamente das habilidades logográficas na leitura das fichas. Ruth e Clarice fizeram uso da memória, considerando que o texto de ambas eram músicas, um gênero textual de fácil memorização, e o Chico fez a leitura de imagens, buscando adivinhar o que tinha no texto.

O segundo nível de leitura descrito por Frith (1985) diz respeito ao uso das habilidades alfabéticas. Soares (2016, p. 73) explica que nesse momento “a criança conhece e usa as correspondências fonema-grafema; a ordem das letras é decisiva, as palavras são decodificadas grafema por grafema, sequencialmente”. Ou seja, nesse momento, durante a leitura as crianças começam a fazer a conversão de grafemas em fonemas, mesmo ainda estejam isentas de interpretação.

Nessa mesma perspectiva Frith (1985, p. 306) postula que:

Alphabetic skills refer to knowledge and use of individual phonemes and graphemes and their correspondences. It is an analytic skill involving a systematic approach, namely decoding grapheme by enables the reader to pronounce (not necessarily correctly) novel and nonsense words.6

6 As habilidades alfabéticas se referem ao conhecimento e uso de fonemas e grafemas individuais e suas

correspondências. É uma habilidade analítica que envolve uma abordagem sistemática, ou seja, decodificar o grafema, permitindo ao leitor pronunciar (não necessariamente corretamente) palavras novas e sem sentido.

Com isso, durante essa fase do desenvolvimento da leitura, as crianças baseiam a habilidade apenas em decodificar, no trabalho das relações grafemas e fonemas, sem buscar compreender o que está sendo lido. Nesse cenário, três crianças se encaixam em tal descrição. No mesmo momento da aula de português descrito anteriormente, temos o seguinte:

Outros alunos, leem pausadamente, parando muitas vezes por um tempo significativo para tentar decodificar o que está escrito no texto e tentar falar em voz alta, como o caso de Lygia e Cecília, outros ainda, semelhantemente, não liam o texto na íntegra, mas sim palavras isoladas e soltas do seu contexto, tendo decodificado apenas partes do escrito, como o caso de Monteiro (DIÁRIO DE CAMPO, DIA 5 – EPISÓDIO 2: “Fichas de leitura”).

Na situação acima, podemos constatar como essas crianças ainda baseiam suas leituras apenas na decodificação do sistema escrita, afastando-se da interpretação e buscando apenas emitir os sons que as letras representam. Por último, a terceira fase descrita por Frith (1985) se baseia na habilidade ortográfica.

Soares (2016, p. 73) explica que nessa habilidade “a criança analisa as palavras em unidades ortográficas (idealmente correspondentes a morfemas), utilizando da conversão fonológica”. Ou seja, nesse momento a criança faz uso da rota lexical para ler a palavra, com isso, não precisa mais pausar para ler ponto a ponto da estrutura da escrita, mas já compreende a palavra fazendo uso, inclusive, da interpretação.

A própria Frith (1985, p. 73) postula que “orthographic skills refer to the instant analysis of words into orthographic units without phonological conversion. The orthographic units ideally coincide with morphemes”7. Fazendo uso dessa habilidade, encontramos oito alunos da turma. No excerto a seguir, podemos identificar um aluno lendo a partir da habilidade ortográfica:

Também há crianças que conseguem ler com fluidez e interpretando o texto integralmente, como é o caso do José e da Marina. Esses alunos leem globalmente a produção escrita e interpreta todo o texto sem muita dificuldade. Alguns desses alunos ajudam os outros em suas leituras (DIÁRIO DE CAMPO, DIA 5 – EPISÓDIO 2: “Fichas de leitura”).

Com isso, podemos identificar a diversidade de alunos que estão presentes em sala de aula quando se trata dos níveis de leitura e escrita. Nesse sentido, a prática pedagógica precisa contemplar essas especificidades do alunado, buscando atender as demandas de cada um desses

7 Habilidades ortográficas se referem à análise instantânea de palavras em unidades ortográficas sem

sujeitos, a fim de obter êxito nos respectivos processos de aprendizagem da língua escrita. Nessa perspectiva, a professora Conceição, em uma das sessões de entrevista, nos diz o seguinte:

Professora: Porque assim, a gente precisa pensar nas crianças que estão

precisando desse “boom”, mas a gente precisa pensar nas crianças em que esse “boom” já aconteceu há muito tempo, para não serem prejudicados nesse olhar. Porque eles interagem, trocam experiências, mas cada um tem suas particularidades, e que o que nós fazemos tem que atender a todas essas particularidades (SESSÃO DE ENTREVISTA – DIÁLOGO SOBRE A PRÁTICA 2).

Podemos entender, a partir da fala da professora, sua preocupação em trabalhar com os alunos menos avançados no processo de alfabetização, sem desconsiderar aqueles que já estão por consolidar a aprendizagem da língua escrita. Esse entendimento reverbera diretamente na prática pedagógica alfabetizadora desenvolvida pela professora, que busca atender as especificidades de cada sujeito. No próximo capítulo, onde discutiremos essencialmente a prática, poderemos visualizar esses elementos do fazer docente.