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O valor da proximidade e a deontologia da distância A par das constatação deste quadro relativamente indefinido de um discurso ge-

nérico acerca do “jornalismo de proximidade”, não podemos deixar de reconhecer, também que, no plano normativo do jornalismo, a proximidade levanta problemas impossíveis de ignorar. Em primeiro lugar, começaremos por notar que a importância dada à proximidade enquanto valor notícia não tem igual correspondência no campo ético e deontológico, nem mesmo naqueles órgãos de comunicação social que mais utilizam esse valor como uma das razões de ser da sua existência e identidade. Pelo contrário, em termos éticos e deontológicos, o valor dominante é o do distanciamento. Esta situação tem a ver, em nosso entender, com o facto de a história dos valores éticos e deontológicos do jornalismo ter sido moldada, desde o séc. XIX, a partir das prá- ticas dominantes da objectividade. Estes valores instituíram-se como uma referência profissional nos órgãos de comunicação de massas, em detrimento de outras práticas – nomeadamente no jornalismo regional – geralmente consideradas mais amadoras, quando não mesmo secundarizadas em termos políticos e socioprofissionais. Assim, poder-se-á dizer que os valores do jornalismo regional estão, grosso modo, mais em linha com os princípios normativos, éticos e deontológicos do jornalismo mainstream do que propriamente de um jornalismo de proximidade, cujos contornos normativos estão ainda por definir. Com efeito, constatamos que, na maior parte das vezes, os códigos deontológicos – quando existem em contextos regionais –, bem como os Es- tatutos Editoriais de grande parte dos órgãos de comunicação social regionais e locais pouco se distinguem pela identificação de especificidades das suas práticas, para além das alusões vagas sobre o papel na defesa dos interesses das respetivas populações.

Não é de estranhar, pois, que seja mais frequente ver-se a reflexão acerca das dificuldades de aplicação da deontologia jornalística aos contextos de proximidade, do que no levantamento e identificação de princípios e práticas específicas, resultan- tes do exercício de um jornalismo regional e local. Este aspecto reflete-se também na própria análise científica e académica. Assim, autores como Ron F. Smith ou Marc-François Bernier, quando se debruçam sobre os desafios éticos do jornalismo

em contextos de comunidade, referem-se de facto a questões problemáticas do seu exercício e não tanto a uma ética própria do jornalismo de proximidade. Entre essas questões incluem-se as pressões por parte das fontes e das elites locais, os riscos das sanções económicas e políticas, os desafios para fazer respeitar princípios de equi- dade no tratamento da informação, o problema do envolvimento dos jornalistas em causas locais e regionais capazes de porem em causa a sua integridade e indepen- dência profissional, enfim, a sua proximidade familiar ou afectiva relativamente aos actores sociais.

Ao colocar o foco da análise nestas condicionantes continua-se a privilegiar os modelos normativos do jornalismo dominante. Nesta linha de pensamento, Marc- François Bernier, por exemplo, sublinha que o jornalista que exerce a sua profissão em contextos de proximidade geográfica e cultural, pode responder a situações que o tornam particularmente vulnerável em termos de alguns pilares fundamentais da normatividade do jornalismo, através do reforço de mecanismos de prestação de con- tas públicas da sua actividade e de uma implicação num trabalho sistemático e direto no domínio da educação dos media. Referindo-se especificamente aos desafios que se colocam ao ativismo dos jornalistas em torno de determinadas causas – normal- mente valorizadas nestes contextos de proximidade – diz-nos Marc-François Bernier, numa passagem bem elucidativa da sobreposição entre os pretensos deveres de um jornalismo próximo e as normas éticas e deontológicas dominantes:

"Pode-se, no entanto, sustentar que a função de vigilância imparcial, rigorosa e ín- tegra dos que agem em nome do bem comum é igualmente de uma importância fundamental. Ela merece ser valorizada com o objectivo de aliviar o sentimento de impotência de alguns jornalistas, no caso de sentirem que a sua profissão não traz em si um contributo significativo à comunidade que servem. Pode-se, por exemplo, convencê-los que o exercício do jornalismo conforme as normas reconhecidas – gra- ças, nomeadamente a uma formação adequada e continuamente enriquecida – faz deles atores essenciais para preservar o vigor e a qualidade do debate que caracteriza as democracias pluralistas"10.

Neste quadro, dir-se-ia que, do ponto de vista dos valores éticos e deontológicos, o jornalismo de proximidade continua a definir-se, essencialmente, pela sua distanci- ação. Se quisermos ir mais além, deveríamos mesmo questionar sobre a sua razão de ser – tal como parece-nos dizer Carlos Chaparro –, reduzindo-o apenas o seu papel estratégico, como referimos atrás:

"No meu conceito, não existe “jornalismo de proximidade” nem “jornalismo de cau- sas”. Proximidade e causas são componentes inevitáveis e importantes do Jorna- lismo, em sua totalidade. A proximidade é um atributo essencial de noticiabilidade

10Marc-François BERNIER, "Être journaliste en milieu minoritaire: les défis éthiques de la proximité",

inMichel BEAUCHAMPS e Thierry WATINE (dirs), Médias et Milieux Francophones, Laval, Presses de l’Université de Laval, 2006, p. 136.

de qualquer facto ou fala relevante da atualidade – proximidade não apenas física, mensurável, mas principalmente a proximidade abstrata em relação ao universo de interesses das pessoas e dos grupos sociais; e a causa está no cerne das razões de ser das ações humanas noticiadas e/ou noticiáveis"11.

Com efeito, poder-se-á sustentar, esta abordagem continua a insistir na prepon- derância dos valores normativos socioprofissionais dominantes, negando ou iludindo questões que se colocam a um jornalismo e a uma ética de proximidade.