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Capítulo II: Galerias e Públicos da Arte

2. Galerias de arte

2.2. Os “mundos da arte”

Como referido anteriormente, Hower Becker (1982) dedicou-se no seu livro “Art Worlds” a compreender e a definir os mundos da arte, pois considera que estes são essenciais para produzir um entendimento da complexidade das redes cooperativas em que a arte acontece.

Segundo o autor, os mundos da arte consistem em todos os indivíduos cujas actividades são necessárias à produção de características das obras no mundo em que se define arte.14 Para Becker um “mundo da arte” reúne os indivíduos e as

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Art worlds consist of all people whose activities are necessary to the production of the characteristics

organizações cujas actividades conduzem à concretização dos mundos artísticos. Nessas actividades, o autor inclui os que concebem a ideia de obra, os que a executam, os que fornecem os equipamentos necessários, os que as colocam no mercado e os que formam o seu público. Há todo um processo de produção, difusão e recepção que caracteriza os “mundos da arte”.

As obras artísticas, segundo Becker, não são unicamente o produto dos artistas, mas são produtos de todas as pessoas que cooperam no mundo da arte com as suas convenções próprias e que, derradeiramente, fazem com que as obras existam. Os artistas serão só um subgrupo desse mundo. Os mundos da arte produzem as obras e dão-lhes o seu valor estético.15 Becker (1982) refere que existem sistemas de distribuição das obras de arte, que podem ser desenvolvidos pelos próprios artistas, mas é frequente serem intermediários a fazê-lo. Estes intermediários geralmente são chamados de dealers de arte, que muitas vezes assumem o papel de directores de galerias de arte.

Na opinião do autor, o sistema de distribuição tem um efeito crucial na reputação de uma obra, pois sem distribuição esta muito dificilmente se torna conhecida. Os galeristas têm portanto um papel crucial neste sistema de arte. A arte visual hoje é vendida através desta rede em que os dealers são os intervenientes. São estes que integram o artista na sociedade económica ao transformar o valor estético num valor económico, tornando possível a um artista que viva da sua arte.

Pensar a relação arte-sociedade nos termos de Becker significa entender que os “mundos da arte” derivam de uma orientação teórica mais geral do estudo da sociedade. As formas de falar sobre a arte, uma vez generalizadas, são formas de falar sobre a sociedade e o processo social em geral.

Howard Becker (1982) salienta que uma galeria consiste normalmente num dealer (um negociante de arte), um grupo de artistas (que produzem as obras que serão vendidas), um grupo de compradores (os que têm um papel predominante em suportar a galeria), um conjunto de críticos, ou um crítico (através das suas publicações ajudam na reputação de uma galeria) e um grupo de visitantes (vão às inaugurações e geralmente difundem o interesse dessa galeria ao recomendarem as suas obras). Os

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dealers, segundo Becker (1982), geralmente especializam-se num estilo ou numa escola de arte e a sua galeria representa essa mesma vontade e interesse estético.

Os potenciais compradores, segundo o autor, na sua maioria, não partilham um conhecimento convencional estético igual aos artistas, porque geralmente possuem um capital cultural inferior. Os dealers têm também o papel de treinar os apreciadores, a moldar os seus gostos para que estes se tornarem coleccionadores. Os dealers, em conjunto com os críticos e coleccionadores desenvolvem um consenso acerca da obra de arte e como esta pode ser apreciada e, desta forma, treinam uma audiência que cultiva e respeita as obras de arte.16 Todas estas peças, segundo o autor, são fundamentais no sistema em que a arte funciona hoje em dia.

Alexandre Melo (1999) alega que o galerista de hoje, ou o dealer de hoje, apresenta características diferentes das do passado. Devido às transformações do mundo da arte, a caracterização do modelo do galerista tradicional já não faz sentido. “Passando agora a analisar a situação actual, julgamos que a multiplicação de operadores, e sobretudo a ampliação do nível de difusão e aceitação da arte contemporânea no conjunto da sociedade fez com que se tornasse mais raro, menos necessário, o papel do pioneiro heróico, descobridor inspirado e defensor valoroso de novos valores “incompreendidos” e “rejeitados” pela sociedade.” (1999: 14) No entanto, o autor considera que o galerista, secundado pelos coleccionadores é uma peça fundamental no processo de valorização de um nome ou de uma obra. Será o prestígio e poder do galerista que vai determinar as vendas com o correspondente efeito de difusão mediática e promoção social.

Hoje em dia há uma multiplicidade de galerias com características muito diversificadas, apesar da constância de alguns elementos identificadores comuns.

Esta multiplicidade de características passa pelas diferentes formas físicas que uma galeria assume, por aquilo que escolhe expor, pela relação que estabelece com os artistas, com o tipo de actividades que desenvolve, pelo tipo de visitantes, etc. Estas

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In short, dealers, critics, and collectors develop a consensus about the worth of work and how it can be

appreciated. When that happens, we may say that the dealer has created or trained an audience for the work he handles, an audience as cultivated with respect to that body of work as an Italian nobleman or pope was with respect to baroque painting. (Becker, 1982: 115)

diferenças passam, sobretudo, por uma questão muito importante: o binómio cultural e económico.

Como Alexandre Melo (1999) menciona, as galerias de hoje assumem uma importância simultaneamente económica – essencialmente são as galerias que vendem as obras dos artistas – e cultural – porque também mostram e promovem o trabalho dos artistas. As galerias diferenciam-se assim dependendo de um maior peso cultural ou comercial. O autor refere que hoje em dia todas as galerias são comerciais, tendo também uma componente cultural.17

Como Lima dos Santos (2001) refere, entre os visitantes de uma galeria há que distinguir, à partida, dois tipos de público: o que vem ver as peças expostas, e o que vem não só ver mas, eventualmente também adquirir peça(s) de arte. “Através destes dois tipos de público, a dupla função das galerias – difundir e comerciar arte – pode, pois, realizar-se quer unilateralmente, quer integrando ambas as dimensões.” (Lima dos Santos et. al, 2001:12)

Alexandre Melo (1999) diferencia igualmente galerias no tipo de relação que estabelece com os artistas. As relações podem ser do tipo contratual, de amplitude e pessoais. Em termos contratuais a galeria poderá ter exclusividade da venda do artista a nível local, nacional, regional ou mundial.18

A relação de amplitude abrange vários aspectos, como a questão da continuidade.19

A análise do grau de continuidade leva o autor a realizar outra distinção: galerias de revelações, galerias de actualidade e galerias consagradas; outra distinção baseia-se nas galerias de tendência e galerias ecléticas. A relação pessoal pressupõe uma dimensão mais afectiva, em que o galerista poderá ter uma relação mais próxima com o artista, ou mais distante.

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“Geralmente, quando uma galeria privilegia mais a dimensão cultural tende a realizar outras actividades complementares, como projectos de formação, concertos, teatro, lançamentos de livros, dança, performances, conferências, etc.” (Lima dos Santos et. al, 2001)

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“A exclusividade não implica que o artista não possa expor noutras galerias mas que deva fazer com a aquiescência da “galeria mãe” que então, por via de regra, cobrará uma percentagem do valor das vendas”. (Melo, 1999: 17)

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Esta relação permite distinguir entre galerias estáveis (tendem a trabalhar por longos períodos de tempo com os mesmos artistas) ou galerias instáveis (que mudam com frequência). (Melo, 1999)

O tipo de espaço de exposição é igualmente um factor de distinção das galerias de hoje. Alexandre Melo (1999) distingue três tipos de espaço no seu estudo: espaço tradicional, espaço moderno e espaço alternativo.

O espaço tradicional caracteriza-se, segundo o autor, por uma multiplicidade de ornamentos e efeitos decorativos, abundância de brilhos e dourados, a existência de montras amplas, etc.

O espaço moderno seria o espaço típico da galeria ideal preconizada pela ortodoxia modernista de tradição americana. O “cubo branco”, fechado ao exterior, composto por quatro paredes brancas, com chão e tecto neutro e luz controlada. Toda a estruturação do espaço é concebida para a concentração máxima do observador. (Melo, 1999: 92). “Na sua versão mais pura o espaço moderno seria um espaço estritamente geométrico e minimalista, totalmente desligado do mundo exterior, um espaço de sacralização da obra de arte entendida como pura forma, marcado por um ascetismo tendencialmente religioso e pela austeridade tida por inerente à dignidade museológica.” (Melo, 1999: 92)

O espaço alternativo seria um espaço que inicialmente estaria destinado para outras funções e terá sido adaptado para uma galeria de arte, mantendo as suas características originais e continuando, porventura a desempenhar as suas funções. (Melo, 1999)

Assim, uma galeria de arte é interpelada por uma série de práticas: os profissionais que criam e são criados pelas galerias; pelos públicos e pela sua recepção tendencialmente reinterpretativa e transformadora; do crescente cruzamento entre arte, cultura, economia e vida quotidiana; pelas fronteiras de uma estética profana, sensorial, comunicativa e intelectiva pelo estatuto dos artistas, cada vez mais contaminado pelas convenções e regras que regem os mundos da arte; pelo programador ou director artístico que poderão ainda reter alguns traços encantatórios da aura autoral; pelas inserções urbanísticas e pelas imagens de cidade a que se associa ou que a partir dela são criadas.