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DESENVOLVIMETO DE PRÁTICAS DE ENSINO DA LEITURA E DA ESCRITA

3.5 Os diferentes saberes que compõem o saber-fazer docente

No que diz respeito aos saberes que constituem o saber-fazer docente, é importante considerar que eles advêm de diferentes fontes e que, justamente por isso, apresentam diferentes tipologias. Nesse sentido, podemos falar, dentre outros, em saberes pessoais, profissionais, disciplinares, curriculares e experienciais, os quais, em um diálogo constante com as artes de fazer cotidianas dos professores, constituem seus saberes-fazeres.

Em se tratando dos saberes advindos da vida pessoal, ou seja, dos saberes pessoais dos professores, podemos defini-los como aqueles que são adquiridos no seio familiar em relação à escola, seja por meio dos posicionamentos de seus membros quanto à ela, ou mesmo pelas atitudes e valores que, ainda que de forma indireta, podem incidir tanto em outras áreas da vida, quanto na escolar, devido a construção de determinados pontos de vista que constituem a personalidade do sujeito. Dessa maneira, como aponta Monteiro (2006), as atitudes, exigências, explicações, relações e posicionamentos das pessoas com que o professor convive transmitem saberes que servem como referência para sua reflexão em sala de aula.

Assim, entendemos que esse conjunto de fatores pode influenciar positiva ou negativamente os saberes-fazeres docentes, a depender do lugar atribuído à instituição escolar na vida do indivíduo. Nesse sentido, Almeida (2013) evidencia uma influência positiva desses fatores na constituição da prática de uma alfabetizadora bem-sucedida por ela investigada, o que está atrelado ao valor que é atribuído no seio familiar à escola e ao conhecimento veiculado por essa instituição, de modo que havia sempre o interesse dos familiares em incentivar o desenvolvimento escolar da professora durante a infância. Nesse sentido, o estudo aponta que dentre os saberes pessoais que mais a influenciaram estão a doutrina espírita, a curiosidade por aprender coisas novas e sua atuação como escriba da comunidade rural.

Diante dessas influências, depreendemos que os saberes pessoais são muito peculiares e imprimem peculiaridades ao fazer dos professores, configurando saberes-fazeres específicos, na medida em que os contextos familiares são diferentes e suas influências podem incidir em diferentes aspectos da vida pessoal e profissional. No que diz respeito aos professores alfabetizadores, compreendemos que essa influência pode se dar desde o lugar atribuído à alfabetização na vida de um sujeito, até à metodologia a ser adotada. Isso porque, apesar de não ser este o saber que mais influenciaria tais elementos, a visão veiculada no meio familiar sobre como o ato de alfabetizar deve ocorrer pode incidir nas escolhas e decisões dos professores, assim como as experiências de alfabetização que podem ser vivenciadas na família, a exemplo de quando um membro alfabetizado propicia os primeiros contatos das crianças com a leitura e a escrita.

Nessa direção, de acordo com Tardif (2008) e Tardif e Raymond (2000), o saber do professor é formado também pelos saberes pré-profissionais, que se referem às diferentes experiências vivenciadas pelos sujeitos antes de sua formação profissional, tais como as familiares e as escolares. Nessa perspectiva, os referidos autores enfatizam, nesses dois contextos pré-profissionais, diferentes influências que incidem sobre a construção desses

saberes, a exemplo do relacionamento e experiências marcantes vividas com pessoas significativas no seio familiar, com os professores com os quais estudaram e com outros adultos com os quais tiveram contato em atividades extra-escolares; das vivências da adolescência com os amigos; das experiências amorosas; e da afetividade demonstrada por crianças muito antes de sua formação inicial e de sua atuação na docência.

Nesse sentido, de acordo com Tardif e Raymond (2000), a história de vida, principalmente a que diz respeito à vida escolar, promove a construção de saberes sobre o ofício do professor, isto é, sobre o ensino, sobre como ensinar e sobre seus próprios papeis. Assim, a discussão empreendida por esses autores, com base na literatura sobre o assunto, mostra que o legado da socialização escolar é forte e, diríamos nós, em certa medida estável, de modo que mesmo a formação acadêmica não consegue, muitas vezes, modificá-lo substancialmente, havendo assim, mais continuidades entre a socialização pré-profissional e os saberes da formação do que rupturas. Ademais, para esses autores, na história de vida pessoal e escolar, os indivíduos interiorizam conhecimentos, competências, crenças e valores que são reatualizados de forma reflexiva quando do desenvolvimento de suas práticas.

Na mesma direção, estudos como os de Almeida e (2013) e Monteiro (2006) têm demonstrado a existência de saberes provenientes da formação escolar anterior, isto é, que provém da vida escolar, no desenvolvimento da prática de ensino das professoras. Parafraseando a segunda autora, o estudo, mesmo que assistemático, da atuação dos professores da educação primária ou dos anos iniciais do Ensino Fundamental, no que diz respeito ao tratamento do sucesso e do fracasso escolar dos alunos, demonstram que a dinâmica das aulas, o envolvimento com os conteúdos, as lembranças positivas e negativas em relação ao processo e ao seu próprio desenvolvimento influenciam os saberes-fazeres dos alfabetizadores considerados bem-sucedidos.

Nesse sentido, não raramente, os professores fazem referência à forma como foram alfabetizados para justificar a forma como alfabetizam. Assim, é comum que percebam que, muitas vezes, “reproduzem” práticas semelhantes àquelas com as quais foram alfabetizados, inclusive baseadas nos velhos métodos de alfabetização ou em concepções hoje consideradas tradicionais. Contudo, é importante considerar que a influência exercida por esses saberes não é uniforme, nem tampouco total, tendo em vista estarem eles imbricados com outros saberes, sendo reinterpretados, reelaborados, ou mesmo, confrontados, servindo, em muitos casos, como base para a formulação de saberes-fazeres outros, que integram passado e presente com certa flexibilidade.

No que diz respeito aos saberes profissionais, Tardif (2008) afirma que eles são, aqueles transmitidos pelas instituições que se destinam à formação de professores, ou seja, aqueles que emergem das ciências da educação e das ideologias pedagógicas, a que o autor chama de saberes pedagógicos. De acordo com o autor, esses saberes constituem doutrinas ou concepções sobre a prática educativa, que, através de suas reflexões racionais e normativas, guiam um sistema em certa medida coerente de representações e orientações da atividade educativa.

Inferimos, assim, que é possível que os alfabetizadores que desenvolvem práticas de ensino da leitura e da escrita consideras bem-sucedidas mobilizem também saberes-fazeres balizados em suas vivências na formação para o magistério, o que pode se expressar, por exemplo, em suas intervenções didáticas, na escolha e uso de atividades e recursos didáticos e na forma de organização dos conteúdos.

Entendemos, porém, que a mobilização desses saberes-fazeres não é uma réplica daquilo que foi pensado e vivido na/para a formação, tendo em vista que, conforme já discutido anteriormente, os professores interpretam, recontextualizam ou (re)criam aquilo que aprenderam, no confronto com os desafios que se impõem à realidade escolar. Assim sendo, nas palavras de Mercado (1991, p. 60), “en el processo de apropriación, los maestros se confrontan com los saberes del oficio que les anteceden; rechanzan algunos, integram otros a su propia práctica y generan a su vez nuevos saberes al enfrentarse a la resolución de su trabajo”. Ou seja, os saberes profissionais já não são mais aqueles difundidos no âmbito da formação, mas uma apropriação/construção feita a partir dele e de outros saberes, por meio de acomodações, confrontos e reconfigurações.

O exposto se evidencia na pesquisa de Monteiro (2006) quando ela afirma que a apropriação dos conteúdos e das técnicas trabalhadas na formação das professoras lhes possibilitou segurança e habilidades para subsidiar o desenvolvimento de seu próprio fazer. Para além disso, a formação oportunizou que alguns professores com os quais os alfabetizadores estudaram fossem tomados como referência (seja ela positiva ou negativa), para o desenvolvimento de suas práticas. Diante disso, compreendemos que a formação tem um papel fundamental na mobilização dos saberes-fazeres docentes em sala de aula, uma vez que se constitui tanto como subsídio teórico quanto como “modelo” do ensino, levando em conta o fazer dos professores com os quais tiveram contato.

Em íntima relação com os saberes profissionais, estão os saberes disciplinares, os quais emergem da tradição cultural e dos grupos produtores de saberes. Nesse sentido, os saberes disciplinares decorrem de diferentes áreas de conhecimento e se comprazem nos

componentes curriculares que compõem os cursos de formação inicial e continuada com vista à sua integração à prática docente (TARDIF, 2008). Como mostram os estudos de Almeida e Souza (2014, 2015)8, quando de sua atuação em sala de aula, os professores mobilizam saberes construídos no âmbito de sua formação inicial, por exemplo, e destacam as contribuições dos componentes curriculares para sua prática docente. Entretanto, esses saberes não são meramente aplicados, mas recontextualizados em conformidade com o contexto e com os demais saberes mobilizados pelo professor.

Mediante a isso, compreendemos que podem existir confrontos entre esses e outros saberes, confrontos estes que estão, em partes, relacionados com a apropriação dos saberes denominados curriculares, os quais advém dos documentos oficiais, dos discursos, dos objetivos, dos conteúdos e dos métodos através dos quais a escola condensa e apresenta os saberes sociais a que se filia, a fim de que sejam aplicados pelos professores (TARDIF, 2008). Ou seja, os saberes curriculares são aqueles que advêm das orientações escolares para o desenvolvimento do trabalho docente, expressando-se nos programas e propostas pedagógicas e curriculares e, por que não dizer, nos livros didáticos adotados, que têm por objetivo orientar as práticas dos professores.

Dessa forma, concebemos que tais saberes se relacionam com os demais no cotidiano das salas de alfabetização e podem estar mais próximos do topo na hierarquia dos saberes mais utilizados pelos professores, a depender do lugar que esses documentos, programas e discursos ocupam na escola e em sua própria prática de ensino. Portanto, é possível que professores que concordem com suas finalidades e processos ou que partam do entendimento de que tais fontes devem ser rigorosamente seguidas utilizem-se deles com mais frequência, ou mesmo como “a bíblia”, como expõe Almeida (2013), ao se referir ao uso que a alfabetizadora bem-sucedida fazia das diretrizes curriculares da escola. Por outro lado, é possível que o professor que deles discordem, ao menos em parte, não atribua a esses documentos um lugar essencial no desenvolvimento de seu fazer e mobilizem os saberes provenientes deles com menos frequência. Salientamos, contudo, que, com isso, não estamos afirmando que a concepção dos professores são determinantes de suas práticas, apesar do papel representativo que podem desempenhar. Isso porque o cotidiano da sala de aula é

8 Esses estudos são resultados de pesquisas de iniciação científicas, cujo objetivo era o de analisar as

contribuições, inicialmente, dos componentes curriculares referentes às Metodologias do Ensino do curso de Pedagogia de uma Universidade pública do Agreste pernambucano e, posteriormente, de forma mais específica, das Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa para prática docente das alunas-professoras atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

complexo e dinâmico, não havendo uma relação determinística entre o que é pensado e vivido pelos referidos profissionais.

Dessa maneira, os saberes curriculares se relacionam com os demais saberes e, por vezes, contendem com eles, já que nem sempre dialogam com os que foram adquiridos por meio de outras fontes, dentre os quais podemos mencionar aqueles que advêm de sua própria experiência. Nesse sentido, as experiências dos professores no cotidiano escolar funcionam como um filtro que pode confirmar ou negar a necessidade de determinados saberes curriculares.

3.6 Saberes da experiência: as criações cotidianas dos sujeitos pensantes-praticantes em

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