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deve-se, em grande parte, aos amigos,

G. A minha visão de mim e dos outros

3. O lugar da escola na construção das identidades pessoais dos jovens do NFPC

3.1. Questões de subjectividade

Como refiro, a dada altura deste trabalho, entender o self como discurso acentua a importância do relacionamento eu-outro deslocando o foco da pesquisa do indivíduo para a relação construída. Portanto, entender o self como um discurso associa, intimamente, o carácter relacional e discursivo do self ou da identidade. Ora, de acordo com o objectivo desta investigação, cuja preocupação foi tentar compreender se a “escola atribuída” se transformou num elemento decisivo na formação das identidades daqueles jovens, ou/e se foram eles, com os seus guiões, a procurar na escola, e em interacção com ela, o cumprimento dos seus próprios projectos pessoais e, assim, potenciarem a emergência de uma “escola reclamada”, torna-se claro que a dimensão relacional se sobrepõe à dimensão cognitiva, o que concede à socialização uma importância muito relevante na construção da identidade (Mead, 1974).

Talvez convenha relembrar que este estudo se efectuou com dez rapazes e raparigas que já não estavam a frequentar a Escola Secundária de Raul Proença nem o Núcleo de Formação Pessoal e Cidadania há, pelo menos, um ano, assumindo a memória um papel fulcral para a construção dos seus discursos. Como o presente é bricolado pelo passado importou perceber qual o sentido atribuído, hoje, às vivências passadas. Fez-se, assim, uma análise semântica que cruzou formas de reflexividade com formas de narração.

Ao longo dos diferentes temas abordados pelos entrevistados, o indicador selves remeteu para as questões da subjectividade, uma vez que esta, como consciência de si, é uma construção (Magalhães, 2001: 308) que se desenvolve nas relações e através delas com o Outro.

Em todas as entrevistas a ideia de construção pessoal foi recorrente. Mesmo quando se tendeu para a defesa de algum essencialismo a contradição discursiva esteve presente, acentuando-se ao longo do discurso a importância do processo de construção relacional para que se edifique o projecto reflexivo do self. Os discursos construídos pelos entrevistados pretenderam valorizar a família, a escola e o núcleo como lugares centrais da construção do projecto do self. Neles, não se evidenciaram conflitos intergeracionais diluindo-se a intermitência de valores entre jovens e adultos, na linha dos estudos de Pais (1998), mas com distintos modos de vida. Ainda na linha

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da Pais, o mundo dos adultos tem-se deixado seduzir pela influência dos valores juvenis, tornando-se permeável aos mesmos o que tem permitido que os processos de socialização se processem em ambos os sentidos: de pais para filhos e de filhos para pais, “possibilitando uma certa horizontalidade intergeracional de valores” (Pais, 1998: 40). No entanto, a dependência dos jovens à família (afectiva e económica) é clara. O modelo de relação dominante dentro das famílias destes jovens pareceu ser o democrático. É a nova “família relacional” (Singly, 1993) mais atenta à qualidade das relações que se estabelecem na sua intimidade. As estratégias de negociação surgiram como uma necessidade até pela complexificação dos modelos familiares. Assim, tal como Pais refere, “os jovens mostram-se em melhores condições do que os adultos para protagonizar novos valores, o que modifica, também as bases tradicionais da autoridade familiar” (1998: 41). A identificação com os grupos de pertença dá-lhes segurança, mas essa identificação está sempre aberta à possibilidade dum fim para que outras comecem (encerramento temporário).

A ideia de que a escola é um lugar bom para se estar é construída, particularmente, pelas vivências no “liceu” e surge nos discursos de várias formas: pelos amigos que lá se conseguem, pelos professores que se têm, pela relação que se estabelece entre colegas, professores e funcionários, pelas actividades desenvolvidas no âmbito da educação não formal, sobretudo as do Núcleo de Formação Pessoal e Cidadania, as do Núcleo de Teatro e as desportivas. Na defesa de que a escola é esse tal lugar bom para se estar evidenciam o papel das escolhas pessoais atendendo ao projecto de cada um, quando se concilia a sua formalidade com a educação não formal, pois a partir desta, o formal também pode ganhar novos sentidos. O não formal parece surgir como um elo de ligação que se constrói entre a educação formal, a escola, e o “mundo lá fora” (E7), complementando-a. Amplia a rede de sociabilidades dos jovens, valoriza-os individual e colectivamente ao permitir que se conheçam melhor, a si próprios, e leva-os a descobrir a existência dos outros e de outras realidades que não as suas, embora reconheçam a presença do preconceito, que consideram praticamente impossível de eliminar. Sentindo-se mais activos e intervenientes socialmente valorizam a conversa e a discussão que lhes permite pensar construindo, desconstruindo e reconstruindo as suas visões do mundo. Aqui, o NFPC surge com as características de “um dispositivo de mediação”, como um “aparelho de conversa” (Dubar, 2006: 148), apresentando características semelhantes às de um grupo terapêutico.

Estes rapazes e raparigas salientam que se sentem mais crescidos e que isso não tem a ver com a idade, mas com o facto de terem um espaço onde podem discutir temas que tradicionalmente a sociedade e a própria escola consagra aos adultos.

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Formando “mais cedo” (E5, E6) as suas opiniões, fruto de uma reflexão conjunta e individual, perdem o medo de se dar a conhecer, de revelar o que pensam e sentem que a família e a comunidade também os valorizam por isso. Os seus discursos apadrinham a aprendizagem, o conhecimento, quer intelectual quer experiencial.

Estes jovens revelam que aprenderam a jogar o jogo escolar de acordo com as regras, mas que também foram, progressivamente, descobrindo como “reclamar” o que acharam desejável, mas com uma motivação individual que depois se reflecte num grupo, não aceitando passivamente a escola que lhes foi atribuída. Desta forma, optimizaram-na na medida em que, globalmente, fizeram dela um instrumento, e não um fim em si mesma, para irem concretizando os seus projectos pessoais. Aproveitaram dela o que ela ofereceu e esforçaram-se por ser bons alunos, pois demonstram a consciência de que no modelo vigente as notas e o esforço são fundamentais para concretizarem os seus projectos pessoais São, portanto, alunos bem sucedidos que não se imaginam a deixar de estudar e que se têm servido da escola e como um instrumento preponderante na construção das suas identidades.

A escola é a obrigação, mas aceite sem sofrimento e usada como instrumento para a construção do projecto reflexivo do self. Em função do grau de integração na teia de relações que se estabelece na escola, assim a visão que se tem deste espaço e o grau de bem-estar associado aos momentos ali vividos.

O NFPC, como mediador entre a escola e o que lhe é exterior, contribuiu para aumentar o número e a qualidade das interacções estabelecidas dentro da família, da escola e com a comunidade local, incitando à participação e a uma maior vivência e consciência democráticas. Ele é tido como um casulo protector e um instrumento de construção do projecto reflexivo do self que cooperou para que a identidade de cada um se fosse construindo como um projecto coerente, afirmando-se como um espaço onde vai acontecendo a apropriação reflexiva do conhecimento. “A aprendizagem experiencial permite por ela própria a implementação da reflexividade, isto é, a construção duma identidade reflexiva que devolve sentido a uma prática onde se tem sucesso” (Dubar, 2006: 158). Parece, então, que através do NFPC cada um se constrói e treina o falar de si apropriando-se da sua própria linguagem, pois tal como Dubar também diz, “a identidade pessoal não se pode reduzir à reflexividade, porque o sujeito que aprende toda a vida tornou-se uma história” (ibidem: 192), o que acentua para além da dimensão reflexiva, a importância da dimensão narrativa da identidade. Mas a estas dimensões os jovens do NFPC também lhe associaram uma dimensão ética traduzida na solidariedade revelada para com o sofrimento dos outros, quer dentro do próprio grupo, quer fora e que, neste caso, se tornou mais evidente através

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da prática do voluntariado. Este parece traduzir o desejo de se aventurarem na comunidade, conhecendo-a e participando mais activamente nela.