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O Registro Alemão e o Esperado Sistema Registral do Século XXI

Para se transferir atualmente uma propriedade na Alemanha, segundo informações de Afonso Francisco (1999, p. 97), há dois consentimentos: o primeiro de direito pessoal e o segundo de direito real (perante o Oficial do RI). O processo inicia com um contrato celebrado em forma autêntica, judiciária e notarial, pelo qual uma das partes se obriga a transferir a propriedade do imóvel (CC alemão, Art. 313). Para alienar ou gravar (ônus) o imóvel e para alienar ou gravar um direito real imóvel, é necessário um novo convênio ou acordo de vontades (Einigung), quanto a mutação a se realizar e sua inscrição no livro predial, se a lei não dispuser de outro modo (Código Civil alemão, Art. 873).

Compreende-se assim que, na transmissão do domínio, torna-se necessário que as partes, além do negócio [...] compra e venda [...] celebrem ainda um negócio de

cumprimento, que se constitui [...] quanto aos imóveis, do ‘convênio’ de transmissão e sua inscrição no registro competente, consignado no art. 873. Trata-

se do chamado princípio do consentimento, por força do qual, as partes firmam dois acordos, um sobre a obrigação de transferir o domínio [...] e o outro sobre a própria transmissão (MAGALHÃES, 1981, p. 26).

Na Alemanha, perde-se e adquire-se a propriedade pela inscrição do título. Assim, goza o registro de presunção absoluta porque, após o convênio, submete-se o título a uma análise da sua legalidade pelo oficial do registro de imóveis que, somente após tal perquirição, procede ao ato do registro.

Beviláqua denominou este aspecto de ‘princípio da legalidade’, tendo [...] definido [...] como aquele em que ‘o encarregado do registro é uma autoridade competente, habilitada, (que) tem o direito de examinar os títulos e pedir às partes que justifiquem a exatidão do que está neles contido [...].’

É nessa depuração do título que se encontra o que Clóvis Paulo da Rocha denominou ‘eficácia formal’ da transcrição, pois é ela que confere ao registro a garantia absoluta para o adquirente, a ponto de ser o Estado pessoalmente responsável pelos prejuízos causados por um oficial do registro. (AFONSO FRANCISCO, 1999, p. 100-101).

Efetuado o segundo acordo, o primeiro é abstraído (AFONSO FRANCISCO, 1999, p. 99), ao que se denominou princípio de abstração da causa. Finalmente, Afonso Francisco (1999, p. 103-107) aponta que, apesar da superioridade incontestável do sistema germânico, de possuir cadastro organizado e de ser considerado o mais perfeito sob o aspecto da segurança, seu alastramento em outros países apresentaria algumas dificuldades que devem ser superadas num novo modelo para o Sistema Registral do Século XXI:

a) Devido à fé pública atribuída aos limites registrados, excepcional ocorrência de inexatidão no registro em relação à realidade é de tratamento difícil, ainda que se preveja a hipótese de sua retificação.

b) A questão dos negócios casuais nulos e inexistentes padece da mesma dificuldade, uma vez que tendo havido a inserção no registro e mesmo reconhecida a nulidade ou inexistência, há dificuldade para se modificar o teor do registro.

c) Os casos de difícil solução levaram à necessidade e criação doutrinário- jurisprudencial da figura do bloqueio administrativo (de matrícula) para, sem atingir a fé-pública do registro, evitar a perpetuação de fraudes e situações perversas, embora amparadas pela presunçãojuris et de jure da transcrição.

d) A atual economia globalizada necessita de sistemas registrais que permitam segurança e movimentação dos capitais. O sistema alemão apresenta segurança devido à fé-pública registral, mas peca nas dificuldades para se adequar o registro à realidade de limites eventualmente descritos de modo errado, problema que se agravaria extremamente em outros países (grande maioria) com menor tradição em cadastros precisos ou com ocupação territorial ainda em andamento.

e) No sistema germânico o governo garante o conteúdo do registro (quanto à descrição dos limites ou da origem dos títulos) e, se for responsabilizado, indeniza aos prejudicados. A implantação desse sistema em outros países ocasionará ônus excessivos “aos Estados, na medida em que, desprovidos de uma estrutura de controle de seu território, como o possui a Alemanha, certamente responderão pelas inexatitudes que, fatalmente e às escâncaras, surgirão.” (p.106).

f) Um tal quadro será imenso fator de desestímulo à universalização, porque a adoção e desenvolvimento do sistema alemão em outros países seriam realizados às

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custas dos Estados, os quais não tem “condições de controlarem a circulação das riquezas ou delas se tornarem fiadores” (p. 107).

No dizer de Barros Monteiro, o cadastro imobiliário germânico ‘é o espelho fiel da situação dominial’; e, citando Enneccerus-Kipp-Wolff, ‘que se alguém, louvado em suas informações, adquire determinada propriedade, que vem a perder mais tarde, por força de decisão judicial, tem direito a voltar-se contra o Estado, para dele reclamar indenização’. (AZEVEDO, 1976, p. 5).

3.3 O Antigo Registro Conferidor na França

A figura do registro imobiliário era desconhecida no direito romano, e sua história repousa nos costumes feudais, onde o domínio das terras representava a essência do poder do senhor, centro da organização política, econômica e social do medievo da Europa Ocidental. Com base nessa origem, havia na França espécies de registros conferidores70 de publicidade e até mesmo de validade das alienações de terras, com o claro objetivo de obtenção do consentimento inicialmente do senhor e posteriormente do nobre, dificultando a legalização das alienações efetuadas pelos particulares.

Afonso Francisco (1999, p. 84-85) informa que o sistema de registros conferidores de publicidade e de validade das alienações eram injustos, e beneficiavam a nobreza que explorava o sistema de hipotecas ocultas e que detinha enormes glebas de terras. O sistema era fruto de mentes de pessoas que estavam vinculadas ao antigo regime feudal, conforme se constatou na verificação das discussões travadas na elaboração do Código Napoleônico.

O Registro conferente e que revoltou a sociedade da França até na época de Napoleão, era exercido através de condições restritivas à publicação de certos títulos, tal como está ocorrendo desde 1937 no Brasil para pré-contratos relativos a loteamentos (PILATI, 2003, p. 59-60) e a incorporações imobiliárias (RAMBO e LOCH, 2002) aprovadas na Prefeitura e não registradas no RI, característica comum em enorme quantidade desses empreendimentos nos dias atuais, como veremos.

70 Análise do Oficial aos títulos que eram levados ao Registro na França; sistema abolido pelo Código Napoleão. Desde a década de 30 oExame (conferidor) do título está sendo efetuado pelo Oficial do RI no Brasil de modo semelhante e questionável, ao não publicarem a aquisição de direitos pelos adquirentes, nos casos de mudança na descrição dos imóveis ou na falta do registro de loteamentos e de incorporações imobiliárias aprovadas pelo Município e já existentes na realidade. Em contrapartida incompatível e conflitante, aceitam que os mesmos imóveis objetos de loteamentos e de incorporações imobiliárias aprovadas mas não registradas no RI, sejam alienados na totalidade, como se fossem simples glebas ou lotes vazios, fazendo de conta que o empreendimento, já possuindo adquirentes, não existe na realidade.

O sistema de registros conferidores costuma prejudicar exclusivamente os adquirentes que, após pagarem uma entrada ou todo valor para a aquisição do imóvel, podem se ver excluídos dos benefícios da transcrição, ficando com seus títulos fora do Cartório (Contrato de Gaveta) e à mercê da vontade dos alienantes que, em inúmeros casos, negam-se a viabilizar o registro e até mesmo a indenizar os direitos do adquirente prejudicado pelas exigências impostas à publicação de seu título.

Segundo Afonso Francisco (1999, p. 84), esses costumes foram completamente abolidos na França, omitindo-se a transcrição (registro de alienações) no Código de Napoleão, pelo princípio da isonomia, uma das máximas do ideário revolucionário pretendido na época.

A liberdade e a validade de convenção entre as partes, mediante alienações sem a interferência dos registros conferidores, e a inatacabilidade da propriedade escapando-se das hipotecas ocultas (ao não se registrarem as alienações), foram triunfos obtidos no Código Napoleônico. Segundo esse Código, perde-se e adquire-se a propriedade no ato da alienação, sem depender e sem necessidade do registro.

O direito francês somente iria restabelecer a figura da transcrição, diante da necessidade de regulamentação do sistema hipotecário, em 23 de março de 1855, mas, mesmo assim, a transcrição do contrato e a tradição assumiram um mero papel de publicidade para validade perante terceiros, continuando a ser o contrato o fato que dá origem ao direito real. (AFONSO FRANCISCO, 1999, p. 85).