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ORGANIZAÇÃO DE NOSSA TESE

No documento Download/Open (páginas 44-51)

Explicitadas as questões e os objetivos que norteiam nosso estudo, apresentamos nos próximos capítulos o desenvolvimento de nossa Tese. Iniciamos com uma discussão teórica sobre a cognição e suas dimensões psicológicas e antropológicas. Neste capítulo situamos nossa escolha por adotar a perspectiva da “Situated Learning” como baliza teórica para discutirmos a dimensão cognitiva na TAD.

Em seguida, no terceiro capítulo, apresentamos nossas reflexões teóricas sobre a TAD e discutimos suas noções teóricas e, a partir de argumentos teóricos e epistemológicos, trazemos nossa compreensão sobre a possibilidade teórica de tratar a dimensão cognitiva na TAD e o lugar do sujeito psicológico. Nesse capítulo, incluímos uma seção para apresentar as principais ideias relacionadas à noção de contrato didático que é utilizada na análise do funcionamento do sistema didático.

No Capítulo posterior, trazemos o desenho metodológico que utilizamos durante a construção dos dados, ocasião em que apresentamos e discutimos os instrumentos para construção desses dados e as categorias de análise pensadas a priori. A partir do desenho metodológico, dedicamos o capítulo seguinte à discussão do ensino de Probabilidade em seus aspectos históricos, epistemológicos e didáticos. Para tanto, utilizamos efetivamente as

ferramentas teóricas presentes na TAD, com a finalidade de delinear o contexto institucional da licenciatura em Matemática em que fizemos a nossa observação do sistema didático. Esse exercício nos ajudou na construção de um esboço de um modelo epistemológico de referência para o ensino de Probabilidade na Formação de Professores.

No penúltimo capítulo, apresentamos o cenário de observação do funcionamento do sistema didático do objeto de estudo. Balizados pela análise feita no capítulo anterior, buscamos explicitar elementos que ilustram a dinâmica vivida pelos sujeitos durante o funcionamento do sistema didático.

No último capítulo, retomamos as observações teóricas, agora tomando como base as observações empíricas que fizemos em capítulos anteriores, mais especificamente no quinto e no sexto, como tentativa de caraterização da dimensão cognitiva e do lugar do sujeito psicológico na TAD. Assim, discutimos os principais resultados e finalizamos nosso trabalho com as considerações finais e as perspectivas de estudos futuros.

2 COGNIÇÃO COMO FENÔMENO SITUADO: DIALÓGOS ENTRE ANTROPOLOGIA E PSICOLOGIA

Lentes

Raul recomendava escuras Galileu olhou para lua mas não era dele a ideia O nativo olhou para lua não viu crateras só a perfeição do desconhecido Jaci usava lentes lentes do imaginário Satélites usam lentes Soho viu Marte As lentes de Soho são diferentes Assim desde Creta se fez mistério Newton já dizia vítreo já foi consenso hoje já não é mais só se sabe da miopia as moléculas escondem não menos que o universo intangível as estrelas vagas lembranças de um passado Meu amor são lentes Teorias e teoremas Lentes são pontes Lentes são barreiras preciso de minhas lentes para ver o pequeno para ver o distante

lentes para saber que não vejo além da ilusão das minhas lentes.

O pensamento de Bachelard (1935; 1996) nos é caro por diversas razões. Sua sensibilidade para refletir sobre o pensamento e a atividade científica demonstra uma capacidade de síntese que contrasta com a fecundidade de suas ideias. Ao questionar o papel da experiência comum como oposição ao avanço do pensamento científico, ele nos revela que um dos primeiros genes dos “obstáculos epistemológicos” está presente no próprio ato de conhecer,

“o conhecimento do real é luz que sempre projeta algumas sombras” (BACHELARD, 1996, p. 17).

Continuando sua tese, o referido pensador argumenta que mitos precisam ser questionados para a compreensão da ciência, enquanto atividade. A ingenuidade científica nasce da ilusão de que o conhecimento científico cresce por justaposição ou acumulação. Pelo contrário, é na ruptura, na problematização que o espírito científico avança: “se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído.” (BACHELARD, 1996, p. 18).

Essa premissa é assumida, especialmente quando o autor se debruça na explicação do pensamento e da atividade científica nas ciências naturais. Ele destaca que os modelos matemáticos não são a síntese do experimento ou do saber construído, mas ferramentas que permitem ao espírito científico variar, experimentar, completar o que falta. Para Bachelard (1935; 1996), a compreensão matemática dos fenômenos age no sentido de estabelecer uma equiparação entre a razão e a experiência. Isso indica, no pensamento do autor, que antes do fenômeno geral, é preciso entender a sua organicidade: “o que lhe chama atenção já não é o fenômeno geral, é o fenômeno orgânico, hierárquico, que traz a marca de essência e de forma, e, como tal, é permeável ao pensamento matemático” (BACHELARD, 1996, p. 82).

Particularmente, aqui encontramos um primeiro motivo para a nossa escolha pela TAD, enquanto lentes que usaremos em nossa pesquisa, mas não são lentes comuns, são lentes que se adaptam, são lentes para uma leitura e construção do fenômeno que observamos, lentes como pontes. Ao se debruçar sobre as práticas institucionais, Chevallard (1996) destaca o papel da ecologia dos saberes, as condições e restrições que atuam na sua difusão, influenciando nas relações pessoais e instituições com os objetos de saber, ou seja, o olhar da TAD sobre os fenômenos didáticos é essencialmente ecológico16.

Ainda com base em Bachelard (1935;1996), vale lembrarmos que a Matemática em sua obra se traduz como expressão da razão, ou seja, vai muito além de simples expressões de leis gerais sobre fenômenos. Em sua epistemologia, os saberes científicos são gerados a partir de um vetor cuja origem está na dialética entre razão e experiência. Matemática é, portanto, a expressão da intuição racional.

16 O termo “ecologia” é utilizado por Chevallard como uma referência ao caráter relacional entre os saberes, as

instituições e os seus sujeitos. Tomado emprestado da Ecologia, é possível falar em outros termos derivados nicho, habitat e ecossistema. Na TAD um ecossistema corresponderia ao conjunto de condições e restrições institucionais que permite a “vida”. de um determinado saber.

A TAD olha para o saber matemático como uma construção humana. O olhar antropológico se propõe a observar como esse conhecimento relacional vive nas instituições em que ele é finalidade (instituições produtores), é meio (instituições utilizadoras) ou é objeto de estudo (instituições de ensino). Em qualquer que seja a instituição, a TAD pressupõe que há espaço para se fazer matemática a partir da noção de atividade matemática e do seu estudo (CHEVALLARD; BOSCH; GASCÓN, 2001).

Assim na TAD, o saber matemático é visto como passível de problematização. Para Bachelard (1935;1996), é o exercício transitório entre intuição racional (manifestado pela matemática) e intuição empírica que irá gerar a possibilidade da criação e do avanço na atividade científica. Para ele, a ciência é algo inacabado, isto é, é um conjunto de aproximações sucessivas sem atributo da perenidade, essa impressão pode ser destacada também ao longo de sua obra:

É, portanto, na encruzilhada dos caminhos que o epistemólogo deve colocar- se: entre o empirismo e o racionalismo. É aí que ele pode apreender o novo dinamismo dessas filosofias contrárias, o duplo movimento pelo qual a ciência simplifica o real e complica a razão. Fica então mais curto o caminho que vai da realidade explicada ao pensamento aplicado. É nesse curto trajeto que se deve desenvolver toda a pedagogia da prova, pedagogia que é a única psicologia possível do espírito científico. (BACHELARD, 1978, p. 95). Pelo argumento da insuficiência do espaço sensível é que Bachelard (1996) enfatiza que o processo de construção científica passa pela escolha de metáforas. Ao comparar o desenvolvimento científico de sua época, ele analisa o papel da Matemática no processo de abstração que para ele é fundamental para as ciências naturais:

O conhecimento científico é então levado para “construções” mais metafóricas que reais, para “espaços de configuração”, dos quais o espaço sensível não passa, no fundo, de um pobre exemplo. O papel da matemática na física contemporânea supera pois, de modo singular, a simples descrição geométrica. O matematismo já não é descritivo e sim formador. (p. 7)

Na introdução de sua Antropologia Cognitiva, Chevallard (1996) também chama a atenção para o papel das metáforas no processo de construção teórica:

Contrariamente àquilo que muitos pensam, afirmo aqui que toda atividade científica (incluindo em matemática) se constitui (na sua linguagem) e se descreve (na sua metalinguagem) através do uso de metáforas. O pensamento desenvolve-se apoiando-se em metáforas(...). (p.117).

É nesse contexto do pensamento metafórico que Chevallard (1996) aponta para entendimentos teóricos que podem ser enganosos, ou seja, em vez da busca pela correspondência ou fidedignidade entre teoria e realidade, ele prefere nos convidar a pensar as

teorias como máquinas onde são fabricados conhecimentos sobre aquilo que se deseja estudar ou modelar. Assim, a abordagem antropológica do didático se propõe, a partir do seu modelo teórico, a produzir conhecimentos sobre os fenômenos didáticos presentes nas práticas humanas, mas reconhece que essa máquina trabalha sempre com aproximações.

A opção de Chevallard (1996) em afastar o fantasma da fidedignidade, antes de introduzir sua antropologia cognitiva, é para nós um argumento encorajador, pois mostra que as lentes que utilizaremos, para melhor visualizar e construir os fenômenos que pretendemos estudar, são passíveis de problematização, carecem de processos de reflexão constante.

Dito isto, o problema que investigamos e sua complexidade reclamam minimamente a possibilidade do diálogo entre teorias, mas também a necessidade de entrelaçamento entre teoria e prática. Ao tratarmos o lugar da cognição e sua dimensão psicológica nas noções teóricas da TAD, entendemos que é preciso compreender epistemologicamente como essas “lentes” funcionam. Esse caminhar teórico, será explicitado no delineamento de nossa metodologia, contrastando com a necessidade de olhar a prática. Isto posto, a análise do funcionamento do sistema didático e de sua ecologia corresponde ao caminhar empírico cujos resultados, esperamos, iluminem nossa intuição racional dentro da TAD, no sentido proposto por Bachelard (1996).

Ainda tomando a metáfora das “lentes”, destacamos que a TAD, em sua gênese, assume que é no saber que reside a fonte primária para a compreensão da ecologia que permite a sobrevivência dos sistemas didáticos. Por isso, o foco dessas lentes não reside no indivíduo, mas na manifestação das práticas coletivas no seio das instituições (CHEVALLARD; BOSCH, 1999).

Logo, acreditamos que é preciso assumir a cognição numa perspectiva que não a encerre como um fenômeno que depende somente de processos mentais individuais. Isso corrobora com olhar da TAD sobre as práticas institucionais, por isso a escolha por um segundo quadro teórico que reconhece a cognição como fenômeno social.

Precisamente sobre essa impressão, recorremos à noção de coletivos de pensamento de Ludwik Fleck17, para quem “conhecer representa a atividade mais condicionada socialmente da pessoa e o conhecimento é a criação social por excelência” (FLECK, 2010, p. 89).

17 Sobre a fecundidade do pensamento de Fleck, Delizoicov et al (2002) advoga que o pensamento de Fleck inspira

Khun nas construções de suas principais categorias (ciência normal, paradigma, revolução científica): “Poderíamos caracterizar a teoria de paradigmas de Kuhn como um caso particular da teoria de estilo de pensamento de Fleck,

O pensamento de Fleck (1935, 2010) sobre como a ciência evolui é bastante peculiar. Ao assumir que a ciência não progride de forma linear, ele destaca que as mudanças na ciência ou num dado campo desta ciência estão relacionadas intimamente à mudança no estilo de pensamento de uma comunidade, que é sempre coletivo e que estaria fortemente associado ao crescimento histórico, bem como, seria condicionado socialmente. O pensamento “fleckiano” nos parece útil para justificar nossa escolha por um referencial teórico sobre a cognição, que se distancia daquele pensamento mais usual, advindo da Psicologia Cognitiva de base mais estruturalista.

De acordo com Fleck (2010), um coletivo de pensamento refere-se:

(...) à comunidade de pessoas que trocam pensamentos ou se encontram numa situação de influência recíproca de pensamentos, temos, em cada uma dessas pessoas um portador do desenvolvimento histórico de uma área de pensamento, de um determinado estado do saber e da cultura, ou seja, de um estilo específico de pensamento. (FLECK, 2010, p. 82)

Essa definição é importante para nós sob dois aspectos. O primeiro deles refere-se a nossa compreensão do papel das instituições na cognição dos sujeitos, visto que a noção coletivo de pensamento institui, como já dissemos, que a produção científica é, de certo modo, uma empresa cognitiva coletiva, corroborando com os apontados de Douglas (1986;2007).

Douglas (2007) vê as instituições como agentes de nossa cognição, porém sem descartar o papel individual dos sujeitos, pois é a adesão do sujeito à instituição e seu desejo de colaborar que mantém viva a instituição, isto é, “não é qualquer ônibus lotado ou um ajuntamento aleatório de pessoas que merece o nome de sociedade” (DOUGLAS, 2007, p. 26).

O pensamento de Fleck também nos servirá (viu) como ferramenta teórica para localizar as concepções mais usuais sobre cognição, as quais têm lugar predominante na psicologia cognitiva.

Como veremos adiante, uma das principais características da Psicologia científica é a coexistência de modelos e comunidades que privilegiam certos aspectos na produção do conhecimento nessa área. Em alguns casos, é possível, por exemplo, identificar traços de comunidades ou coletivos de pensamento bem delimitados como é o caso da psicológica cognitiva e a psicologia comportamentalista.

aplicado ao conhecimento produzido por comunidades denominadas de maduras, como foi o estudo realizado por Kuhn.” (DELIZOICOV, CASTILHO, et al., 2002, p. 64)

Numa leitura a partir de Fleck (2010) não é cabível atribuir que houve uma revolução científica com a emergência da psicologia cognitiva sobre o comportamentalismo, pelo contrário, essas duas comunidades sempre existiram, caracterizando como comunidades dentro da Psicologia.

Assim, veremos que o fato das pesquisas na psicologia cognitiva com enfoque mentalista terem se tornando mais populares no meio educacional não exclui a possibilidade de discutir e tratar a cognição a partir de uma perspectiva diferente. Pensamos ser pertinente o argumento de que, para nós, pensar a cognição a partir das noções teóricas da TAD pode requerer assumir a cognição de um ponto de vista científico diferente do mais usual, ou seja, de um estilo ou coletivo de pensamento diferente. Desse modo, nossa fundamentação teórica cumpre não só a missão de descrever e discutir os elementos teóricos que orientam nossa pesquisa, mas, sobretudo, problematizar essas noções e argumentar como, em nosso entendimento, a cognição, enquanto dimensão psicológica e antropológica, identifica-se e se permite ser refletida através da TAD.

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