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1. Questões de Identidade numa era de transição

1.1. Pós-modernidade e identidades pessoais

“Não, a sério, a felicidade, esse estado difuso resultante da impossível convergência de paralelas de uma digestão sem azia com o egoísmo satisfeito e sem remorsos, continua a parecer-me, a mim, que pertenço à dolorosa classe dos inquietos tristes, eternamente à espera de uma explosão ou de um milagre, qualquer coisa de tão abstracto e estranho como a inocência, a justiça, a honra, conceitos grandiloquentes, profundos e afinal vazios que a família, a escola, a catequese e o Estado me haviam solenemente impingido para melhor me domarem, para extinguirem, se assim me posso exprimir, no ovo, os meus desejos de protesto e de revolta.”

Lobo Antunes, Os Cus de Judas, p. 123

Se a modernidade, relativamente aos seus pilares fundamentais, promete a formação de indivíduos conscientes, membros de uma nação e cidadãos de um estado, ela estabelece uma profunda associação entre as autonarrativas e as narrativas do estado-nação. O self corresponde aos desejos do Estado-nação e vice- versa, pelo que ter uma identidade é pertencer a si próprio e ao Estado-nação (Stoer e Magalhães, 2005: 105). A modernidade parece comportar contradições estruturais, conflitos sociais e crises pessoais, que apontam para uma relação de conflito, de descontinuidades com a pós-modernidade como resultado da transformação do pilar da emancipação no duplo do pilar da regulação (Santos, 1994: 92).

Nesta perspectiva, o que se designa por “crise das identidades”, ou a perda do “sentido de si”, seria o resultado da acção conjunta de um duplo deslocamento11: a descentração dos indivíduos tanto do seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos (cf. Hall, 2003: 9; Dubar, 2006).De acordo com a argumentação de Laclau (1990) a consideração de que as sociedades da modernidade tardia, marcadas pela “diferença”, não são globalidades unificadas em redor de um centro organizador a partir do qual ocorrem as mudanças, mas estruturas permanentemente sujeitas a processos de deslocamento ocasionados por forças externas a si próprias. Há, aí, uma grande diversidade de centros de poder que permitem a “recomposição da estrutura em torno de pontos nodais particulares de articulação” (Laclau, 1990: 40) e a construção de novas articulações que produzem novas identidades.

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Deslocamento é o processo pelo qual uma resposta emocional ou comportamental, que é apropriada para uma situação, aparece numa outra situação, para a qual não é tida como adequada.

(Biblioteca Virtual em Saúde, [online] http://www.bireme.br/php/decsws.php?tree_id=F01.393.246&lang=pt, 07-01-16)

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Para Giddens, o termo “crise ” surge associado à radicalização da modernidade, pois se “o mundo da modernidade tardia se estende bem para lá dos meios das actividades individuais e dos compromissos pessoais”, ele constitui-se como um mundo lotado de riscos e perigos, considerando adequado não apenas no sentido de mera interrupção, mas no de um estado de coisas mais ou menos contínuo, afectando no âmago quer a auto-identidade quer os sentimentos pessoais (Giddens, 1997: 11).

Para Castells (2003), a “crise” das identidades é encarada como o resultado da emergência da subjectividade na reprodução social, ou melhor, a procura identitária mostra que os sujeitos têm, progressivamente, mais poder e sentem o dever de encontrar sentido para as suas vidas, o que leva a inferir que o que está em causa não “é o caos que ameaça abater-se sobre eus desarmados, mas uma redefinição do próprio processo identitário” (Magalhães, 2001: 313).

O debate sobre o que se possa entender por pós-modernidade tem-se centrado mais na essência do que no nome, considerado por Santos “autêntico na sua inadequação” (1994: 71), para que nos situemos nas mudanças já acontecidas e naquelas que estão a suceder e que, consequentemente, afectam o modo como nos desenhamos a nós próprios.

Talvez tenha sido Nietzsche o primeiro filósofo a prenunciar a pós-modernidade quando anunciou que “Deus está morto!”, servindo-se da voz do louco.

O louco saltou para o meio deles e trespassou-os com o olhar. ‘Quem vos vai dizer o que é feito de Deus sou eu’, gritou! ‘Quem o matou fomos todos nós, vós mesmos e eu! Os seus algozes somos nós todos! E como o fizemos? (…) Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite? Não teremos de acender lâmpadas em pleno dia? Será que ainda não estamos a ouvir o ruído dos coveiros a enterrar Deus? Ainda não nos terá chegado o cheiro da decomposição divina? Porque até os deuses se decompõem! Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou somos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e de mais sagrado e de mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas (…) (Nietzsche, 1998: 140).

Com o desaparecimento do divino e a desvalorização de todos os valores supremos este pensador alerta para a responsabilidade que recai sobre cada um de nós na construção de um sentido para as suas vidas mediante o perigo concreto de se cair num vazio existencial.

Giddens afirma que, na perspectiva de Lyotard, “responsável pela popularização do conceito de pós-modernidade”, a “ condição da pós-modernidade distingue-se por uma evaporação da ‘grande narrativa’ a ‘linha condutora’ determinante através da qual somos colocados na história como seres dotados de um passado definido e de um futuro previsível” (Giddens, 2002: 1), mas não partilha do

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mesmo ponto de vista, pois crê que as transformações a decorrer são mais uma continuação e radicalização do que uma ruptura com a modernidade. Para este autor,

a modernidade é intrinsecamente globalizante e as consequências perturbadoras deste fenómeno combinam-se com a circularidade do seu carácter reflexivo para formarem um universo de acontecimentos onde o risco e o acaso assumem uma nova natureza (ibidem: 125)

e defende que o momento que agora se vive é um “período de modernidade tardia” onde os fenómenos frequentemente designados de pós-modernos se referem “à experiência da vida num mundo onde a presença e a ausência se combinam de formas historicamente novas” (ibidem: 125), onde o local e o global tecem enredos complexos. Giddens aceita que estão a surgir os contornos de uma era “pós-moderna” onde as consequências da modernidade são “mais radicalizadas e universalizadas do que antes” (ibidem: 2).

Bauman (1992) defende o conceito de pós-modernidade vendo-o como duas faces de uma complexa relação entre a presente condição social e a formação que a precedeu e a gestou e que, por isso, “não é nem um afastamento transitório do estado normal da modernidade, nem um estado doentio da modernidade, nem algo a ser rectificado, é a modernidade consciente da sua verdadeira natureza – a modernidade em si” (1992: 187). Descreve-a como “uma condição social auto-reprodutora, pragmaticamente sustentável e com uma lógica própria, com traços específicos (1992: 189).

Quer se fale de pós-modernidade (Lyotard, 1989; Bauman, 1992; Santos, 1994), de modernidade tardia ou radicalização da modernidade (Giddens, 2002), de modernidade reflexiva (Beck, 1992) ou de modernidade reconstruída (Touraine, 1994) “[a] delimitação daquilo que por pós-modernidade se possa entender não é nem uma tarefa neutra nem específica de um só campo do saber” e a sua definição “tem-se esboçado como uma questão de nome e não só de condição” (Magalhães, 1998: 21). Também me parece que o fundamental se concentra na essência do fenómeno.

A percepção do “fim das grandes narrativas” (Lyotard, 1989), a perda de um centro organizador que a modernidade forneceu concedendo segurança ontológica e atenuando o risco na “condução da mudança no sentido desejável” (Magalhães e Stoer, 2006: 23) surgem como questões centrais.

Se “a complexidade é a ciência do século XXI”, sabemos que um sistema complexo tem um “número incontável de subsistemas”, (Pintasilgo, 2003: 210). As sociedades são cada vez mais diversas, mais multiculturais, o que também acentua o dinamismo e as tensões no interior das mesmas. Os efeitos do processo de globalização são constantes e a diversidade uma característica, o que, por vezes,

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extrema posições, instala os preconceitos e os estereótipos. Se “tudo está em tudo”12 o nosso olhar deverá ser holístico, sistémico, ecológico, interactivo, para compreendermos o mundo que nos rodeia

Actualmente, no paradigma em emergência, “a mudança social já não é concebida como sendo da ordem daquilo que é susceptível de ser dominado com base no conhecimento construído acerca dela” (Magalhães e Stoer, 2006: 24) e o facto de haver um acréscimo de reflexividade por parte dos actores implicados nos processos sociais complexifica-os, impedindo que sejam conduzidos numa única direcção. Este quadro exige uma nova forma de lidar com a mudança social em que as determinações cedem lugar às delimitações e onde o mercado, a comunidade e o estado perdem neutralidade política.

Magalhães e Stoer distinguem “não-lugares” e “lugares-brancos”. Se os primeiros se caracterizariam como locais de ausência ou suspensão do tempo e do espaço, os segundos seriam narrados “pela assunção de que existe uma instância ética que os legitima de uma forma inquestionável em termos epistemológicos e políticos”, lugares estes que se activariam fora do “sistema”. Como não há lugares exteriores ao “sistema”, os autores concluem que não há lugares-brancos, pois eles “têm sempre a cor de um sistema ou de um contexto”, o que implica que a reflexividade, quer a institucional, quer a individual, se assuma aqui, de novo, como um dos aspectos cruciais, porque estruturante, mas não “salvador”: “a sociedade e os cidadãos ao recusarem-se como objectos da acção do estado dão uma dimensão política sem precedentes à própria acção política” e ao se pronunciar a recusa e a negação dos lugares referidos se assume as “próprias limitações e condicionamentos”, nos contextos próprios, mas não necessariamente com “um maior domínio sobre os processos sociais e políticos” (Magalhães e Stoer, 2006: 27-28).

A reflexividade da vida social moderna consiste no facto de as práticas sociais serem constantemente examinadas e reformadas à luz da informação adquirida sobre essas mesmas práticas, alterando assim constitutivamente o seu carácter. (…) O conhecimento reflexivo, de que as ciências sociais são a versão formalizada (um género específico de conhecimento pericial), é verdadeiramente fundamental para a reflexividade da modernidade como um todo (Giddens, 2002: 27-28).

A consequência imediata do pensamento de Giddens para as minhas asserções é levar-nos a um entendimento da pós-modernidade como processo, que se afirma também reflexivamente, num esforço de gestão dos défices e dos excessos da modernidade (Santos, 1995).

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Título de um artigo de Maria de Lourdes Pintasilgo publicado em 13 de Novembro de 2003 na revista Visão, p.210.

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As semelhanças perdem sentido e vão sendo substituídas por consensos locais e transitórios que envolvem participantes actuais e podem, por isso, ser modificados a qualquer momento. Já não estamos no domínio do consenso (Lyotard, 1989), da ênfase nas semelhanças, mas no domínio da paralogia, do dissentimento na procura de novas ideias, enunciados novos – na procura do dissenso (Lyotard, 1987/1989).

Se pensamos que nesta condição pós-moderna será a estrutura do próprio campo cognitivo a ser revolucionada (Bauman, 1992: 190-191), estando o seu foco centrado na agência do sujeito,

[é] pois o sujeito que, mais do que elogiar é preciso recuperar na sua totalidade e reconstruir na sua substância que é a sua não substancialidade (…) ele é essencialmente uma dinâmica e uma dialéctica, uma construção desprovida de fundamentação que as grandes narrativas proporcionavam. É ao mesmo tempo uma possibilidade de vazio e uma possibilidade de ser, mas não uma substância (Bauman, ibidem: 44).

Ulrich Beck (1992) refere a “modernização reflexiva”13 como um fenómeno que, devido ao seu intrínseco dinamismo, leva a que a sociedade moderna termine com a formação de classes sociais, ocupações, papéis dos sexos, família nuclear, agricultura, sectores empresariais e também com os pré-requisitos e as formas contínuas do progresso técnico-económico. Esta nova etapa, em que o progresso se pode transformar em autodestruição, em que um tipo de modernização destrói o outro e o altera, é o que Beck nomeia de “etapa da modernização reflexiva”. Ou seja, “a modernização reflexiva também – e essencialmente – significa uma ‘reforma da racionalidade’ que faz justiça à ambivalência histórica a priori numa modernidade que está abolindo as suas próprias categorias de ordenação” (Giddens, Beck e Lash, 1997: 12).

Se os guiões individuais e colectivos da pós-modernidade são guiões abertos, substancialmente reflexivos, são-no porque o self, individual ou colectivo, é uma interrogação mais ou menos contínua sobre o passado, o presente e o futuro (Giddens, 1991: 22). Neste ponto de vista, os projectos, as pequenas narrativas, são incomensuráveis e incomensuravelmente diferentes e, por isso, conflituantes, não havendo já forma de os legitimar à luz de grandes narrativas, como tenho vindo a defensar.

Partilho com Stoer e Magalhães da perspectiva de que nestes tempos de transição paradigmática se desvanece a conformidade entre a autonarração e a narrativa do Estado. Os Estados-nação ocidentais, como mecanismos discursivos

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Para Ulrich Beck, a sociedade passa a ser reflexiva quando “ela se torna um tema e um problema para si própria” (1997: 19).

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monolíticos, ganham consciência da sua fragilidade, pois a reflexão empreendida sobre acontecimentos históricos têm revelado que os dispositivos de legitimação utilizados se traduziram frequentemente em situações de dominação, de abuso (como por exemplo: a escravatura, o colonialismo e a exploração capitalista) e vêem-se confrontados com as próprias “diferenças” que acolhem quando estas se insurgem contra os princípios que fundamentam os Estados-nação. “A autonarração sentiu, por outro lado, o processo de pluralização dos espaços estruturais14 onde se forma a identidade” (Stoer e Magalhães, 2005: 105-106) A reconfiguração do Lugar da cidadania como um espaço estrutural onde se passa a “reclamar” a cidadania; a do trabalho de acordo com a forma como é conceptualizado no capitalismo moderno, onde as carreiras profissionais deixam de definir os indivíduos por se tornarem mais flexíveis e imprevisíveis e, por isso, já não constituem alicerce para a construção da identidade; a transformação do espaço doméstico em consequência da alteração do tipo de relações sociais entre os membros da família que permite também a diversificação dos selves; o crescente protagonismo do espaço mundial que, em consequência da globalização, dilui o papel homogeneizador dos Estados-nação na construção das identidades, ao integrarem identidades regionais (União Europeia, por exemplo) e leva à reconfiguração das identidades locais como resultado do fenómeno dialéctico entre o global e o local – “glocalização” – que, por conter uma série de processos imprevisíveis, é gerador de novos riscos, de natureza variada, que afectam todas as pessoas (Stoer e Magalhães, 2005).

Partilho também da ideia defendida por Giddens de que em condições de modernidade tardia se instalou “uma crescente interligação entre os dois ‘extremos’ de extensividade e de intensividade: influências globalizadoras, por um lado, e tendências

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Santos, refere as sociedades capitalistas como configurações políticas, constituídas por espaços estruturais. Estes equivalem a modos básicos de produção de poder, autónomos, que se articulam de formas próprias mas interrelacionados (Santos, 1994: 111-113).

Stoer e Magalhães consideram cinco espaços estruturais onde “o processo de construção das identidades difere conforme os contextos em que esse processo tem lugar (tradicionais ou pós- tradicionais) e encontram-se delimitados por aquilo a que Santos designa por ‘espaços estruturais’ que incluem o espaço doméstico, o espaço de trabalho, o espaço da cidadania, o espaço comunitário, o espaço de mercado e o espaço mundial e que representam ao mesmo tempo tanto um lugar relativo como central na construção da identidade. O que quer dizer que estes espaços, ao mesmo tempo que proporcionam as matérias-primas com as quais tanto os indivíduos como os grupos constroem as suas identidades, são também relativos, devido ao facto de os ‘espaços estruturais’ se encontrarem, eles próprios num contexto específico (isto é variam de acordo com o tempo e com o espaço). (…) Os ‘Lugares’, por sua vez, dado que são abstracções das possibilidades enquadradas pelo tempo e pelo espaço, só ganham vida enquanto tal, em contextos concretos. Estes contextos incluem (…) a família a escola o hospital, a prisão, o tribunal, a vizinhança, etc. É nestes contextos que as possibilidades e as impossibilidades, traduzidas por “Lugares”, são activadas ou desactivadas. Este processo implica a gestão das escolhas disponíveis para os indivíduos e grupos e as estratégias para assumir que algumas da s escolhas se encontram para lá das nossas possibilidades. (…) Os “contextos” que activam os “Lugares” e que por sua vez e que por sua vez activam os ‘espaços estruturais’, são como dissemos antes, configurações espacio-temporais que apresentam possibilidades que fazem nascer escolhas,tanto para o indivíduo como para os grupos. O contexto da escola é um excelente exemplo deste processo (…)” (2005: 101-102).

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pessoais, por outro” (1997: 1). Assim, a construção das identidades é um processo que passa a suceder “de baixo para cima”, contrariando o sentido enformador do Estado-nação. Tal facto é atribuído à crescente reflexividade exercida pelos grupos e pelos indivíduos e que lhes confere uma maior consciência das suas possibilidades na construção das suas narrativas identitárias. (Stoer e Magalhães, 2005: 106).