• Nenhum resultado encontrado

F ORMAÇÃO DA B URGUESIA B RASILEIRA : M ANUTENÇÃO DA H ERANÇA C OLONIAL E P ROCESSO U RBANO

ESPAÇO URBANO E SOCIABILIDADE: INTERFACES DO PLANO NACIONAL RESÍDUOS SÓLIDOS NA REGIÃO

3.1 UM CAMINHO PARA AS CIDADES: MEIO AMBIENTE E ESPAÇO URBANO

3.1.2 F ORMAÇÃO DA B URGUESIA B RASILEIRA : M ANUTENÇÃO DA H ERANÇA C OLONIAL E P ROCESSO U RBANO

Um novo ciclo da ocupação urbana do Brasil se dá com o rompimento do período colonial. A instalação da Família Real Portuguesa em 1808 no Rio de Janeiro constitui o primeiro marco de uma mudança no padrão da urbanização que perdurará por quase um século, tendo na Proclamação da República seu término. Esse período é caracterizado pela pós- Revolução Burguesa brasileira, que ocorre com a Proclamação da Independência em 1822 – o momento político, pela consolidação do liberalismo mercantil autônomo – o momento econômico, e pela abolição do tráfico negreiro e, posteriormente da própria escravatura – o momento social.

Nesse sentido, a Independência é o fato histórico alavancador de uma nova sociabilidade, baseada no meio urbano e que somente se consolida com a industrialização do Brasil pós- Revolução de 1930. Isto se deu, pois a transformação do Brasil em uma nação independente demandou da elite senhorial da época uma tomada de decisão, pela primeira vez na história, quanto aos rumos da lavoura, da economia e da política nacional, bem como do trato com o exterior. Dessa maneira, nas palavras de Fernandes:

Essa porção de senhores rurais tendeu a secularizar suas idéias, suas concepções políticas e suas aspirações sociais; e, ao mesmo tempo, tendeu a urbanizar, em termos ou segundo padrões cosmopolitas, seu estilo de vida, revelando-se propensa a aceitar formas de organização da personalidade, das ações ou das relações sócias e instituições econômicas, jurídicas e políticas que eram mal vistas e proscritas no passado. (1976:27).

Essa alteração de visão de mundo não foi suficiente, contudo, para exercer uma forte influência no padrão de identidade e da sociabilidade do então brasileiro. De fato, a intensidade da introdução das idéias liberais, no meio político pela Constituição do Império

de 1824 e no econômico a partir do acompanhamento da economia internacional e a vinculação incondicional à economia inglesa, não encontrou paralelo no meio social. Em processos como a urbanização e a consolidação de uma elite nacional, no entanto, ideais como liberdade e igualdade foram postos em segundo plano, em detrimento a uma “dualidade ética” que privilegiava o “nosso grupo” – familiar, patriarcal e patrimonialista, em oposição ao “grupo dos outros” – ao restante da sociedade indistintamente (FERNANDES, 1976).

Isto se dá, pois segundo Fernandes: “As elites nativas não se erguiam contra a estrutura da sociedade colonial. Mas contra as implicações econômicas, sociais e políticas do estatuto colonial” (1976:32). Esse apego à herança sociocultural do período anterior é responsável pela manutenção da escravidão, pelo beneficiamento pessoal e familiar advindo daquela

sombraceria indicada por Sérgio Buarque de Holanda como norte do padrão de sociabilidade de bases ibéricas. Nesse contexto, o processo urbano iniciado com a implantação da Regência no Reino do Brasil e sua posterior intensificação com a Independência e transformação em Império, caracteriza um movimento balizado por iniciativas políticas e econômicas revolucionárias, pautadas pela cartilha liberal. Essa adoção do ideário liberal, concomitante ao apego à herança colonial:

[...] condicionavam uma tal concentração do poder político ao nível dos privilégios senhoriais, que ‘sociedade civil’ e ‘estamentos sociais dominantes’ passaram a ser a mesma coisa. De fato, não só o grosso da população ficou excluído da sociedade civil. Esta diferenciava-se, ainda, segundo gradações que respondiam à composição da ordem estamental, construída racial, social e economicamente na colônia [...] (FERNANDES, 1976:40).

Assim, esclarece-se como a aversão ao trabalho, a exaltação do ócio – cujo maior expoente é o sistema de trabalho forçado escravista – perpetua-se no Brasil, mantendo aqueles padrões de sociabilidades rurais coloniais no meio urbano do Brasil independente. O poder

político, diante dessa configuração social, partia de uma metamorfose entre o ideal da liberdade, para o “senhor-cidadão” e a autoridade sobre todos os outros. De fato, a grande lavoura perpetuou-se, mas sem interferir decisivamente na reorganização do fluxo de renda, do novo sistema econômico e da urbanização, ao contrário, ela buscou formas adaptativas que permitissem a coexistência com o novo regime social.

Esse sistema econômico-social que pautou a sociabilidade no Brasil Império estimulou um intenso crescimento de centros urbanos. Não houve, contudo, modificações no padrão de construção das cidades. De fato, parece que o espírito semeador apontado por Holanda como expoente do período colonial, perpetua-se, visto o caráter intenso e difuso com que se viu o impulso urbano nessa época (FERNANDES, 1976:65), típico do aventureiro, semeador, que via na intensificação do comércio internacional um ponto de aquisição rápida de riquezas e um motor para transformar qualquer porto em cidade comercial- exportadora.

Nesse afã da busca pelo comprador externo, a sociedade brasileira passa a integrar-se mais com exterior, a elite urbana, influenciada pelas idéias européias, passa a adotar uma postura mais cosmopolita, aproveitando-se do impulso liberal.

Assim, a assimilação de novos modelos de organização das casas, das manufaturas, dos bancos, dos serviços públicos etc., tanto pressupunha certo ‘progresso institucional’ quanto a objetivação de condições culturais internas de integração de uma ‘sociedade nacional’, de uma ‘economia de mercado’ etc. (FERNANDES, 1976:66).

Dessa maneira, as próprias relações políticas foram experimentando o afloramento de certas idéias como o positivismo e a eugenia, esta última responsável por intensas polêmicas entre o movimento abolicionista e os conservadores.

De fato, a partir de meados do Século XIX, as discussões nos meios sociais e políticos sobre o grau de miscigenação da população brasileira e seu impacto na formação da nação tornam-se emblemáticos na reorganização do padrão de sociabilidade. A subvalorização da população mestiça e negra, seu isolamento e marginalização é fator preponderante na origem do processo de favelização de centros urbanos como o Rio de Janeiro. O escravo, excluído do movimento abolicionista, se viu esquecido pela sociedade política após a gradual eliminação do trabalho forçado, que culminou na Lei Áurea de 1888. Exemplo marcante de como se moldavam as relações sociais entre os cidadãos e os negros e mestiços está expressa na posição de Nina Rodrigues, para quem:

A concepção liberal de justiça, apoiada na universalidade das idéias, entraria em contradição com a realidade do país, marcada pela heterogeneidade étnica. A existência de raças não-brancas desmentia os princípios fundamentais ao liberalismo, como o livre-arbítrio e a capacidade de discernimento, tornando problemática a implantação de um sistema político baseado em eleições periódicas. Acreditando que cada raça se encontrava em estádios evolutivos distintos [...]. (VENTURA. 2002:347).

Essa visão da organização social torna-se dominante e perpetua-se até praticamente meados da República Velha. Já nesse início do Século XX é que o mestiço, emoldurado na figura do sertanejo, começa a ganhar valor no meio social enquanto “roda viva da nacionalidade” (CUNHA. apud. VENTURA. 2000:351). Agregam-se a isso, os estudos de Gilberto Freyre (2001) sobre os efeitos da miscigenação na correção da distância entre brancos e negros no Brasil e a exaltação da mestiçagem promovida por Jorge Amado em seus romances, ou mesmo em Euclides da Cunha em “Os Sertões”.

Esse ideário que surge no início do Século XX vai desembocar na Revolução de 1930 e no período Vargas, no qual um grande revés com relação à noção e valor do trabalho é impulsionado pela industrialização e pelas influências do imigrante europeu. É nesse período, segundo Fernandes, que se consolida a Revolução Burguesa no Brasil, destacando

um país mais urbano, cuja sociabilidade dá mostras de rompimento com a herança colonial (1976:206). O surto industrial e o amálgama entre as elites rurais e urbanas produzido por Vargas, desembocam em relações – agora – de classes, na Sociedade Brasileira.

Culminam com esse processo urbano, apoiado na mudança do padrão de sociabilidade, a “doação” dos estatutos trabalhistas e posterior Consolidação das Leis do Trabalho, como um presente do Estado paternalista às classes trabalhadoras. Apesar deste avanço em termos de regime jurídico, cabe destacar que isso se deu à margem de um rompimento com a dependência histórica do Brasil. O desarranjo institucional e social resolveu-se, segundo Fernandes, pela própria reordenação dos padrões de sociabilidade; a crise econômica que se seguiu, contudo, teve sua solução subordinada à reorganização do padrão de dependência externa (1976:219).

Esse processo se observa no Espírito Santo ainda mais tardiamente. O Estado apenas rompe com o passado colonial e inicia um verdadeiro processo de metropolização a partir da década de 1950 (SIQUEIRA, 2001; MATTOS, 2011). Isso se intensifica no período ditatorial, quando os grandes projetos industriais são instalados no Estado entre as décadas de 1960 e 1980, com a instalação da Companhia Vale do Rio Doce e da Companhia Siderúrgica de Tubarão na capital, Vitória.

Esses grandes projetos foram responsáveis pelo grande afluxo populacional, principalmente de trabalhadores migrantes nordestinos, impulsionando o processo de ocupação e metropolização da Região da Grande Vitória (ABE, 1999; BRESCIANI, 2011). Esse movimento, desprovido de infraestrutura urbana, foi o responsável pela formação dos primeiros bolsões de pobreza até então inexistentes no que viria a tornar-se, na década de 1990, a região metropolitana (MATTOS, 2011).

Com isso, pode-se inferir que a formação urbana tardia e o grande afluxo migrante para a região da grande vitória resultou em pouca mobilização social. De fato, movimentos sociais e sindicatos foram de baixa expressão social em caráter reivindicativo e apenas experimentaram certo crescimento na década de 1990 (DOIMO, 2008). Isso é um demonstrativo de um descompasso entre o movimento nacional de fortalecimento dos movimentos sociais, pré-Constituição de 1988, que no Espírito Santo só ocorre em meados da década de 1990, quando no cenário nacional já se via um arrefecimento da força desses movimentos (LAVALLE, 2003) e um forte processo de cooptação desses grupos pela ótica neoliberal num processo denominado por Dagnino (2004) de ongnização da sociedade civil.

Esse cenário é responsável, com isso, pela consolidação tardia da noção de espaço público no estado do Espírito Santo (CARLOS, 2011), que já nasce em meio às estratégias de fragmentação e cooptação da sociedade civil ocorridas nos processos de reforma do estado da década de 1990 (DINIZ, 2001; DAGNINO, 2004). Esse fator é responsável, por conseguinte, por uma cultura política capixaba de baixa intervenção e participação social no espaço público.

Isso pode ser observado, por exemplo, na maior intervenção urbana já experimentada pelo cidade de Vitória ocorrida no início da década de 1990: os Projetos Terra e São Pedro (ABE, 1999; SIQUEIRA, 2001; MATTOS, 2011). Tais projetos consistira em estratégias de urbanização de áreas de risco ambiental e extrema pobreza da capital do ES. Através da estratégia de “transplante”, as populações foram removidas de regiões altas e de encostas - Projeto Terra - e de áreas semialagadas e de depósito de resíduos - Projeto São Pedro - no período ajustes estruturais e implantação de alguns equipamentos urbanos e reimplantadas após o fim desses projetos nessas regiões.

Assim, os projetos permitiram, em certa medida, a manutenção dos padrões de organização social urbana na cidade de Vitória, sem a necessidade de criação de grupos reivindicativos, uma vez que tais projetos foram realizados sob a ótica do Estado Providência (ABE, 1999; MATTOS, 2011). Esses projetos, contudo foram de fundamental entendimento para a questão dos resíduos sólidos na Região Metropolitana da Grande Vitória, pois uma vez que a capital do Estado removeu de seu território as áreas de depósito de resíduos, já no início da década de 1990 já se viu a necessidade da gestão consorciada do lixo, que culmina na criação, 30 anos depois, do Plano Diretor de Resíduos Sólidos, objeto da próxima seção.

3.2 REFLEXOS DA POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS