• Nenhum resultado encontrado

O significado e o sentido nas aulas de linguagem escrita

CAPÍTULO 3 TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL E O ENSINO DA LINGUAGEM ESCRITA

3.5 O significado e o sentido nas aulas de linguagem escrita

A psicologia cultural ou histórica considera que os instrumentos culturais como a escrita, a aritmética, as ciências sistematizadas em saberes escolares, “expandem as possibilidades humanas, superando os processos cognitivos elementares na direção dos processos superiores.” (MARTINS, 2006, p. 57). O ensino organizado de forma a permitir análises, sínteses e generalizações cada vez mais complexas supõe “a superação de conceitos sincréticos e espontâneos em direção aos conceitos científicos” (MARTINS, 2006, p. 57), e requer atividades com sentido e significado.

Sobre a existência ou não de sentido nas tarefas da escola, Leontiev (1978) lembra que o professor expõe oralmente as características do objeto de estudo, detalha, lembra e/ou omite algumas partes etc., supondo que nessa exposição o aluno esteja acompanhando-o, porém ele se esquece de, junto com o aluno, explorar o “foro interno” do objeto. A partir dessa constatação, Leontiev recomenda que o método a ser adotado utilize o “caráter didático do próprio objeto”, em um processo ativo, em que o aluno se apropria21 dos objetos culturais. A partida será sempre a do abstrato para o concreto, essencial para o desenvolvimento do pensamento teórico. Não se trata, pois, de uma apreensão empírica do objeto, mas de um movimento que permite retomar a origem e o desenvolvimento dos fenômenos e ou os objetos.

Para que essa apropriação ocorra, no entanto, é preciso que a atividade a ser realizada pelo aluno “reproduza os traços essenciais da atividade acumulada no objeto.” (LEONTIEV, 1978, p. 268). Outra característica assinalada pelo autor para o processo de apropriação refere-se ao processo mediatizado pelas relações entre os seres humanos, o que, para Duarte (2004, p.4), representa uma “transmissão de experiência social, isto é, um processo educativo no sentido lato do termo.”

21 Duarte (2004) afirma que o processo de apropriação de um objeto se realiza com a utilização desse objeto, e às

vezes é preciso reproduzir a atividade de produção do objeto. Além dessa característica, outro fator determinante para a apropriação dos bens culturais é a de que “a apropriação da cultura é o processo mediador entre o processo histórico de formação do gênero humano e o processo de formação de cada indivíduo como ser humano.” (DUARTE, 2004, p. 4).

O processo educativo, no entanto, não conduz apenas à apropriação, mas também à objetivação, que se realiza na produção e reprodução da cultura humana, seja ela material ou não. A objetivação ocorre a partir das apropriações. O processo de internalização é detalhado por Leontiev (1978) como um processo em que o sujeito reproduz para si capacidades humanas que são inicialmente externas a ele; porém, como esse sujeito é ativo (e cada sujeito é ativo a partir de formas particulares de internalização, isto é, dependente da história de cada um), as objetivações realizadas serão diferentes para cada um. Desse modo, a humanização dos indivíduos vai depender do lugar que ele ocupa nas relações sociais, e não dos seus atributos biológicos.

Leontiev (1978), ao tratar da atividade, parte do pressuposto de que a atividade humana é diferente da do animal, uma vez que o homem não estabelece uma relação imediata entre o motivo e o objeto da atividade; a atividade humana tem uma estrutura mais complexa.

A atividade é diferente da ação. A ação “é o processo no qual não há uma relação direta entre o motivo e o conteúdo (ou objeto) dessa ação” (LEONTIEV, 1978, p. 69). A ação é intencional e operacional. Cada ação possui diferentes operações, as quais se referem aos procedimentos que o indivíduo utiliza para realizar a ação. Uma atividade pode tornar-se uma ação quando destituída do seu motivo inicial, ou o contrário, uma ação pode ganhar um motivo próprio, transformando-se, assim, em atividade (DUARTE, 2004).

Na maioria das vezes, as atividades humanas são compostas de um complexo conjunto de ações. A função da atividade é a “de situar o homem na realidade objetiva e transformá-la em uma forma de subjetividade.” (LEONTIEV, 1978, p. 74). É na sua relação com o mundo que o sujeito vê nascer as suas motivações, e a necessidade, um determinado estado de carência, é a geradora das motivações. São as motivações que impulsionam os indivíduos a agirem e suprirem as suas necessidades. É preciso, portanto, diferenciar a necessidade como condição interior (premissa da própria atividade), e a necessidade como aquilo que orienta e regula a atividade concreta do sujeito no seu meio objetivo. Para Leontiev,

O objeto da atividade aparece de duas maneiras: primeiro em sua existência independente como subordinando e transformando a atividade do sujeito; segundo como imagem do objeto, como produto do reflexo psíquico de sua propriedade, que se efetua como resultado da atividade do sujeito e não pode efetuar-se de outro modo. (LEONTIEV, 1978, p. 68. Tradução nossa.).

O reflexo psíquico dos indivíduos sofre transformações ao longo de sua vida e, segundo Leontiev (1978, p. 82), “surge a consciência, ou seja, a reflexão da realidade, de sua atividade e de si mesmo”, por parte do sujeito. Esse processo de “co-ciência” se desenvolve unicamente no social, ou unicamente na presença da consciência social e da linguagem.

Nesse processo de tomada de consciência, os conceitos (os significados), por si sós, não produzem pensamento, mas são meios para engendrá-los.

No movimento da individualização, os significados desligam-se do sujeito concreto, ficando desprovidos de sensorialidade objetiva. Outro aspecto desse movimento é o da

parcialidade, ou seja, do sentido pessoal que os significados adquirem sob o ângulo do pessoal. Os sentidos não são automáticos nem instantâneos, mas são engendrados “nas relações vitais reais do homem” (LEONTIEV, 1978, p. 120), e essa realidade opera no homem por significados prontos por meio da comunicação de conceitos, conhecimentos, opiniões, seja de forma individual ou coletiva.

A função inicial da linguagem é a de comunicação e, segundo Vigotski,

Para transmitir a outra pessoa qualquer sensação ou conteúdo da consciência não há outro caminho que catalogar o conteúdo que se transmite dentro de uma classe determinada, de um determinado grupo de fenômenos, e isso exige necessariamente, como sabemos, uma generalização. Resulta, por conseguinte, que a comunicação

pressupõe necessariamente generalização e o desenvolvimento do significado verbal, isto é, que a generalização só é possível quando se desenvolve a comunicação. Portanto, as formas superiores de comunicação psíquica, próprias do homem, são possíveis unicamente, graças a que este, com a ajuda do pensamento, reflita a realidade de forma generalizada. (VYGOTSKI, 1993, p. 22. Tradução nossa. Grifos do autor.).

A incorporação do sentido nos significados, constituídos historicamente, manifesta-se por meio da linguagem como forma de comunicação da consciência social. Ao se transformarem em conceitos, os significados se individualizam e se subjetivam. Em outras palavras, tornam-se abstratos, ganhando vida própria, porém sem perder sua historicidade.

A história, nesse caso, é preservada com “o uso específico da palavra” (VYGOTSKI, 1993, p. 132). Portanto, a interação e a mediação verbal dos conteúdos entre professor e alunos, bem como entre um aluno e os outros, é fator poderoso de desenvolvimento. Junto a esses dois importantes fatores, um outro se impõe: o da situação de produção das diferentes formas de linguagem. Esse último fator tem a ver com a organização do ensino. Algumas recomendações nesse sentido foram feitas por Leontiev:

É bem sabido quão importante é o feito de indicar com absoluta precisão aos alunos [...] a ordem em que devem realizar as tarefas escolares, exigir-lhes determinada distribuição exterior do material nos trabalhos escritos, etc. Em rigor, também a anotação das perguntas para resolver as tarefas desempenha, em particular, esse mesmo papel de “trazer para fora” a ação teórica que desenvolvem os alunos. (LEONTIEV, 1978, p. 199. Tradução nossa.).

No ensino da escrita, a estruturação e a direção de ações teóricas dos alunos envolvem, entre outros elementos, a direção de sua percepção e o encaminhamento da sua atenção. Destarte, o material didático requerido para um ensino assim complexo é aquele cuja

“finalidade é servir de apoio externo às ações internas que o aluno efetua sob a direção do professor.” (LEONTIEV, 1978, p. 201). Nesse caso, o material, por si só, não é objeto direto da ação desenvolvida pelo aluno, mas, “o material didático é neste caso o material sobre o qual e através do qual se busca a assimilação de determinado tema”. (LEONTIEV, 1978, p. 201. Grifo do autor.). Ao enfatizar o papel predominante do material didático em situações nas quais a aprendizagem requer abstrações, Leontiev faz duas sugestões importantes para este estudo:

[...] como a consciência é resultado de um processo rico em conteúdo, orientado a um determinado fim, a introdução do material didático no ensino deve levar em conta indiscutivelmente pelo menos [...] dois momentos psicológicos [...]: 1) que papel concreto deve cumprir o material didático na assimilação, e 2) em que relação se encontra o conteúdo objetivo do dito material com o objeto de que se deve tomar consciência e que deve ser assimilado. (LEONTIEV, 1978, p. 203. Tradução nossa.).

O conteúdo objetivo do ensino da escrita na escola, para Leontiev (1978), pertence ao domínio “dos fenômenos objetivo-históricos ideais”, ou seja, aqueles que com o tempo representam generalizações significativas de uma dada realidade em uma dada situação. Os significados assim constituídos são pontos de partida para qualquer ensino e qualquer organização de ensino, pois esse significado

[...] existe também como fato da consciência individual. O homem percebe e concebe o mundo como ser sócio-histórico, está munidode noções, conhecimentos de sua época, de sua sociedade, e por sua vez está limitado por eles. A riqueza de sua consciência não se reduz de modo algum à riqueza de sua experiência pessoal. O homem conhece o mundo não como um Robinson, que faz descobertas por sua conta em uma ilha desabitada. No curso de sua vida o homem assimila a experiência da humanidade, a experiência das gerações precedentes; isto ocorre precisamente através da assimilação dos significados pelo homem, na medida em que os assimila. (LEONTIEV, 1978, p. 213. Tradução nossa.).

O significado mediatiza a tomada de consciência do mundo pelo homem e, nessa mediação, determina o sentido para cada indivíduo em particular. Sob esse ângulo, pode-se concluir que o sentido não se ensina, mas é possível desenvolvê-lo no processo de aprendizagem, quando o professor enriquece o aluno com as informações que permitem a tomada de consciência do objeto que precisa ser assimilado (LEONTIEV, 1978, p. 221).

Galperin (1988, p.39), em pesquisa sobre a transformação das ações materiais em ações mentais, isto é, no plano da reflexão, considerou que os conceitos, nas condições do ensino que se realiza na escola, são desenvolvidos por meio de atividades que utilizem das características (presentes desde o princípio) do objeto do conhecimento.

Nesse processo, a linguagem passa da forma externa de comunicação verbal para um plano interno, convertido em pensamento verbal, e representa uma forma indispensável de auxílio da atividade psíquica do homem.

Segundo o autor, as ações envolvidas nessas atividades reveladoras das características do objeto ocorrem por etapas:

• o professor apresenta o conceito ao aluno, demonstrando o que representa o novo fenômeno, bem como suas características;

• o aluno anota em papel as características destacadas do fenômeno, para ler em voz alta e discutir sobre elas (ação no plano concreto);

• o aluno recorda e reproduz oralmente, sem o apoio das anotações, as características discutidas e anotadas na etapa anterior (ação no plano da linguagem);

• o aluno sob novas condições, nas quais recebe mais detalhes do fenômeno analisado, em silêncio, compara as características com as novas condições e relata as suas conclusões (ação de dedução geral), a partir da existência ou não das características levantadas inicialmente para aquele fenômeno;

• a etapa seguinte é aquela em que as ações se realizam sem erros, num caminho de redução e automatização das ações para a apreciação dos fenômenos (a ação mental passa nesse momento para sua fase definitiva);

• na última etapa, depois de automatizado, o aluno reconhece de imediato o conceito do fenômeno buscado, ou sua ausência (a ação, nessa etapa, em um plano interno, manifesta-se por descrição do procedimento e, de forma imediata, é deduzida na consciência ao ser utilizada pelo aluno automaticamente).

Trata-se de “um conjunto de ações objetivas externas, transformadas em ideais e, em particular, em ações mentais” (GALPERIN, 1988, p. 42); o ideal é representado pelas ações materiais, transplantadas para a cabeça humana e submetida a trocas com ela. As trocas são materializadas nas reduções, nas generalizações, nas assimilações, constituindo-se como base para novas ações mentais.

As conclusões a que o autor chega são de que as ações requeridas para o sucesso dos processos psíquicos da aprendizagem de conceitos e ou fenômenos passam pela organização externa dos materiais requeridos pelas ações que evidenciam as características dos objetos e ou conceitos que se quer aprender.

Pesquisas mais recentes são desenvolvidas no sentido da busca de uma didática que possibilite a escrita com sentido afirmativo para o desenvolvimento do aluno na escola (DIONISIO; MACHADO; BEZERRA, 2005; ROJO, 2006; SCHNEUWLY; DOLZ, 2004; e BRONCKART, 2006), mas existe um distanciamento entre a teoria e a atividade que produz esse sentido. Essa distância é mediada pela organização dos meios materiais e os planos concretos de ação.

O plano concreto de produção de textos na sala de aula normalmente caracteriza-se pela transmissão de algo acabado, e o professor não leva em conta as diferentes relações existentes na situação de produção. De acordo com Brait (2006) que trabalha o conceito de texto na obra de Bakhtin, a situação não verbal está implicada na verbal, ou seja, é importante considerar se os interlocutores se conhecem, se há hierarquias entre esses interlocutores, e se eles compartilham ou não o mesmo universo, os mesmos conhecimentos, pressupostos e sentimentos (BRAIT, 2006, p. 66). Uma enunciação assim desenhada aponta para outras questões além das referências do autor:

Aponta, por exemplo, para o ensino brasileiro, para as formas de constituição de um sujeito letrado, para as funções da escola na constituição do cidadão. E, certamente, para outros tantos lugares que, devendo ser de inclusão, revelam-se como sendo de exclusão. (BRAIT 2006, p. 71).

Outro fator determinante para que o texto seja produzido e o enunciado alcance seu objetivo é o de ele se dirigir a alguém, isto é, ter um destinatário, que pode ser concreto, real, ou presumido. A presunção pode ser a do autor ou ainda a da circulação para o caso específico da escrita. O destinatário, nesse caso, é geralmente o professor, que precisa não enxergar apenas os erros, “mas um discurso que diz muitas coisas sobre o aluno, sobre o ensino, sobre as concepções de linguagem e suas diferentes formas de aquisição.” (BRAIT, 2006, p. 72).

Sob esse ângulo,

Toda ação de linguagem implica, por outro lado, diversas capacidades da parte do sujeito: adaptar-se às características do contexto e do referente (capacidade de ação), mobilizar modelos discursivos (capacidades discursivas) e dominar as operações psicolingüísticas a as unidades lingüísticas (capacidades lingüístico-discursivas). (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004, p. 74).

Schneuwly e Dolz (2004, p. 74. Grifos dos autores.) levantam a hipótese de que “é

através dos gêneros que as práticas de linguagem materializam-se nas atividades dos aprendizes” e, com base em Bakthin (2006 a), definem os gêneros como formas relativamente

estáveis de enunciados que têm origem em situações de uso, e como entidades culturais, modelos comuns que servem para determinar horizontes e expectativas.

De acordo com Schneuwly e Dolz (2004), três características são essenciais para a definição de gênero:

1) os conteúdos e os conhecimentos que se tornam dizíveis por meio dele; 2) os elementos das estruturas comunicativas e semióticas partilhadas pelos textos reconhecidos como pertencentes ao gênero: 3) as configurações específicas de unidades de linguagem, traços, principalmente, da posição enunciativa do enunciador e dos conjuntos particulares de seqüências textuais e de tipos discursivos que formam sua estrutura. (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004, p. 75).

Os gêneros podem, portanto, pela estabilidade e pelas outras características detalhadas acima, tornar-se a porta de entrada para a reflexão sobre as práticas de linguagem, além de evitarem que as práticas de linguagem em sala de aula sejam apresentadas de forma fragmentada.