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Para Ler o Mundo e as Imagens

1.ª PARTE: CATEGORIAS DE ANÁLISE E QUADRO TEÓRICO

2.1 Para Ler o Mundo e as Imagens

Na vida contemporânea, quase tudo do pouco que conhecemos, em relação ao conhecimento produzido, nos chega por intermédio das diferentes tecnologias que, por sua vez, constroem imagens do mundo. Embora a grande maioria das manifestações humanas enfatizarem a leitura da palavra, outras leituras pertencem ao mundo. O mundo das imagens possui um saber diferente daquele mundo das palavras, a linguagem se apresenta de diferentes formas e é preciso saber interpretá-la (Ibáñez, 2006).

Quando falamos em leitura, o que primeiro costuma vir à mente é a compreensão das palavras e o processo de alfabetização. No entanto, já nos alertava Paulo Freire (2003) que leitura é bem mais que decodificar palavras: é ler o mundo. A leitura é um processo complexo que envolve não apenas a palavra, mas a imagem e os aspectos mais diversos do mundo e neste mundo moderno, repleto de mensagens imagéticas, a leitura também envolve ler imagens.

Compreender o mundo por meio da leitura de imagens é um passo para o entendimento real de outros tipos de leituras. Para Martins (1983), aprendemos a ler “vivendo”. E vivemos (n) esse mundo, aquilo que nos cerca, o nosso ambiente.

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Parafraseando Charlot (2000), ler o mundo da imagem é um dos movimentos de ir e vir, presentes nas relações que o sujeito estabelece com ele mesmo, com os outros e com o mundo. É um movimento de leitura positiva da realidade, com caráter epistemológico e metodológico.

Desde tempos remotos a imagem é adotada pelo homem como expressão da sua própria cultura, permeando, nos dias atuais, praticamente todas as áreas da ação humana. Vivemos em uma “civilização da imagem” o que acarreta uma relação natural com as imagens, a partir de uma postura de familiaridade com os códigos e símbolos imagéticos (Santaella & Nöth. 2005).

Para Ibáñez (2006), o ser humano é um animal cujos produtos relacionam-se à mente, portanto além de sua existência material, seus registros incorporam significados. Sendo resultado de uma atividade humana, a imagem é ao mesmo tempo uma criação e uma recriação do mundo pelo homem, ela passa pelo filtro do espectador/leitor e é transformada em mais uma leitura, pois, de acordo com o seu conhecimento de mundo e da sua cultura, significantes diferenciados e variados estão envolvidos.

Hoje, com as novas mídias e a produção de imagens, nossa realidade passa a ser construída através da representação imagética e não só de um objeto real. Nos diversos campos científicos as imagens são visualizações de fenômenos, podendo ser verdadeiras ou reais ou simulações numéricas. Os registros dos fenômenos físicos abrangem desde satélites, microcâmeras, ecografia até telescópios e microscópios e estão presente em nossos cotidianos.

A leitura das imagens produzidas exige o apoio de processamentos numéricos e um olhar capaz de atribuir significado aos diferentes elementos que a compõem, entretanto a interface imagética possibilita ao leitor a compreensão de que os códigos icônicos ali presentes apontem para a relevância das atividades científicas, suas conquistas, seus méritos e, por vezes, seus malefícios, além dos atores e instituições sociais envolvidos, desempenhando um papel facilitador na explicação de conceitos e são importantes recursos para a transmissão das ideias científicas para a o homem comum (Manguel, 2010).

Observa-se, portanto, a necessidade de criação de mecanismos para a leitura desses novos, múltiplos e poderosos códigos visuais que invadem espaços públicos e privados,

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através da televisão, de jornais e revistas, do cinema e do computador. Na era da informática, as imagens redefinem os conceitos de espaço (mobilização permanente), de tempo (pontual), de memória (passagem da verdade à operatividade e à velocidade), de conhecimento (simulação, exploração interativa), de fruição (fim da recepção em prol da seleção, da recomposição, da interação, graças às interfaces), de cultura (distribuição de representações), o que implica o fim da epistemologia clássica e a necessidade de inventar novos modos de pensamento e, logo, de visualidade.

Na contemporaneidade, a chamada cultura visual, vem-se desenvolvendo nas mais diferentes áreas do conhecimento. Manguel (2010) afirma que nossas experiências diárias são permeadas por imagens de todos os tipos, e que as lemos constantemente – códigos textuais e gráficos, expressões fisionômicas, elementos da natureza. Portanto, o conceito de leitura é muito mais vasto do que o usualmente empregado no senso comum.

Pensar acerca de ler o mundo é resgatar o contexto concreto, inserindo-o numa perspectiva teórica que articula a leitura da imagem aos conhecimentos já incorporados. Embora a grande maioria das manifestações humanas enfatizarem a leitura da palavra, outras leituras pertencem ao mundo. O mundo das imagens possui um saber diferente daquele mundo das palavras, a linguagem se apresenta de diferentes formas e é preciso saber interpretá-la.

Para o filósofo Vilém Flusser (2002), imagens são superfícies que pretendem representar algo: são códigos que traduzem eventos em situações e processos em cenas, tendo a função de mediar o homem e o mundo, pois representam o mundo. Ao se analisar uma imagem, nós buscamos mentalmente atribuir palavras (conceitos verbais) que possam descrever e classificar determinadas características da imagem. De forma análoga à maneira como nossos repertórios visuais são ativados pela escrita, nossos repertórios verbais também são trabalhados durante esse movimento de análise da imagem. Nesse sentido, a maioria das análises de imagem são construções verbais a partir da imagem, em que se estabelece o diálogo entre linguagens.

As imagens, assim como as histórias, nos informam. Aristóteles (1995), ao sugerir que todo processo de pensamento requer imagens e que a alma nunca pensa sem uma imagem mental, afirmava que “nos é prazeroso olhar imagens, porque sua contemplação nos aporta um ensinamento”.

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O ato da leitura de uma imagem é uma prática complexa que envolve vários processos, que precisam ser analisados em conjunto para que se revele o fenômeno em sua complexidade. Ler não é um ato concretizado apenas pela decodificação de signos em significados, num processo de transmissão mecânica de sentidos. Ao contrário, consideramos que a leitura seja, antes de tudo, um processo em que são construídos sentidos a partir das relações entre os elementos situados dentro e fora do texto. Com isto o conceito de leitura se amplia, passando a traduzir as relações do sujeito com as imagens, e, por extensão, a sua capacidade de ler o mundo (Santaella & Nöth. 2005).

Como forma de apropriação do mundo pelo homem, as imagens contêm significados, reproduzem o mundo, representam, transmitem sensações e, assim, tornam-se fonte de conhecimento. Ao serem capturadas pela visão, as imagens são moderadas por processo mental, tendo seu significado transformado constantemente, nos auxiliando na compreensão da própria existência. As imagens não cumprem apenas a função de informar, mas também de produzir conhecimento.

Para Aumont (2005) por ser uma atividade simbólica, a leitura de imagens envolve compreensão que requer compreensão, apreensão de informações, seletividade e reconstrução da imagem/objeto, com a mesma importância da produção artística e científica na construção do conhecimento. Não significa decifrar, mas decompor- recompor para apreender a imagem como fonte de como fonte de significado.

Isto posto, todo leitor deve ser compreendido como um sujeito autônomo que circula e que se apossa livremente do texto, criando a partir de seus anseios, habilidades intelectuais e lugar social e suas próprias leituras.

Por acreditarmos que a leitura se constrói a partir de sujeitos históricos que se localizam em um determinado contexto social e espaço-temporal, a estética da recepção, uma teoria da literatura, se constitui um dos esforços teóricos sobre a questão da leitura das imagens que tem por objeto de investigação o receptor. O que exige a construção de uma nova concepção de leitor que assume, então, seu papel genuíno, imprescindível tanto para o conhecimento estético quanto para o conhecimento histórico, o papel de destinatário a quem, primordialmente a obra visa (Iser, 1996).

Tratando os signos textuais como obras inacabadas e abertas a inúmeras leituras, cujo sentido se consolida a partir da mescla entre horizontes de expectativas dos autores e as

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possíveis significações estabelecidas por seus leitores, a estética da recepção atribui à leitura um efeito emancipatório que libera o leitor da busca por uma interpretação única e perfeita, característica que permite a cada um imprimir sua marca no texto com a qual interage.

De acordo com Wolfgang Iser (1996), o ato da leitura, mais propriamente do texto literário, pressupõe a existência de um leitor implícito como sendo a entidade ideal a quem o autor, ao arquitetar seu texto se dirige, apresentando a elaboração do conceito de leitor implícito como "um conjunto de preorientações que um texto ficcional oferece, como condições de recepção, a seus leitores possíveis" (p.73).

Portanto, o leitor implícito tem sua origem na urdidura do texto. Pois, se o texto só adquire sua realidade ao ser lido, depreende-se, então, que as condições para a sua atualização estão inscritas na própria urdidura textual. Ainda segundo o autor, as condições elaboradas pelo texto possibilitam a produção do (s) sentido (s) do texto "na consciência receptiva do leitor” (Iser, 1996:73).

Para a estética da recepção, o leitor não é capaz de apreender um texto num só momento, mas sim em fases consecutivas da leitura. É um constante ir e vir ao texto, pois as informações ali presentes nunca são esgotadas num só momento. É ele quem capta o que se deseja transmitir. Os teóricos da estética da recepção consideram o leitor como o receptor capaz de reconstruir o significado de um texto. Para Iser, o texto literário contém "vazios" que, durante o ato da leitura, levam o leitor a decifrá-los. Essas situações implícitas são fundamentais no processo de interação, pois representam as quebras das conexões textuais e apontam ao leitor quais segmentos devem ser conectados de acordo com o seu ponto de vista. Portanto, o preenchimento dessas lacunas é um ato comunicativo que se concretiza na interação do leitor com o texto, sendo ela a reação ou a resposta que ocorre a partir da leitura. Além das possibilidades de sentido no texto, os "vazios" podem ampliar a própria atividade do leitor, que se utiliza do imaginário para captar o não-dado (Iser, 1996:73).

Iser (1979) utiliza o conceito de concretização para designar, a atividade desempenhada pelo leitor, ao entrar em contato com o texto, isto é, o preenchimento dos vazios presentes na obra por meio da ativação de sua experiência estética, fruto de seu diálogo com textos anteriormente lidos e concretizados:

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O texto é um sistema de tais combinações e assim deve haver também um lugar dentro do sistema para aquele a quem cabe realizar a combinação. Este lugar é dado pelos vazios no texto, que assim se oferecem para a ocupação do leitor (Iser, 1979:91).

O discernimento de leitor implícito e leitor explícito, parte do pressuposto de que há dois tipos de concretização: uma que responde ao horizonte implícito de expectativas, sendo de cunho intraliterário, uma vez que se apresenta como uma proposta viável para a formação de sentido da obra; e outra, extraliterária, que é referente à análise das expectativas que têm sua origem na experiência existencial dos leitores reais.

Ao primeiro tipo de concretização, corresponde o leitor implícito: aquele a quem o texto se dirige diretamente, discernido por meio da análise das estruturas objetivas da obra. À concretização extraliterária corresponde o leitor explícito: o indivíduo inserido em um contexto histórico-social que se apresenta como o principal responsável pela recepção de um determinado texto literário, ao acolhê-la negativa ou positivamente, de acordo com um critério de valor e de sua experiência estética (Iser, 1979).

Em “The Reading Process: A Phenomenological Approach”, Iser analisa o processo de construção literária: este não se identificaria única e exclusivamente com o texto enquanto materialidade escrita, nem apenas com a produção de sentido proveniente da leitura, mas seria o resultado da interação entre produção e recepção. Há, portanto, segundo o autor, uma virtualidade que dinamiza a literatura, em cujo âmbito o leitor tem importância fundamental: este daria mobilidade ao texto, a partir do uso das várias perspectivas que lhe são oferecidas (Iser, 1975).

Essa virtualidade, posta por Iser (1996) no domínio textual, pode ser mais ampla, por entendermos que o texto não é somente um arranjo especial de palavras. Assim as imagens que são levadas ao receptor através de uma mídia, de um suporte, são bastante importantes no processo de recepção, interferindo nele, conduzindo também a apropriação efetuada pelo receptor no ato da leitura.

Podemos depreender da leitura de Iser (1996) que a leitura da obra literária necessita da co-participação do leitor, quando do preenchimento das lacunas disseminadas pelo texto e por meio de sua experiência e fantasia. O que importa ressaltar nisso tudo, é que o texto e o efeito estético proporcionam ao leitor a condição de por em cheque todas as questões subjacentes e por meio de um texto (palavra ou imagem) conseguir sair do

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“jogo da leitura”, diferente de quando entrou: mais experiente dotado de um repertório mais rico.