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Os reptos da proximidade à cultura profissional

Este tipo de posicionamentos conduz, segundo Delforce, a vinculação do jorna- lismo a "uma postura de cidadania"18, assumindo claramente que "dar sentido implica

14Op. cit.,p. 29.

15Christian SAUVAGE, Journaliste: une passion, des métiers, Paris, Centre de Formation de Perfecti-

onnement des Journalistes, s.d.

16Op. cit., p. 75-82.

17Michel MATHIEN, La Presse Quotidienne Régionale, 3ª ed., PUF, Paris, 1993, p. 43.

18Bernard DELFORCE, "La responsabilité sociale des journalistes: donner du sens", in Les Cahiers du

sobretudo uma responsabilidade social, na medida em que isso impõe ter em conta os efeitos sociais desse ato". Esta função social implica pensar o jornalista como um agente social particular, e não apenas como uma simples testemunha ou um mediador

colocado fora do jogo social19.

"Mas, enquanto agente social – acrescenta Delforce – o jornalista não o é como os outros: preencher esse papel social é, em nosso entender, adotar uma postura de cidadania que impõe maneiras específicas de olhar as coisas, de as pensar e de as falar"20.

Philippe Merlant21considerava, em 1996, a propósito do debate em torno de jor-

nalismo cívico, que os posicionamentos como os que acabámos de evocar represen- tam três ruturas relativamente às formas tradicionais de conceber a profissão, nome- adamente: no que toca ao "receio, quase o pânico, face a toda e qualquer ideia de envolvimento"por parte dos jornalistas; no que se refere à ideologia acerca do de- ver de informar que dá preponderância aos factos em detrimento dos cidadãos; e ao estatuto de neutralidade da própria informação produzida.

"A História – sustenta Merlant – mostra bem que tipo de interesses servem estes discursos de neutralidade: são sempre os interesses dominantes, nomeadamente os do dinheiro e do poder"22.

Podemos certamente colocar-nos a questão de se saber até que ponto o envolvi- mento do jornalismo nas causas da cidadania será capaz de se libertar dos perigos evocados por um jornalismo que acaba enredado nas teias da sua própria proximi-

dade23. O estudo que fizemos acerca da cobertura da co-incineração mostra até que

ponto a proximidade ligada às causas regionais e locais pode redundar num jorna- lismo propagandístico, por vezes em conflito com o ideal da informação pública. Com efeito, se as perspectivas que acabámos de apresentar evidenciam a importância do papel do jornalismo e do jornalista local e regional na criação do elo comunitário entre os seus leitores, não nos podemos ficar pela evocação desse papel sem reconhe- cer os problemas que se podem levantar numa análise tradicional de um jornalismo distanciado, escrutinador dos poderes e objectivo, de acordo com o pensamento do- minante na profissão. O dilema deste jornalismo comprometido com as suas gentes

19Ibid. 20Op.cit., p.18.

21Philippe MERLANT, "Le project du magazine citoyen Tempo", in Les Cahiers du Journalisme –

Le Journaliste acteur de société, ("Le Journaliste acteur de société"), nº2, Lille, Centre de Recherche de L’École Supérieure de Journalisme de Lille, dezembro de 1996, p. 74-80.

22Op.cit.,p. 79.

23Pacheco Pereira, numa aula aberta realizada no passado dia 12 de abril em Coimbra, sobre a litera-

cia dos Media, sustentava que quanto mais tendencialmente opinativo for o jornalismo, menos livre ele também tenderá a ser.

está bem patente na expressão de um título fortemente indiciador do livro de Mau- rice Grassin, publicado em 1980, em França: "Qu’on m’envoie un journaliste pour croquer la rosière". Embora situado no tempo, também não resistimos a citar Pierre Viansson-Ponté, ex-localier, quando, a propósito dos jornalistas locais, escrevia, em 1975 já com o olhar de um redactor do Le Monde, sobre os cuidados a ter na imprensa regional e local:

"Não devemos incomodar ninguém, nem a Igreja, nem a autoridade, nem as boas famílias24, nem os eleitos, nem os trabalhadores, nem os que nada fazem, nem as mulheres, nem tão pouco jovens e velhos, pescadores e caçadores... As festas são por definição um sucesso, os baptismos ou casamentos emotivos, os enterros tristes, as condecorações merecidas, as eleições judiciosas, os comerciantes honestos, os funcionários devotos, todos são bonitos, todos são gentis"25.

Parece-nos ser importante salientar o facto de ser nesta tensão – mal assumida e muito pior resolvida – entre proximidade e distanciamento, que passa a muito ténue linha entre o que pode ser a especificidade de um jornalismo próximo das pessoas e formas alternativas de comunicação comunitária que estão para além do jornalismo, tal como o entendemos hoje.

Esta questão foi tratada de forma particular pela investigadora brasileira, Raquel Paiva, quando se refere ao “jornalismo comunitário”, assemelhando-o a um jorna- lismo de trincheira, em resultado do seu compromisso com a comunidade a que está ligado. O jornalista é visto como um "comunicador social"; a sua função é, no seu entender, a de "provocar a participação". E acrescenta:

"Mais que um publicitário, jornalista ou radialista, esse profissional deve ser alertado para o seu papel de agente social, aquele que primeiramente é capaz de promover e potenciar a articulação comunitária, seja por via das instituições (desde prefeituras, órgãos municipais e organismos não governamentais), seja ainda por meio da evoca- ção de uma comunidade determinada"26.

Neste quadro de pensamento, poder-se-á dizer que o jornalismo não surge aqui com um discurso próprio. Ele pode ser entendido como uma emanação das próprias necessidades dessa comunicação comunitária. Assim, defende Raquel Paiva, para além da abertura duma nova área de atuação sugerida pela proposta de uma comuni- cação comunitária, esta pode servir de base para a discussão sobre possíveis formas alternativas de jornalismo. No seu entender, "o que acontece atualmente, inclusive a

24"Ni le château"no texto em francês, uma imagem utilizada com referência às famílias importantes,

muitas delas de origem nobiliárquica, detentoras dos inúmeros castelos senhoriais, com influência social e económica.

25Pierre VIANSSON-PONTÉ, "Le journaliste à la campagne", Le Monde, 27 de Julho de 1975. Apud

C. SAUVAGE, op. cit., 78.

partir das próprias faculdades de comunicação, é a tentativa, na maior parte das ve- zes, fracassada (...) de adequação ao mercado, como se este fosse o único verdadeiro papel do jornalista na atualidade. Na verdade, ao contrário do que pode parecer, essa

visão hegemónica minimiza a importância do jornalismo e restringe a sua ação"27.

Sustenta Raquel Paiva que, "repensar o papel do jornalismo pode ser, inclusive, colocá-lo além de uma das possibilidades de exercício da profissão: a do jornal comu-

nitário"28. No seu entender, o erro fundamental é transformar o jornalismo adequado

aos princípios do mercado, em modelo universal, de exercício da profissão. Nesta perspetiva, se é necessário, como salientámos, recusar, por um lado, a ingenuidade de um jornalismo comunitário ao serviço da sua verdade e sujeito também às suas formas de manipulação, por outro, impõe-se marcar a diferença face ao status quo de uma profissão que "foi das mais moldadas"para responder aos princípios do mer- cado, como nos diz Raquel Paiva. A proposta alternativa que aqui parece desenhar-se implica explorarem-se novos quadros de referência para o jornalismo, para além da dicotomia proximidade/distanciamento e objetividade/envolvimento.