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Ao longo do desenvolvimento desta investigação fomos movidos pela procura de respostas à seguinte questão: quais as razões que influenciam os médicos e enfermeiros com idades entre os 55 e os 65 anos de dois hospitais do Porto ao prolongamento temporal da sua vida ativa?

A nossa opção pelo estudo de dois grupos profissionais em contexto hospitalar insere-se numa linha de investigação sociológica recente: a sociologia da saúde. Apesar da crescente produção teórica neste domínio do saber, reconhecemos que perduram ainda algumas dificuldades de delimitação do campo de saber sociológico sobre o contexto hospitalar, tributárias da recentidade da consideração da saúde, doença e da medicina enquanto objetos de investigação sociológica, Carapinheiro (1993). Tradicionalmente as reflexões sobre as dimensões organizacional e empresarial dos hospitais eram desenvolvidas pelas áreas da gestão ou da administração hospitalar que, pela sua natureza e objetivos, não atribuíram relevância ao hospital enquanto instituição social. Valorizaram dimensões da gestão hospitalar, nomeadamente os bloqueios políticos à sua atividade e o enquadramento institucional do doente.

Portugal comungou este interesse tardio sobre a saúde com outros países com maior tradição na investigação em ciências sociais o que Carapinheiro (1993) justifica com base num reconhecimento de um carácter “natural” e “biológico” da saúde e da

morte que escapava a determinações sociais e, portanto, não exigia uma abordagem complementar à desenvolvida pelas ciências da vida.

O interesse científico da sociologia pela medicina tem sido confrontado com a força e legitimidade dos saberes médicos e com o poder institucional dos seus representantes. Este facto justificou que uma primeira fase de desenvolvimento da sociologia médica ocorresse em clima de tensão e equívoco entre dois modelos de racionalidade científica. Inicialmente, a sociologia assumiu um carácter instrumental, contribuindo para a resolução de problemas concretos da prática médica, para o aumento da sua eficácia e para a determinação do impacto de fatores sociais na prevenção da saúde ou para o tratamento da doença. Esta fase foi marcada por uma maior autonomia científica e independência da socioloia face à perspetiva médica. Num momento seguinte manteve-se o carácter instrumental da relação entre as duas ciências mas de forma invertida, ou seja, a intervenção do sociólogo deixou de servir as necessidades da medicina e passou a orientar-se para a produção de conhecimento no sentido do enriquecimento da teoria sociológica.

Do carácter mutuamente exclusivo das duas práticas sociológicas resultou uma perspetiva segundo a qual o sociólogo teria que optar por uma ou outra, reforçando assim a ambivalência do seu papel neste domínio do conhecimento e acentuando as dificuldades na definição da sua posição. Contudo, as fronteiras estanques entre os dois tipos de prática sociológica têm-se diluído constituindo cada vez mais uma barreira falsa e, por isso, facilmente ultrapassável (Scambler cit. in Carapinheiro, 1993). O papel que assumimos nesta investigação é exemplo da possibilidade de serem assumidas simultaneamente as duas posturas. Os contributos teóricos que produzimos com esta investigação acerca das características dos grupos profisisonais em estudo, da sua satisfação profissional, da avaliação do seu trabalho e dos seus pares, das auto e hetero representações e das motivações subjacentes à sua intenção de prolongamento temporal, ou não, da vida ativa têm um amplo potencial de utilização.

Por um lado enriquecem as grelhas sociológicas de análise dos temas referidos. Por outro, podem ser utilizados em políticas e medidas concretas de intervenção junto dos profisisonais estudados. Apesar do potencial que reconhecemos à sociologia da saúde, concordamos com Freidson (2008) quando o autor afirma que, apesar do desenvolvimento desta área a mesma não adquiriu ainda a independência e dinamismo observado em outras especialidades sociológicas.

No início da década de 1990, Carapinheiro (1993) apontava já a necessidade de uma nova orientação para a sociologia na saúde que permitisse ultrapassar a aparente dicotomia no posicionamento do sociólogo e que promovesse a sua efetiva afirmação enquanto área do saber. Para isso, defendia a produção de análises estruturais que considerassem as profissões e as instituições médicas dando conta, nomeadamente, das ideologias dominantes, das relações dialéticas estabelecidas e dos seus alvos de exercício. Para a autora, a análise sociológica deveria inserir-se nos moldes das investigações realizadas em organizações industriais. Considerava ser fundamental que a medicina fosse perspetivada enquanto instituição social com arranjos organizacionais específicos, relações sociais e quadros normativos inerentes.

Na investigação que desenvolvemos procurámos precisamente seguir a nova orientação, considerando as especificidades do contexto hospitalar em que se enquadram as profissões analisadas e as relações e representações sobre e entre os dois grupos profissionais. Partilhamos a perspetiva de que o sucesso da investigação sobre as dinâmicas no campo da saúde dependerá, em larga escala, de a mesma ser desenvolvida por áreas do saber fora do campo específico da medicina e que tenham, portanto, uma posição independente. Foi precisamente isso que procurámos fazer ao desenvolvermos uma abordagem marcada por traços claramente sociológicos.

Optámos por profissões do setor da saúde por reconhecermos a sua importância social e cultural no quadro geral do sistema das profissões (Freidson, 1986). Além disso, não fomos alheios à atual discussão acerca da sustentabilidade económica do SNS que o coloca na ribalta da discussão política, às políticas públicas de saúde operadas nos últimos anos neste setor e com efeitos, nomeadamente, na gestão das organizações hospitalares e nas carreiras profissionais de medicina e enfermagem.

Considerámos também as medidas de incentivo ao prolongamento temporal da vida ativa sustentadas, em larga medida, em alterações na legislação que enquadra a passagem à aposentação.

Não fomos ainda alheios às especificidades dos profissionais que estudámos no quadro da população ativa portuguesa. O facto destes apresentarem características marcadamente distintas das observadas na maioria dos trabalhadores portugueses na mesma faixa etária (Fernandes, 2007) contribuem em larga medida para o nosso interesse na sua análise. Contrariamente à generalidade dos trabalhadores mais velhos portugueses, os médicos e enfermeiros estudados são detentores de elevadas qualificações académicas e foram alvo ao longo da sua trajetória profissional de um

intenso processo de formação, auferem elevadas remunerações e recolhem da sociedade um elevado prestígio e reconhecimento social. Não ignoramos, contudo, que as características referidas são particularmente notórias entre os médicos. Considerando os atributos referidos, considerámos inicialmente que a posição privilegiada dos profissionais em estudo aumentaria potencialmente a sua intenção de prolongamento temporal da vida ativa.

A escolha das organizações hospitalares baseou-se na vinculação atual dos grupos profissionais ao contexto hospitalar, dando-se assim continuidade histórica às condições de emergência, desenvolvimento e consolidação da medicina e da enfermagem.

Não fomos também alheios à grande importância do HSJ e do HSA hospitais nos sistemas de saúde, ensino e investigação em Portugal1. São dois hospitais gerais, centrais e universitários que, além de serem os maiores do distrito do Porto, se distinguem pela sua notória importância a nível nacional pelas especialidades e tratamentos que disponibilizam às suas populações de influência e referência. Importa ainda reforçar a sua ligação às duas escolas de medicina da Universidade do Porto, tendo, portanto, uma forte componente de ensino e investigação científica2. Salientámos, ainda, a importância do elevado grau de complexidade das duas organizações que, por isso, fazem uma utilização intensiva dos seus recursos humanos, económicos, materiais e tecnológicos. Considerámos ainda as elevadas expectativas sobre o seu desempenho tanto na prestação de cuidados de saúde como de ensino. Não descurámos os desafios da posição dominante das duas organizações no quadro de prestação de cuidados de saúde e de ensino da medicina em Portugal em consequência da saída por aposentação de médicos e enfermeiros com larga experiência profissional e conhecimentos potencialmente mobilizados para o sucesso dos dois hospitais.

Depois de termos definido o objeto de estudo desta investigação e de termos fundamentado as motivações que levaram à sua eleição, iremos indicar e explicar os objetivos que nortearam o desenvolvimento desta investigação, bem como as hipóteses teóricas que serão analisadas.

1 A documentação inerente ao pedido de autorização para realização desta investigação no HSJ e no HSA

pode ser consultada, respetivamente, nos Anexos 1 e 2.

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