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O QUE A HISTÓRIA DA PROFESSORA REVELA SOBRE A PRÁTICA

4. DO CONTEXTO AOS SUJEITOS

4.3 O QUE A HISTÓRIA DA PROFESSORA REVELA SOBRE A PRÁTICA

capítulo. Porém, para além disso, na pesquisa em educação sobre a pessoa com DI não basta apenas apresentar a condição em vias teóricas, mas também é necessário caracterizar o sujeito, com sua individualidade e personalidade, a fim de evidenciar a diversidade que existe quando se fala nas pessoas com deficiência intelectual.

4.3 O QUE A HISTÓRIA DA PROFESSORA REVELA SOBRE A PRÁTICA PEDAGÓGICA

Nesta pesquisa, trabalhamos sob uma perspectiva vigotskiana, de acordo com a qual somos sujeitos históricos e culturais, formados a partir das nossas relações sociais e experiências ao longo da vida (VYGOTSKY, 2007). Nossa identidade é formada a partir do nosso lugar no mundo, dos espaços que ocupamos, das decisões que tomamos, das escolhas que fazemos voluntariamente e das que somos obrigados a fazer. Esses elementos que constroem a nossa identidade repercutem diretamente em nossas ações no dia a dia, uma vez que somos a todo tempo atravessados pelas nossas experiências anteriores.

O mesmo acontece com o professor. A ação docente é influenciada não apenas pelos saberes pedagógicos, curriculares, profissionais e experiências (TARDIF, 2002), mas pela vida pessoal do educador, do seu lugar social, do seu entendimento sobre o mundo. Nesse sentido,

para compreendermos a prática pedagógica da professora Conceição, precisamos entender quem de fato é a mulher por trás da professora.

A professora Conceição é uma mulher negra de 43 anos, moradora do bairro de Felipe Camarão da cidade de Natal – RN (Figura 10). A docente formou-se em nível de magistério pela primeira turma do curso da Fundação Bradesco, que atuava no bairro em que morava. Posteriormente, graduou-se Pedagogia, e atualmente faz um curso de idiomas em LIBRAS. A professora atribui muito significado ao curso de magistério e explica que sua prática tem como base esse curso: “minha prática de professora é de magistério, a pedagogia acrescentou na questão teórica, mas minha prática é de magistério” (SESSÃO DE ENTREVISTA – DIÁLOGO SOBRE O SER PROFESSORA).

Ao falar isso, a professora nos permite inferir que sua ação pedagógica, a prática no sentido restrito do seu “fazer pedagógico”, é fruto da sua formação em nível de magistério. Ou seja, compreendemos que a ações observadas e vivenciadas são reverberam dessa formação inicial da docente. Em segundo plano está o curso de Pedagogia, que se transforma em um suporte teórico para a prática pedagógica da professora.

Para além disso, a professora nos conta seu primeiro contato como docente com uma pessoa com deficiência:

Professora – Você precisa olhar para as potencialidades, isso não é fácil

professor, eu venho de um processo de 15 anos de escolar particular. Minha primeira aluna, que tive com deficiência, ela era surda. Eu digo a você, Freud, ele explica muita coisa, que hoje meu desejo de fazer curso com certeza tem a ver com essa relação com essa menina, lá no segundo ano quando comecei. Porque simplesmente eu ficava frustrada porque eu não conseguia me comunicar com ela. A deficiência era minha, porque ela se comunicava muito bem comigo, mas eu não me comunicava nada com ela.

Entrevistador – O que ela mais te ensinou?

Professora – A olhar para ela, a olhar para ela. A se voltar para ela, porque

senão eu não conseguia nada com ela, a ter justamente esse olhar para ela. (SESSÃO DE ENTREVISTA – DIÁLOGO SOBRE O SER PROFESSORA).

A professora explica que sua primeira experiência com uma pessoa com deficiência a levou a investigar mais sobre a temática, e que essa vontade é refletida no curso que faz hoje, de LIBRAS. Vale considerar que a professora viveu essa experiência em 1997, então, apesar de terem se passado duas décadas, sua vontade permaneceu viva.

A experiência com a aluna surda logo no início da carreira a levou a sair de sua zona de conforto e pensar sobre a pessoa com deficiência e seu processo de escolarização, como ela mesmo disse, “a olhar para ela”. Fonseca (2015, p. 45) explica que “a fase inicial da docência explicita uma dimensão relevante do fazer pedagógico: a permanente necessidade de aprendizagem da docência no contato com as práticas pedagógicas reais”.

Sobre essa experiência, a professora ainda nos relata que “o canto dela [a aluna com surdez] eu já escolhia, ela bem na frente, porque eu tinha que vê-la (SESSÃO DE ENTREVISTA – DIÁLOGO SOBRE O SER PROFESSORA). Essa perspectiva demonstra a preocupação da professora em reconhecer a aluna com deficiência como sujeito integrante da sala de aula e entender a própria necessidade de estudar, não a surdez, mas sim a aluna a quem ela tinha de ensinar. Nesse sentido, não falamos de aprender sobre a deficiência, mas aprender com o aluno, sobre ele próprio.

Entretanto, sobre essa relação inicial da professora com a aluna, Fonseca (2015, p. 45) nos alerta que “é preciso atentar para esses pedagogos e suas experiências inseridas em uma sociedade repleta de perspectivas homogeneizadores na qual se concebe a deficiência em uma conotação negativa e pejorativa”. Nesse sentido, precisamos entender que a professora, no início da sua carreira, ainda estava buscando desconstruir uma ideia do que é deficiência, por isso ela atribui tanta importância para se olhar a criança com deficiência.

Magalhães (2006, p. 359) nos explica que

A tendência é haver ardente defesa dos aspectos teóricos da inclusão e práticas, amiúde, pseudoinclusivas. Isso, muitas vezes, leva os professores de classes regulares à representação da inclusão de forma confusa, chegando até a reforçar preconceitos e estereótipos de deficiência.

A professora buscou lidar com essa realidade procurando entender seu aluno para além da deficiência, assim, não se limitando ao senso comum ou ao discurso teórico-pedagógico da condição da aluna. Ela procurou caminhos para contornar a situação e aprender a partir dela. Esses saberes construídos ao longo da trajetória da professora, também chamados por Tardif (2002) de saberes da experiência, formam a docente enquanto profissional e atravessam a sua prática pedagógica atual.

Sobre a prática de alfabetização, a professora nos diz o seguinte:

Eu me identifico muito com o processo de alfabetização, justamente porque eu acho que é um processo muito mágico, quando o outro descobre, para você, enquanto pessoa é muito bom. [...]. É como uma mágica, uma mágica que acontece para ambos, para você professor, para ele que descobre (SESSÃO DE ENTREVISTA – DIÁLOGO SOBRE O SER PROFESSORA).

É perceptível que a professora gosta e se interessa pela alfabetização, esse interesse repercute na sua prática no arsenal de metodologias que ela desenvolve no cotidiano da sala de aula, além da gama de materiais didáticos que a docente produz para colaborar com o processo

de alfabetização das crianças. Esse envolvimento pessoal com o trabalho contribui para o desenvolvimento de práticas exitosas, uma vez que o investimento de energia e empenho se amplia à medida que se há interesse.

É necessário considerar que a professora tem mais de vinte anos de experiência, tendo durante esse tempo atuado como docente da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental, assim como coordenadora pedagógica e professora da educação especial. Além disso, atuou em instituições particulares, públicas e filantrópicas. Com isso, podemos entender o quão vasta é a experiência da docente e a bagagem que ela carrega para desenvolver as práticas feitas hoje em sua sala de aula.

Para Fonseca (2015, p. 45), “esse arsenal de experiências permite ao docente selecionar e planejar diferentes recursos didático-pedagógicos, instrumentos de avaliação, e redimensionar a relação professor-aluno e aluno-aluno”. Nesse sentido, a prática pedagógica vai se aprimorando à medida que a professora ganha experiência com novas vivências no espaço escolar.

Entretanto, no leque de experiências vividas pela professora, ela apresenta suas preferências pelas instituições públicas do bairro em que mora. Esse anseio diz respeito ao sentimento de pertencimento que ela tem em relação ao lugar em que foi criada, estudou e viveu toda sua vida. Em uma sessão de entrevista ela nos conta que:

Professora – Já, já... algumas vivências foram muito bacanas, e assim eu sou

muito grata mesmo. Hoje você me pergunta: eu vou para escola particular? Eu respondo: estude e vamos para a pública, para que você tenha essa visão mais ampla, para que você tenha mais liberdade de trabalho, sabemos que hoje existem escolas particulares que dão essa abertura, mas ainda estamos presos a livros didáticos, ainda estamos presos a muitas coisas. Ai pronto, vim para a educação infantil. [...] Cidade Nova e Guarapes, trabalhei em duas comunidades e Cidade da Esperança. Bem articulado, sempre trabalhei muito próximo do meu bairro, sempre tive esse privilégio. Sempre trabalhei próximo. E é uma escolha minha trabalhar em comunidades.

Entrevistador – É outro contexto. Outra realidade.

Professora – Eu acho que acrescenta mais na minha carreira como professora.

Daí vim, trabalhei, passei no concurso do Estado, aí, sim, minha batalha foi justamente vir para comunidade onde moro.

Entrevistador – E é significativo, sair da escola e ver aquele menino passando

na rua.

Professora – E por conta do contexto do meu bairro, né? Bairro visto às

margens, nesse sentido: eu só visualizo a violência dentro de Felipe Camarão, e eu sou moradora de Felipe Camarão, e eu visualizo um bairro onde eu cresci, onde eu tive uma infância muito bacana, onde existem pessoas que têm uma vida normal, no sentido de: não a todo tempo está no contexto da violência. Eu precisava desse encontro nessa escola, e tive o presente de encontrar uma escola na minha comunidade e com aluno... (SESSÃO DE ENTREVISTA – CONVERSA INICIAL).

Na fala da professora é perceptível o quão ela se orgulha de atuar onde mora, de colaborar, hoje profissionalmente, com os espaços em que vive sua vida pessoal e de buscar a ressignificação desses espaços, uma vez que eles podem ser vistos para além da violência, mas como um lugar para se viver a vida. O sentimento de pertencimento perpassa a prática ne medida em que a docente tem propriedade para discutir sobre o lugar em que trabalha, o lugar em que os alunos moram, o espaço cultural, social e econômico onde desenvolve seu fazer docente.

A professora Conceição cresceu em ambiente semelhante ao de seus alunos, também em condição de vulnerabilidade social. Em uma das sessões de entrevista revela essa vulnerabilidade:

Professora – É justamente o que digo. Eu tive as opções de me prostituir, de

me drogar, porque também me era oferecido isso. Mas eu tive a oportunidade também de ir para a escola, de fazer outras escolhas. Mas eu digo assim, lógico, minha família é muito importante nesse processo, e eu tive um encontro muito feliz com a Fundação Bradesco. Fui das primeiras turmas, que chegou em um bairro de Felipe Camarão, uma escola pensando justamente em fazer um trabalho com esses jovens; então, assim, foi um achado. Eu digo que ela deu um norte à vida de muita gente (SESSÃO DE ENTREVISTA – CONVERSA INICIAL).

Nesse sentido, temos um discurso que é comum quando falamos de mulheres negras que vivem zonas periféricas, a possibilidade de um caminho baseado em atividades ilícitas. Porém, felizmente, a professora Conceição teve êxito na escolha de uma profissão e segue por ela até o momento.

Sobre esses vínculos criados na prática do ambiente escolar, Magalhães (2013, p. 43) nos explica que “a docência constitui atividade instigadora a demandar sempre a criação de uma rede de afetos, ou seja, de pessoas (professores, alunos, pais) que se afetam mutuamente para permitir o acesso e a construção do conhecimento”. Com isso, o vínculo criado pela educadora com seus alunos, ao viver no mesmo espaço que eles e participar da mesma cultura local, fortalece a rede de afeto no ambiente escolar.

Para além disso, essa rede de afeto se manifesta em sua prática pedagógica, no momento em que a docente considera a realidade que compartilha com os alunos para discutir conteúdos curriculares, pensar nas propostas de atividades, flexibilizar o currículo a fim de atender a demanda social de um dos estudantes ou até mesmo em manifestar carinho e compreensão para com este em um momento delicado.