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1.2. OBJETIVOS E HIPÓTESES

1.3.2. REFLEXÃO SOBRE O CAMINHO METODOLÓGICO

Ao longo da investigação que desenvolvemos mantivemos a consciência de que o contacto com os participantes e a nossa presença nas organizações hospitalares eleitas

poderia motivar uma reação defensiva do próprio sistema, ou seja, tanto dos profissionais como das organizações em si. Esta é, de resto, uma consequência comum em investigações em contextos organizacionais que se pode constituir, de facto, como factor de rutura ou ruído, sobretudo quando estas não correspondem, no imediato, a uma mais-valia para as instituições ou grupos em estudo (Wolff cit. por Flick, 2004).

Ao longo do nosso estudo sentimos algumas dificuldades sobretudo a dois níveis: organizacional e individual. Estas foram ultrapassadas, ou pelo menos mitigadas, por via do estabelecimento de uma relação de transparência e clareza quanto ao âmbito e objetivos desta investigação. Esforçamo-nos por criar e fortalecer uma relação de confiança propiciadora de um efetivo envolvimento das partes e atenuadora das discrepâncias de interesses e perspetivas das partes envolvidas. Apresentámos, portanto, um dossiêr completo acerca do nosso estudo, nomeadamente ao nível dos seus objetivos e metodologia, aos organismos competentes de cada organização hospitalar, tendo a concretização do mesmo sido aprovada pelas respetivas Comissões de Ética.

No caso particular dos participantes no estudo, foi fulcral a garantia do anonimato e da confidencialidade das informações recolhidas através do inquérito por questionário mas, também, de outros contatos realizados por nós. Foi, ainda, nossa preocupação respeitar e cumprir as normas e procedimentos das duas organizações, de forma a mitigar os possíveis impactos da mesma no normal funcionamento das organizações e no trabalho dos seus profissionais.

Os profissionais não esconderam a surpresa, o reconhecimento, mas também algum desconforto face ao confronto com o tema de aposentação que, considerando a sua idade, lhes é tão próximo e sensível. Este envolve uma reflexão muito ponderada sobre a decisão a tomar, a qual influencia necessariamente a qualidade dos seus projetos de vida, com as suas expectativas acumuladas ao longo das suas trajetórias de vida pessoal e profissional. Além disso, os profissionais consideraram o inquérito extenso, facto que para nós tinha constituído um grande desafio aquando da sua elaboração. Tratando-se de um estudo inovador foi difícil selecionar e conter a nossa curiosidade sobre os múltiplos aspetos a questionar face à posição destes profissionais sobre o tema em análise; na sua grande maioria, ambos os grupos evidenciaram resistência ao preenchimento do inquérito pela indisponibilidade das suas rotinas e pelo próprio tema. Uns, porque ainda não tinham pensado no assunto ou não queriam ainda pensá-lo, numa atitude, percecionada por nós, de fuga adiada; outros, porque se

anos e outros, ainda, por medo em manifestar a sua opinião pelo suposto risco de serem identificados pela organização hospitalar através dos dados sociodemográficos solicitados e pela categoria profissional.

Alguns participantes no estudo revelavam este receio, pois aceitavam o inquérito para conhecerem o que perguntávamos em concreto mas posteriormente, no momento da recolha devolviam-no em branco. Este receio foi também evidenciado por alguns diretores de serviço dos hospiais quando solicitámos a sua colaboração na distribuição dos inquéritos aos colegas que se encontravam no escalão etário por nós eleito. Estes temiam que a execução da estratégia não fosse entendida por alguns colegas num contexto de investigação, mas constituísse uma outra estratégia que passava pelo exercício de pressão para eles tomarem a iniciativa de se aposentarem porque já não estavam a ser desejados no serviço e eram discriminados. Nestas situações, o contacto foi estabelecido por nós através de uma reunião ora individual ora em grupo marcada com os profissionais, onde se identificava, documentando-se, inclusivamente com a autorização da Comissão de Ética dos hospitais. Neste momento, explicitamos todos os detalhes associados ao processo de investigação, respondendo a todas as questões que lhe foram colocadas. Estas passavam pelo anonimato, pela divulgação dos dados, pela garantia de que seria a investigadora a realizar a recolha do inquérito em envelope fechado, onde verificavam que só existia a identificação da organização hospitalar.

Pensar acerca da disponibilidade e da aceitação dos profissionais de estudo que inquirimos implica necessariamente considerar o conceito de reflexividade (BeckGiddens; Lash, 2000), ou seja, perceber como é que esses profissionais refletem acerca do ambiente que os rodeia, do seu lugar no mundo social e como agem em função de deliberações reflexivas nos seus contextos de pertença. Importa então pensar os projetos e as estratégias delineadas pelos médicos e enfermeiros alvo de estudo, considerando as circunstâncias sociais, laborais e políticas em que inserem, além dos recursos que têm disponíveis, os quais podem funcionar como constrangimento ou como capacitação à concretização desses mesmos projetos e estratégias.

No caso das resistências sentidas à resposta ao inquérito, nomeadamente por receio dos profissionais que os dados obtidos fossem utilizados para seu prejuízo pela administração das organizações hospitalares, importa considerar a influência da estrutura sobre os indivíduos para que Beck, Giddens e Lash (2000) chamam a atenção. Esta influência pode interiorizar-se nas consciências individuais, condicionando, ou não, as ações dos indivíduos. A interiorização das estruturas sociais desenvolve nos sujeitos

um conhecimento prático do real que lhes permite delinear ações adequadas às suas probabilidades objetivas.

A atual era de globalização acarreta um conjunto diversificado e amplo de consequências aos mais variados níveis. A dimensão contraditória deste processo torna difícil a previsão das suas implicações. Mais complexa se torna esta situação quando as consequências referidas radicam em novas formas de risco, bastante distintas das observadas no passado, as quais tinham efeitos conhecidos e causas determinadas(Giddens, 1995). Estes riscos tocam várias esferas da vida do indivíduo, nomeadamente ao nível do emprego ou da sua construção identitária. Decorre daqui o conceito de sociedade de risco, inicialmente apresentado por Beck, a qual é marcada pela “possibilidade de uma (auto) destruição criativa para toda uma era: a da sociedade industrial”. Ressalta-se que “o sujeito dessa destruição não é a revolução, não é a crise, mas a vitória da modernização ocidental” (Beck et al., 2000).

Consequência do contínuo dinamismo da sociedade de risco é a autodestruição dos seus mecanismos e organizações os quais dão lugar a outros, constituindo-se, assim, as designadas etapas da modernidade reflexiva. Tal acontece na esfera do trabalho, nomeadamente, marcado por uma maior flexibilização e insegurança, por novas formas de organização empresarial e do próprio trabalho, bem como por níveis mais elevados de desemprego (Beck, 1999). No entanto, Beck afirma que o trabalho mantém o seu carácter de principal elemento de referência identitária para os indivíduos, funcionando como um fator da sua inclusão social. Não deixam, portanto, de ser caricatas as atuais dificuldades de acesso e manutenção do emprego quando este é central para os indivíduos. As trajetórias profissionais do passado, marcadas pela segurança e progressão no emprego deram lugar a novas formas de organização do trabalho marcadas pela incerteza face ao futuro profissional.

Os riscos do envelhecimento demográfico, nomeadamente ao nível do mercado de trabalho pela maior insegurança sentida e pelo crescente adiar do término da atividade profissional dos indivíduos, enquadram-se precisamente no conjunto de alterações que Beck (1999) refere. Os receios dos inquiridos em participarem nesta investigação, por via da resposta ao inquérito por questionário refletem precisamente a sua consciência face aos riscos decorrentes das profundas mutações verificadas ao nível do trabalho e do emprego.. No seu caso em concreto, referimo-nos às alterações no acesso à aposentação, por via do prolongamento da atividade profissional e da alteração

enfermagem, as quais vieram impactar diretamente na prática quotidiana e nas expetativas destes profissionais de saúde. Os receios demonstrados são, de outra forma, reflexo dos maiores riscos a que estão sujeitos.