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José Manuel RESENDE ** Universidade de Évora

OS USOS SOCIAIS DOS TEMPOS: UM ROTEIRO DE ANÁLISE

Deste modo, mergulhar nos sentidos e significados dos usos do tempo é um caminho possível para os equacionar como socialmente relevantes. E é por este itinerário que sigo neste ensaio para pensar o tempo escolar entre o organizado, o vivido e o sentido que é a temática central da nossa discussão.

Roteiro definido, mas ainda não totalmente esclarecido. É meu propósito conjugar os significados dos usos dos tempos que são atribuídos pelos atores na escola, a partir daquilo que estes são capazes de me devolver em função das suas experiências investidas e retidas naqueles espaços, mas também em função da experimentação que os usos do tempo lhes proporcionam nas múltiplas sociabilidades escolares. Cuidar da incursão que é aqui feita para questionar os sentidos dos usos dos tempos passados na escola requer que as temporalidades selecionadas para a indagação sejam concebidas em uma combinatória densa.

69 Acorda-se conferir importância tanto aos lados instituídos do tempo incrustado em acontecimentos constitutivos dos processos de governação escolar como aos lados instituintes dos tempos suportados quer por circunstâncias inesperadas saídas de distintas sociabilidades recortadas, quer também pelas consequências imprevistas transpostas pelos acontecimentos habituais, alguns deles instituídos. Tanto por um lado como pelo outro lado que se interrogue os usos do tempo, estes não são concebidos como inscritos em dualidades, mas, ao invés, desafiados nas suas combinações possíveis.

Ao optar por este caminho analítico, os múltiplos usos dos tempos escolares encaixam-se em redes em cujas conexões complexificam tanto os juízos expressos por quem os experimentam, como as operações críticas que resultam das suas experimentações tangíveis. Assim, sendo múltipla a propagação dos usos dos tempos no estabelecimento de ensino as suas réplicas muitas vezes não se circunscrevem aos espaços na escola. Atravessam para outros espaços inter-escalares (Breviglieri, 2007 a),b)) nem sempre próximos das suas vedações.

Apreender desta maneira os tempos pelos usos que deles fazem os atores nas escolas requer do observador a implicação não só do seu olhar sobre aquilo que ali acontece, mas dos seus desdobramentos para outros espaços. Impõe também o recurso a outros sentidos que se objetivam na sua própria corporalidade que circula, observa, escuta, cheira e notifica nos seus cadernos aquilo que vai descobrindo nas suas deambulações.

Uma vez que a escola não é só povoada por adultos, na figura dos professores e de outros funcionários, mas também é habitada por alunos, na figura de adolescentes e jovens (Resende, 2010), o orador socorre-se de informações recolhidas quer por colegas mais jovens que com ele trabalharam nos seu projetos de doutoramento, quer com outros estudantes ainda não licenciados mas que cuidaram deste trabalho num projeto ainda em curso mas que se iniciou no ano sabático a que teve direito no ano letivo de 2017/181.

O reconhecimento do fator constante de o tempo a passar, os seus usos na escola, com variações pluriformes, resultam igualmente de outras passagens pelos estabelecimentos que ilustram a existência de outros projetos de investigação. Assim, desde 2004 até 2018, abrigamos a captura do entremeado dos tempos a passar com o recurso a vários projetos em que tenho estado envolvido2.

Sem os estímulos decorrentes dos propósitos de cada um deles mais difícil se tornava a reflexão sobre os seus impactos nas vivências e experiências descritas a partir de informações que nos têm estado a conceder há mais de dez anos. E ao longo desta temporalidade condensada justamente pelo tempo que tem estado a passar a maturação sobre as propriedades dos usos dos tempos são numerosas e plurais.

Esta viagem começa com a indagação sobre a renovação do interesse pelos quadros políticos do Estado na reintrodução do questionamento público sobre a ação da escolarização em educar para a cidadania. Não é imanente desde os iluminismos do século XVIII que a escolarização, através da sua forma escolar, conjuga a transmissão dos saberes com a socialização na procura dos exercícios promissores de educação para a cidadania bem-sucedida (Vincent, 1994; Resende, 2003, 2010)?

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financiamento, q Entre a Escola e o Bairro: estranheza, estranhamento e hospitalidade

trabalho de campo foram desenvolvidos em duas escolas do Ensino Secundário uma sediada no município de Lisboa e outra localizada no município de Oeiras. Neste trabalho participaram uma equipa de 8 colegas. Dos 8 colegas 6 são estudantes da licenciatura em Sociologia. O trabalho de campo realizou-se entre 2017 e 2018 e constou de observações de aulas e em outros espaços dentro e fora da escola, de realização de 18 entrevistas e o lançamento de questionário por cenários a todos os alunos

2 Este texto socorre-se também como expresso em Resende (2019) de outras duas pesquisas. Uma ocorrida entre 2004 a 2007

e a segunda desenvolvida entre 2008 a 2012. Para conhecer a metodologia aplicada em cada uma das duas pesquisas consultar Resende, 2010 e Resende, Gouveia, 2013.

70 Este tem sido um dos legados da escolarização ao longo da sua história longa. Ou, se empregarmos outro ajuizamento sobre este assunto, tem sido da responsabilização política e moral da escolarização pública esta diligência permanentemente reatualizada.

Não fora este o seu desiderato, as políticas públicas que orientam a sua organização em rede desde a implementação do sistema público de ensino não tinham determinado que as aprendizagens escolares eram obrigatórias. E estabelecida esta obrigatoriedade, o tempo de se estar na escola tem estado, ao longo da sua história, a estender-se cada vez mais em ciclos mais avançados de aprendizagem. Ora, estar um determinado tempo na escola obrigatoriamente pressupõem consequências expetáveis. Uma destas consequências tem sido justamente esperar-se que o apetrechamento cognitivo, a via transmissão dos conhecimentos, seja acompanhado pela transmissão de valores morais e políticos de raiz republicana (Resende, 2012, 2013, 2016).

Em face das aspirações esperadas quanto à permanência na escola definida em cada altura da história da escolarização, rapidamente os dados que medem essa estadia têm vindo a mostrar que a obrigatoriedade desejada não é garantida pela mera consagração em lei. E mesmo os cidadãos crerem que estão sob o império daquilo que é ditado pela lei, esta obrigatoriedade não convence rapidamente todos os pais e encarregados de educação em cumpri-la canonicamente.

Vão ficando convencidos na passagem das gerações e no reconhecimento paulatino dos seus benefícios. E entre as vantagens aquela que reconhecem como a mais desejável é que o diploma garanta trabalho, e se possível um trabalho em correspondência àquilo que se aprendeu durante a escolarização recebida (Grácio, 1986; Resende, 2010).

O questionamento sobre os efeitos positivos da aquisição dos valores de uma educação cidadã tem sido secundarizado em detrimento da publicitação mais frequente das desigualdades escolares como efeito do menor cumprimento da escolarização obrigatória por parte de alunos com menor proveito escolar. E se a razão do subaproveitamento escolar passa a ser um problema cada vez maior sobretudo a partir dos anos 50 do século XX, a preocupação é acrescida quando a sua comensurabilidade permite observar que esta era amiúde mais gravosa nas famílias com atributos sociais classificados como mais desvalorizados (Resende, 2017).

Tudo indica que o convencimento que se vai generalizando junto das famílias da utilidade da escola, isto é, das vantagens em ali estar cada vez mais tempo para adquirir aprendizagens múltiplas, contribui para o engrossamento das fileiras escolares, apesar do desigual peso que estas mostram ao longo da sua história. O aumento volumétrico da morfologia escolar dá maior visibilidade aos comportamentos inconstantes, irregulares, isto é, que não se conformam com as regras deste outro território que vai sendo cada vez mais a outra casa na vida de quem frequente os estabelecimentos de ensino (Resende, 2010, 2019).

Maior número de casos indisciplinares, mas, nomeadamente, um maior conhecimento público destes acontecimentos e das suas consequências na vida de quem está neles envolvido, vai trazendo aos poderes públicos novas abordagens para o tratamento de um problema há muito diagnosticado. As suas inferências pelas equipas governativas vão sendo diferenciadas, corporizando políticas públicas distintas para tratar este outro problema também do foro das modalidades do atuar na escola, do estar na escola e de se ser um ser que permanece mais tempo e mais horas na escolarização (Correia & Matos, 2003; Sebastião, 2009; Dionísio, 2018) .

71 E é sobre este ser que se tem de constituir ao longo da escolarização como ser humano, e não exclusivamente como um ser que vive3 que tenho vindo a dar maior relevância nas reflexões por mim produzidas e

em desenvolvimentos outros que têm estado a ser protagonizados por outros colegas com quem tenho estado a trabalhar em comum. Esta distinção, apesar de soar a somenos, é, todavia, crucial para se compreender a centralidade maior da socialização política nos processos de aprendizagem desde o século XIX (Resende, 2010; Resende, Gouveia & Beirante, 2018).

É certo que os significados que esta socialização vai assumindo no decurso das temporalidades que acompanham a escolarização tem estado a atualizar-se, sempre em função das operações críticas que a esta são feitas por não estar a ser seguida por medidas de ação pública que permitam de um lado a todos aceder às aprendizagens, mas do outro lado não assintam a todos a experimentação de outras sociabilidades que são possíveis explorar nos territórios escolares. Na verdade, estar-se na escola viabiliza a todos que lá estão o confronto entre seres que sendo já desiguais se desigualam ao longo de itinerários diferentes.

Através de experiências na philia os alunos na figura do adolescente e do jovem caminham no sentido do amadurecimento cognitivo e comportamental, mesmo não sendo este um ponto de vista comum entre o corpo docente. Ora, este processo de crescimento é sinuoso, desigual, em escalas dubitativas irregulares, umas mais previsíveis outras imprevistas, produto de idas e vindas, que não contam só com o confronto colaborativo dos amigos dos seus grupos de pares. Em outras ocasiões podem também requer o apoio quer dos docentes, quer de outros técnico que atuam nas escolas, quer ainda com o recurso das presenças dos pais quando estes se predispõem a ir à escola chamados pelos diretores de turma ou pelo diretor da escola (Breviglieri, 2007 a); Dionísio, 2018).

Captar estas experiências convivenciais no fazer o comum no plural e em composições múltiplas têm sido diligências investigativas nossas que nos têm autorizado a refletir sobre as consequências das injustiças, não só resultantes das desigualdades, mas em que estas são muitas vezes referidas pelas ações críticas como desigualdades justas. Ao invés de se pensar que os adolescentes e jovens aprovam as aprovações a qualquer preço, há vozes, e não são poucas, que reclamam por respeito, solicitando aos adultos seus professores que estes atuem sob a batuta de regras claras em prol, não do favorecimento, mas da execução da grandeza do mérito acompanhado com provas ancoradas em sistemas de equivalência gerais (Resende, 2014; Resende, Caetano, 2015). Atuar sobre regras da casa explícitas e ajustadas, isto é, justificadas pela sua elevação em generalidade, são requisitos demandados por alunos e professores a par de outras composições atuantes que exploram as manhas, astúcias diversas provocando tanto colegas quanto os adultos na figura dos seus professores, técnicos, funcionários e mesmo os seus pais e encarregados de educação (Resende, 2010; Dionísio, 2018).

Escolher como foco a fabricação na escola de exercícios múltiplos que visam aspirar a edificação de uma educação para a cidadania republicana tem-nos desafiado a procurar as consequências daquelas exercitações no sentido de compreender como a socialização escolar tem sido sempre acompanhada e composta por referências àquilo que é público, que se anuncia como passível a se transformar em sentimentos, crenças, emoções e razoabilidades publicistas ou em vias a ser públicas. É esta preparação para se apresentarem aos públicos, serem constitutivos de públicos, fundarem públicos através das suas iniciativas, que se tem esperado serem os efeitos beneficiados por terem usufruído de educação para a cidadania.

3Devo a Laurent Thévenot a inspiração para tratar sociologicamente as dissonâncias e complementaridades das formas de agir

72 Estar atento e levar a sério os regimes de envolvimento da ação (Thévenot, 2006), que são possíveis reter nestas operações tem-nos desafiado a olhar o tempo que passa pelos seus usos, que perpassam ou contornam os usos sociais dos tempos cronometrados, medidos por plataformas diversas com o recurso a objetos diversos que vão do relógio e dos calendários à folha de Excel (Resende, 2017). Dar atenção à acidentalidade dos usos do tempo, em geral, e na escolarização, em particular, tem de ser entendido como consequência dos seus efeitos retroativos que desafiam as suas qualidades de acidência, tanto na emergência de acontecimentos não aspirados ou previstos como nas suas posteriores consequências que não só podem sugerir a suspensão dos referidos regimes de envolvimento da ação, ou a fazer deslocações das esferas públicas a que alguns destes regimes assentam as suas propriedades para territórios mais familiares e de proximidade desafiando a escola que é encarada pelos agentes e agências públicas como arenas públicas.

EXPLORANDO OUTROS TEMPOS: ACOLHER, HABITAR E ACOMODAR O NOVO

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