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1. INTRODUÇÃO

1.2. Objetivos

Os elementos que constituem a memória são necessariamente sociais. Transitam em quadros espaciais e temporais tendo como instrumento a linguagem. Agora, o indivíduo recorda de algo somente quando está imerso na perspectiva de um grupo. A memória tem a função de construir ou, na maioria das vezes, conservar identidades. Dessa forma, entendemos

“memória coletiva” como uma prática social e cultural de diferentes sociedades que “possibilita a abordagem e análise de acontecimentos que, por distintas formas e mecanismos, apesar da insistência das imposições do esquecimento, mantêm-se na lembrança das coletividades” (MENDOZA GARCÍA, 2007, p. 314). Nesse mesmo sentido, o “esquecimento social” é gerado a partir da implantação de uma série de práticas e processos que permitem o encobrimento de acontecimentos ou fatos de interesse para algum grupo ou coletividade, com a finalidade de que desapareçam como referências sociais.

Consideramos esses conceitos para tentar explicar que não existe um número significativo de pesquisas sobre a guerra suja mexicana, e que este processo não seja considerado como parte da história por uma parcela importante da população. Partindo da definição do conceito “esquecimento institucional”46elaborada pelo psicólogo social Jorge Mendoza García, podemos sugerir que, uma vez tomado o poder por um grupo, a necessidade de se manter e, sobretudo, de legitimar sua política, impõe conscientemente uma versão oficial da história. O grupo precisa, então, mostrar-se como o mais adequado, o mais qualificado para o exercício do poder.

Segundo Mendoza, o grupo no poder acessa a memória coletiva para, posteriormente, isolá-la ou esvaziá-la de significados através de instituições políticas, acadêmicas, educativas, militares, clericais e, recentemente, através dos meios de comunicação de massa. Desta maneira, tais instituições resultam ser “as únicas capacitadas para dizer o que se sucedeu e o que não aconteceu, o que há que lembrar e o que esquecer; [...] porque o deixar de comunicar o que em algum momento aconteceu e se soube que advém de uma forma de esquecimento” (MENDOZA GARCÍA, 2007, p. 322).

A imposição de limitações para o estudo histórico das atividades clandestinas do Estado poderia responder à possibilidade de que o sistema político mexicano construiu com sucesso uma série de instituições de alcance nacional. Por intermédio delas geraram-se os consensos necessários para o “ocultamento” da memória da guerra suja, e seu correlato, os próprios movimentos sociais e militares de oposição:

um dos efeitos que teve tal força conformadora da cultura dominante é o acobertamento [da memória e dos movimentos] com um discurso capaz de questionar sua existência e realidade; de imprimir um selo de legitimidade a respeito de seus fundamentos; ou até de ser ignoradas e omitidas da linguagem (OCEJA, 2013, p. 9).

46 Segundo o autor, existem duas formas de consolidar o esquecimento social, além do provocado a partir das instituições: por meio da proibição (imposição de castigos como a prisão o a morte); e pela velocidade da informação nas sociedades contemporâneas (MENDOZA GARCÍA, 2007, p. 320).

Atendendo a esta reflexão, a proposta desta pesquisa é apresentar a contradição existente entre o discurso oficial e as atividades clandestinas que, desde o Estado, operavam contra a oposição, ou seja, numa institucionalização da contrainsurgência47. Propomos problematizar a guerra suja mexicana desde as narrativas do próprio Estado, sublinhando as contradições entre o discurso público (emitido pelos presidentes) e o discurso privado do poder (relatórios dos agentes das agências de inteligência).

Os serviços de inteligência no México foram fundamentais para a estabilização do contexto mexicano depois de 1929. Nasceram com o Estado priísta. Nesse mesmo ano foi criado o Departamento Confidencial, com o objetivo de auxiliar o governo dando seguimento à investigação dos possíveis fatores desestabilizadores. A partir de 1938 coloca-se maior ênfase na discrição dos agentes, que começam a tecer redes de colaboração com organismos de caráter não oficial, como a Cruz Vermelha Mexicana ou as autoridades universitárias. Em 1946, por decreto do primeiro presidente civil (Miguel Alemán Valdés), o Departamento Confidencial troca de nome para Dirección Federal de Investigaciones Políticas y Sociales (IPS). Também se cria a Dirección Federal de Seguridad (DFS), organismo reformulado a partir do esquema da Federal Bureau of Investigation (FBI na sigla em inglês) dos EUA. A IPS até 1964 permanece com a mera função de observar eleições e elaborar biografias de candidatos. A DFS, por outro lado, tinha uma função operacional, além da execução da espionagem política (AGUAYO, 2014a, p. 73). Um ano depois (1947) cria-se o Estado Mayor Presidencial, com a finalidade de preservar a segurança do presidente e de sua família, para depois conformar um pequeno grupo de analistas políticos, constituídos como “organismo de inteligência para informar oportuna e verazmente ao presidente e ao secretário da SEGOB dos diferentes problemas, assim como da origem e causa dos mesmos, para que […] se pudesse prever a evolução dos conflitos e evitar colapsos econômicos e sociais” (IBARROLA, 2003, p. 64).

São analisados, então, os informes elaborados pela polícia política mexicana, pois, a nosso ver, estes representam o coração das atividades clandestinas do Estado, no princípio de que ao tratar-se de assuntos que envolvem a segurança interna, guardavam uma vocação secreta. Mostrando as contradições com respeito ao discurso oficial, pretendemos, na medida em que as fontes o permitam, reconstruir alguns episódios da negada e silenciada guerra suja, sob a ótica repressiva.

47 Entendemos, por instituição, não unicamente as entidades consagradas nos documentos legais, como também as “práticas informais, que inclusive podem ser ilegais, que efetivamente regem a conduta cidadã” (MEYER, 2013). Ou seja, as regras e valores que regulam uma disputa ou o exercício de poder e que integram e fortalecem um regime político.

Em outras palavras, o objetivo não é fazer uma história do movimento armado mexicano desde a perspectiva construída pelo Estado. Pretendemos abordar os temas principais da Doutrina de Segurança Nacional e da Doutrina Contrainsurgente – localizadas nas narrativas oficiais – para salientar as contradições que possibilitaram o ocultamento da guerra suja.