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A publicidade prevista na legislação para os negócios imobiliários não é apenas para organizar e facilitar a publicidade do que está dentro do cartório (LRP, art. 16 a art. 21). O Registro Público deve divulgar todos atos jurídicos existentes na sociedade, dando autenticidade, segurança e eficácia (LRP, art. 1º) a todo ato sobre imóveis (LRP, art. 172) que for encaminhado para publicação no RI.

REGISTRO DE IMÓVEIS - Exame dos títulos - Princípio norteador - Toda interpretação deve tender para facilitar e não para dificultar o acesso dos títulos ao registro (RJTJSP, 50:403. No mesmo sentido, RJTJSP, 74:396) (SWENSSON, 1991, p. 119).

À sociedade interessa a publicação de todos atos jurídicos existentes, para que não fiquem ocultos (contratos de gaveta) à sociedade. Teria restrita utilidade a segurança proporcionada apenas pela publicidade dos negócios aparentemente legais, a critério do Oficial.

Este capítulo aprofunda a análise do funcionamento do RI, abordando o inédito sistema brasileiro de aquisição, ônus e perda da propriedade imóvel, limitando-se ao estudo vinculado ao contrato de compra e venda e seu pré-contrato denominado compromisso de compra e venda.

A interpretação aqui apresentada sobre a perda/aquisição de imóveis, procura desestruturar a doutrina que costuma impor barreiras (no RI) ao ingresso de títulos que anunciam a realização de empreendimentos que, embora existentes na realidade (parcelamentos do solo e incorporações imobiliárias), ainda não estejam registrados no competente Cartório (RI).

As barreiras à publicação desses títulos têm provocado a formação de contratos de gaveta, cujo acúmulo induziu à prática de estelionatos executados ao longo do século XX em diversas regiões do país, mediante alienação dos lotes relativos às unidades em construção já comprometidas, o que foi confirmado em Rambo et al (2003) e é objeto de comprovação do evento (local) no estudo de caso desta Tese (Capítulo 10), de modo concomitante com o teste de implantação da proposta (Capítulo 9) para conexão do RI ao CIU.

A solução proposta consiste em se provocar a publicação de todos os títulos válidos e em executar um controle fiscal sobre a emissão das guias de ITBI. Tais procedimentos desestruturam a venda por estelionato e aumentam a segurança jurídica dos negócios imobiliários relativos à propriedade verdadeira, o que facilita a solução administrativa de conflitos territoriais.

4.1 Contrato de Compra e Venda de Imóvel Anterior ao CC

O ordenamento legal anterior ao CC/1916 teve influência decisiva do direito romano. Adotando, pois, o modelo romano, o direito das Ordenações acolheu a concepção dicotômica que distingue o título e o modo de aquisição, tornando-se necessária, para a transmissão da propriedade, na compra e venda, além do contrato validamente concluído, a tradição da coisa vendida. Nessas condições, como observa Teixeira de Freitas, ‘o contrato só dá direitos pessoais, é simplesmente

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tradição’ (Consolidação das Leis Civis, p. 343, nota 2 ao art. 511).

(MAGALHÃES, 1981, p. 49-50).

Dispondo sobre os elementos da compra e venda, Luz (1994) informa quea coisa ou

o objeto do contrato deve ter existência, ainda que potencial (possibilidade concreta de vir

a existir); serindividualizada (caracterizada); ser disponível (suscetível de apropriação); e: ter possibilidade de transferência ao comprador: o objeto do contrato deve necessariamente pertencer ao vendedor (ou à pessoa que autorizou a venda). Neste particular, interessa ao comprador verificar previamente tal fato, sob pena de vir a sofrer os efeitos da evicção93 se a res tratar-se de imóvel, ou de busca e

apreensão94, se for móvel. [...] se o imóvel pretendido encontra-se [...] gravado por ônus reais, [...] o vendedor sofre restrições no seu direito de [...] disposição do imóvel (LUZ, 1994, p.25-26). (Observação nossa).

Luz (1994, p. 26) esclareceu que diferem os efeitos do estelionato praticado pelo vendedor que não é o legítimo proprietário, daquele praticado pelo comprador que efetuar um pagamento viciado por dolo (cheques sem fundos). No primeiro caso o título é nulo por ser efetuado com venda a non domino, e há transferência apenas de uma propriedade

putativa ou aparente. No segundo caso, porém, o registro implica na transferência da

propriedade verdadeira, cujo título fica sujeito à anulabilidade.

Conforme Magalhães (1981, p. 50-52), o direito das Ordenações Portuguesas (Ord., L. 4.º, T. 2.º) determinava que o acordo firmado sobre o preço e a coisa certa impedia o arrependimento unilateral e, oferecida a quitação, o vendedor obrigava-se a entregar a coisa, ‘se for em seu poder’; caso contrário pagaria indenização. E a Ord., L. 4.º, Tít. 7, § 2.º ratificava que o vendedor poderia vender e entregar a coisa ao terceiro, desfazendo o contrato anterior mediante indenização. Para proteger o primeiro adquirente, o contrato precisaria ser deformação real (por força de lei) e com efeitos translativos:

Por conseguinte, no nosso antigo direito, a compra e venda constituía um contrato que [...]caracterizava-se como consensual, quanto à sua formação, e obrigatório, quanto aos seus efeitos. Como contrato consensual, cujas obligationes quae

consensu contrahuntur, distinguia-se dos reais, cujas obligationes quae re contrahuntur (Teixeira de Freitas, ob. Cit., nota 3 ao art. 511, p. 343). E como

contrato obrigatório, não se confundia com os imediatamente translativos, ou de efeito real instantâneo (reali quoad effectum), disciplinados pelo direito franco italiano [...]. Produzindo somente obrigações, a modificação jurídico-real visada pelas partes só se concretizaria, mediante a tradição da coisa e o pagamento do preço. (MAGALHÃES, 1981, p. 51).

93Perda parcial ou total da coisa, objeto da compra e venda, que o seu adquirente sofre em virtude de sentença judicial que a reconhece como propriedade de terceiro. (Conceito operacional no original citado). Ver evicção no CC, arts. 447-457.

94Diligência policial ou judicial que tem por fim procurar e trazer a coisa litigiosa (furtada ou sonegada) a pedido de uma das partes. (Conceito operacional no original citado).

As reformas na legislação hipotecária foram realizadas para a proteção do crédito (MAGALHÃES, 1981, p. 53), de modo que a hipoteca inscrita antes da transcrição do título de transmissão gravava o imóvel (Lei n. 1.237/1864, art. 239), valendo contra o contrato que, até então, só obrigava os contratantes (art. 257). Mas o legislador protegeu a propriedade verdadeira (derivada do domínio), ao determinar que “a transcrição não induz a prova de domínio, que fica salvo a quem for” (art. 258).

Não havendo impedimento legal e, tal como no sistema romano, nossas escrituras passaram a provar esse domínio pela tradição ficta, inserindo a cláusula constituti, segundo a qual o vendedor desprende-se de imediato dos direitos, domínio, ação e posse que exercia para si sobre o imóvel, passando a detê-los para o comprador, que os assume conforme previsto no contrato (MAGALHÃES, 1981, p. 52-56). Assim, o vendedor que antes era o verdadeiro proprietário, passava a possuir apenas a detenção do imóvel, cuja propriedade putativa poderia ser objeto de eventual estelionato numa segunda alienação95.

Ora, já observava Teixeira de Freitas, que, com a inserção da cláusula constituti em todas as escrituras, resultara sem aplicação a regra da preferência da aquisição da propriedade pela tradição, na venda sucessiva do mesmo imóvel, pelo que se

podia dizer que entre nós “o sistema espiritualista do Código Civil da França” imperava (MAGALHÃES, 1981, p. 56).

Mas a doutrina entendeu diferente:

Debateu-se, porém, na doutrina e na jurisprudência, a questão de saber se a

transcrição substituíra ou não a tradição, na transmissão da propriedade imóvel

por atos entre vivos. Em outras palavras, desenvolveu-se uma controvérsia em torno do caráter constitutivo ou declaratório da transcrição. (MAGALHÃES, 1981, p. 57).

Segundo a versão com transcrição de caráter constitutivo, ficaria invertida a função do consagrado princípio da evicção96 (FERREIRA, 1993, p. 236)97, pois o ‘evicto’ teria que pedir indenização por ter perdido a propriedade verdadeira para o proprietário putativo, o que, tudo indica, seria um completo absurdo.

95Ver item 4.8.

96Ver evicção no CC, arts. 447-457.

97evicção sf. Jur. Perda que sofre o adquirente de uma coisa em conseqüência da reivindicação judicial do verdadeiro dono.

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